Otto Licks

Ana Luiza Calil

Roberto Rodrigues

Valendo-se da “atual conjuntura sanitária, decorrente da epidemia de Covid-19”, o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, pediu na quarta-feira (24) ao Supremo Tribunal Federal (STF) a concessão de tutela provisória de urgência para suspender os efeitos do parágrafo único do artigo 40 da Lei 9.279/96 (Lei de Propriedade Industrial – LPI). O dispositivo existe para proteção de garantia mínima de vigência de uma patente no Brasil, nos casos em que há mora na análise do pedido de patente pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI).
O pedido foi apresentado na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5529, em curso desde 2016 e pautada para julgamento no dia 26 de maio deste ano. A medida cautelar pleiteada não só é atípica, mas também não se sustenta em termos de fundamento jurídico. Eventual decisão impactará duramente mais de 25 mil patentes no Brasil e, por tabela, a economia nacional, caso o pedido da PGR seja concedido.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Primeiro, requerer uma antecipação de tutela às vésperas do julgamento é um ato totalmente extemporâneo. A situação de emergência pública em âmbito nacional, declarada em razão da Covid-19, se configura no Brasil desde 03 de fevereiro de 2020, momento em que o Ministro da Saúde editou a Portaria nº 188 declarando-a em território nacional. Não houve nenhum fato relatado pela PGR que justificasse devidamente o porquê de o pedido estar sendo realizado neste momento. Mais que isso: a manifestação é repleta de afirmações genéricas, sem embasamento jurídico ou técnico.
Causa espanto, em especial, a afirmação falaciosa de que o dispositivo questionado na ADI impediria a produção de “medicamentos genéricos contra o novo coronavírus e suas atuais e futuras variantes”. O argumento carece de qualquer base, dado que não há até o momento nenhuma droga para tratamento ou prevenção de Covid-19 registrada e/ou vendida no Brasil que seja protegida por patente e que, em decorrência disso, estaria impedindo de alguma forma a produção de medicamentos.
Sobre o desenvolvimento de estudos e pesquisas científicas, é essencial esclarecer que a LPI, em seu art. 43, II, prevê expressamente que a sua realização, com finalidade experimental, não configura infração aos direitos conferidos aos titulares de patentes. O parágrafo único do art. 40, assim como a simples existência de uma patente, portanto, não poderiam obstar os estudos em curso para eventual inclusão da Covid-19 como indicação terapêutica de um medicamento existente ou para o desenvolvimento de novos medicamentos.
A propósito, todos os medicamentos utilizados no atual Protocolo Covid-19<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, formulado pelo Ministério da Saúde e pela Anvisa, estão em circulação no mercado brasileiro com diversos genéricos e similares registrados. Apenas para a Azitromicina, citada pela PGR e constante no protocolo, há dezesseis cópias registradas na Anvisa. Isso demonstra que o sistema de patentes, incluindo a previsão do parágrafo único do art. 40, LPI, não tem correlação direta com o que alega a PGR.
Fora o que é utilizado no Protocolo Covid-19, Aras cita uma substância específica (favipiravir), que estaria sendo estudada como tratamento para Covid-19, alegando que o fato de a fórmula ser protegida por patente seria um impeditivo para seu uso no Brasil. Ocorre que a PGR omite o dado mais importante relacionado ao favipiravir no Brasil: a substância nem sequer teve seu registro concedido pela Anvisa. Para a aprovação de cópias genéricas de medicamentos, primeiro é necessário o registro do produto original, inovador. Ademais, um medicamento genérico leva mais de três anos para ser desenvolvido, aprovado pela Anvisa e disponibilizado à população.
<blockquote class="jota-article__eye">Além de não estabelecer correlação válida entre a pandemia de Covid-19 e a necessidade de decisão cautelar em uma ação que tramita há cinco anos, o pedido da PGR ignora que seu objetivo poderia ser alcançado pelo mecanismo da licença compulsória, disciplinado pelos arts. 68 e 74 da LPI.</blockquote>
Esse mecanismo já foi utilizado para enfrentamento de doenças de relevante impacto social – como o caso do efavirenz, um antirretroviral usado no tratamento da Aids, cujo licenciamento compulsório foi regulado à época pelo Decreto nº 6.108/2007.
