Thimotie Aragon Heemann

No último dia 14, foi promulgada pelo Congresso a Emenda Constitucional 125/22, popularmente conhecida como “emenda constitucional da relevância”. A referida alteração do texto constitucional cria, mutatis mutandis, uma espécie de repercussão geral, a ser demonstrada para a admissibilidade dos recursos especiais perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ): a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso.
A primeira pergunta que indagamos aos leitores é: o que caracterizaria uma discussão relevante para fins de admissibilidade de recursos especiais perante o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stj">STJ</a>? Pois bem. Embora a questão deva ser analisada casuisticamente pelo Tribunal da Cidadania, quando do juízo de admissibilidade dos recursos especiais, o parlamento brasileiro optou por elencar ex ante (art. 105, §2º da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm">Constituição Federal de 1988</a>) situações nas quais há uma presunção absoluta de relevância (iure at de iure), são elas: ações penais (inciso I); ações de improbidade administrativa (inciso II); ações cujo valor da causa ultrapassem 500 (quinhentos) salários mínimos (inciso III); ações que possam gerar inelegibilidade (inciso IV); hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar a jurisprudência dominante do próprio Superior Tribunal de Justiça (inciso V); e outras hipóteses previstas em lei (inciso VI).
É verdade que a EC 125/2022 estabelece um rol exemplificativo, dada a abertura conferida pelo inciso VI, todavia, é inegável que o parlamento brasileiro estabeleceu situações a priori que sempre serão relevantes ao ponto de alcançar a jurisdição de vértice do STJ.
Sobre este ponto, chamamos a atenção do leitor para a seguinte situação: enquanto ações de improbidade administrativa, ações cujo valor da causa ultrapassem 500 (quinhentos) salários mínimos e ações que possam gerar inelegibilidade são feitos presumidamente relevantes aos olhos do Legislativo, ações coletivas, ações envolvendo grupos vulneráveis, ações envolvendo a defesa de direitos sociais e/ou de pessoas pobres não receberam o mesmo tratamento. Parece-nos, dessa maneira, uma inversão de valores que resulta, ao fim e ao cabo, no fenômeno que chamaremos neste texto de elitização do acesso à justiça.
Em relação às ações de improbidade administrativa que possam gerar inelegibilidade, é de conhecimento comum que, ao menos no Brasil, os referidos temas geralmente possuem no polo passivo réus com significativo poder aquisitivo e assistidos pelas melhores bancas de advogados do país, razão pela qual essas causas já eram examinadas pelas Cortes de Vértice mesmo antes da publicação da emenda constitucional da relevância. A Emenda Constitucional nº 125/2022 apenas “constitucionalizou” o fenômeno da elitização do acesso à justiça.
Essa situação torna-se ainda mais evidente quando o Congresso Nacional elege como causas absolutamente relevantes as ações cujo valor da causa ultrapassem 500 (quinhentos) salários mínimos. Nesse sentido, isenções tributárias vultosas, causas relevantes sob o aspecto financeiro envolvendo os interesses de instituições bancárias ou de planos de saúde, além de processos de falência e recuperação judicial envolvendo grandes conglomerados econômicos serão sempre tidas como relevantes para fins de admissibilidade de recursos especiais.
Por outro lado, ações de suma importância do ponto de vista social, existencial e coletivo foram simplesmente deixadas de lados ou, quando muito, tidas como causas relativamente relevantes. Grupos vulneráveis (mulheres, idosos, pessoas com deficiência, comunidades tradicionais, população LGBTQIA+, migrantes, crianças e adolescentes, consumidores etc.) deverão sempre demonstrar in concreto a relevância da discussão para – talvez – lograrem êxito na admissibilidade de seus interesses perante o STJ.
O mesmo raciocínio vale para feitos atinentes à defesa de direitos sociais (saúde, educação, alimentação adequada etc.), ações coletivas que buscam a tutela de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (v.g.: defesa do meio ambiente, da ordem urbanística, de bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico etc) ou, ainda, ações envolvendo o acesso à justiça de pessoas pobres.
Percebe-se, portanto, que, infelizmente, o Congresso Nacional deu primazia aos interesses econômicos em detrimento de questões sociais, culturais e existenciais. Além de temas envolvendo grupos marginalizados e assuntos atinentes aos direitos difusos e coletivos, eixos do Direito Civil historicamente relevantes na jurisprudência do STJ – e que geralmente estão umbilicalmente ligados ao princípio da dignidade da pessoa humana como o Direito das Famílias das Sucessões (v.g: filiação, alimentos, guarda, moradia etc) e a tutela dos direitos da personalidade (v.g: violação à privacidade, à honra, à imagem etc.) –, também foram desconsiderados pelo parlamento brasileiro como absolutamente relevantes.
É sempre de bom alvitre lembrar que a Constituição Federal de 1988 possui dentre os seus carinhosos apelidos a alcunha de “Constituição Cidadã”, dado o momento da sua aprovação, as promessas constitucionais materializadas pela Assembleia Nacional Constituinte e em virtude do seu extenso rol de direitos e garantias fundamentais. Na opinião deste autor, a referida alteração constitucional – nos termos em que fora aprovada –, desvirtua o próprio ethos da Constituição Federal de 1988 idealizado pelo Poder Constituinte Originário: uma Constituição para todos e não somente para alguns.
Torçamos, assim, para que o conceito de relevância a ser construído ao longo do tempo na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça seja um conceito alargado, que leve em consideração não apenas os aspectos econômicos do recurso especial a ser examinado, mas também os valores sociais, culturais e existenciais envolvidos.
De outra forma, caso seja construída uma interpretação restritiva do conceito de relevância, que possua como ponto de partida a elitização do acesso à justiça, positivada expressamente pela alteração constitucional promovida pela EC 125, materializado estará o brocardo latino outrora repetido como um mantra pelo saudoso professor Olvídio Batista da Silva: curia pauperibus causa est (“O tribunal estará fechado para os pobres”), situação inimaginável para uma Corte que é popularmente conhecida como "Tribunal da Cidadania".

Fachada do Superior Tribunal de Justiça (STJ)

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JOTA

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