Caso seja comprovada a eficácia de algum medicamento contra o coronavírus, não será a existência de patente o óbice à sua ampla e rápida distribuição à população. Ao contrário: é indubitavelmente com o fomento das patentes à inovação que tal avanço tecnológico se mostra possível, por meio dos investimentos em pesquisa e tecnologia.
Qualquer medicamento que venha a ser desenvolvido pode vir a gozar da proteção de uma patente por força da regra geral do caput do art. 40. Eventual suspensão imediata dos efeitos do parágrafo único do art. 40 da LPI não teria como resultado permitir a concorrência imediata de tais produtos, como alega erroneamente a PGR. Nem tampouco atingiria a produção, circulação e a distribuição de vacinas no Brasil.
Outra negligência relevante da manifestação da PGR é quanto ao potencial impacto sistêmico de eventual concessão do pedido cautelar (e da declaração de inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 40, LPI). Caso o pedido seja deferido, 25.119 patentes – 38,71% de todas em vigor hoje no Brasil – seriam declaradas nulas ou teriam seus prazos de proteção reduzidos. Desse total, apenas 3,88% correspondem a patentes farmacêuticas; 96,12% delas protegem invenções de outras áreas tecnológicas, notadamente de telecomunicações, biotecnologia e agronegócio.
Seriam atingidas multinacionais gigantes, empresas e universidades públicas brasileiras, indistintamente – patentes de invenção da Huawei, da Ericsson e da Whirpool, para citar algumas, perderiam validade, assim como outras da Petrobras, da Embrapa, da Unicamp, da USP e da Fiocruz. E por quê? Por terem sido prejudicadas pelo moroso processo de análise e concessão de patentes do INPI, cuja ineficiência é historicamente reconhecida, documentada e considerada um problema crônico da autarquia.
A demora sistemática na análise dos pedidos de patentes é lesiva não só ao interesse público como ao privado, mas ela não é alimentada pelo parágrafo único do artigo 40 da LPI. Ao contrário: ele foi criado para compensar a lentidão do INPI, de forma a não punir os inventores por uma deficiência do poder público. Não é eliminando o parágrafo único que o INPI ficará mais ágil: é tornando o INPI mais ágil que o parágrafo único se tornará naturalmente obsoleto.
A insegurança jurídica potencial no presente caso é evidente, com risco de danos irreversíveis e amplos. A ADI afeta todas as patentes vigentes no país, de setores relevantes que também serão impactados por eventual decisão de concessão do pedido da PGR em sede cautelar. As telecomunicações, por exemplo: 13,03% do total de patentes impactadas por eventual revogação ou suspensão dos efeitos do dispositivo são do setor (o que corresponde a 3.274 patentes).
Em um cenário de iminência do lançamento do Edital de Licitação de Faixas de Frequência do 5G pela Anatel, a medida pleiteada pela PGR poderia representar verdadeiro repelente à atração de investimentos para o projeto no Brasil. Afinal, as empresas detentoras da tecnologia atrelada ao 5G são também depositárias de patentes – e preocupam-se com a segurança jurídica do sistema, habituadas que estão à demora do INPI na análise de seus pedidos.
Eventual perda abrupta da garantia do prazo mínimo de 10 anos de vigência, contados a partir da concessão da patente, só reforçaria a insegurança jurídica no ordenamento brasileiro. O pedido da PGR, apesar de mirar na pandemia, acabaria por prejudicar a economia nacional e a atração de investimentos no país.
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O episódio 50 do podcast Sem Precedentes faz uma análise da decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal nesta semana e que pode acelerar a aplicação de vacinas contra a Covid-19. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=b9z7dDRHnrg
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Os produtos indicados como “Protocolo Covid-19” foram selecionados conforme dois documentos: Nota Informativa nº 17/2020-SE/GAB/SE/MS e Edital de Chamamento nº 10, de 8 de outubro de 2020, publicado pela ANVISA.

INPI

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JOTA

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