Fábio Cunha

Foram iniciados no Supremo Tribunal Federal os julgamentos do RE 566.471/RN e do RE n. 657.718/MG, dos mais importantes da história da Corte, que se referem aos temas nº 6 e 500, respectivamente, do seu repertório de repercussões gerais. Debatem, respectivamente, “o dever do Estado de fornecer medicamento de alto custo a portador de doença grave que não possui condições financeiras de comprá-lo” e o “Dever do Estado de fornecer medicamento não registrado pela ANVISA.”
Nesta matéria o texto Constitucional apresenta, com muita clareza, nos seus arts. 196 e 198, II, o comando de que a saúde pública é direito de todos os cidadãos, correspondente ao dever do Estado, que deve prestá-la de maneira integral<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Essas disposições, é bom que se diga, estão alinhadas aos arts. 5o e 6o que tratam dos direitos fundamentais à vida, à saúde e à dignidade da pessoa humana, como também se conformam, e com perfeição, ao que está emoldurado no art. 3o, I da CF, o tão almejado objetivo fundamental de nossa república, formar uma sociedade livre, justa e solidária.
Da Carta se retira, portanto, que o Sistema Único de Saúde obedece aos princípios da universalidade e da integralidade, vale dizer, deve atender a todos, sobretudo os hipossuficientes, sem excluir de sua abrangência qualquer enfermidade diagnosticada ou, tampouco, tratamento médico disponível e eficaz a combatê-la, nem mesmo quando envolver fornecimento de medicamentos mais custosos do que os que constam da sua grade de dispensação.
É que muito embora revele direito social e seja de natureza programática, a norma constitucional que trata do direito à saúde não pode receber interpretação que exorte seu descumprimento. Como tem ensinado o Ministro Celso de Mello, “a interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional inconsequente“<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. O Ministro Gilmar Mendes deu o mesmo alerta: “dizer que a norma do art. 196, por tratar de direito social, revela apenas norma programática, incapaz de produzir efeitos, apenas indicando diretrizes a serem observadas pelo poder público significa negar a força normativa da constituição.”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Entendimento diverso outorgaria discricionariedade ao administrador público de tratar ou não um paciente, conforme fosse grave ou simples a sua enfermidade, conforme fosse caro ou barato o medicamento eficaz ao seu restabelecimento ou a preservação de sua vida. Mas a Constituição não o legitimou a este juízo de conveniência e oportunidade, quando configurou o serviço de saúde pública integral.
Pois a despeito da clareza do texto, os administradores do Estado, ente devedor da prestação de saúde pública, têm insistido em contestar esse direito social no ambiente judicial.
Dentre os argumentos que utilizam destacam-se a insuficiência de recursos (reserva do possível) e a desorganização administrativa que decorreria da judicialização dos pedidos de medicamentos.
A tese estatal não pode se legitimar. Muito embora a prestação de saúde pública integral seja efetivamente custosa, e isso não se pode negar, ela é a escolha, o desejo, a decisão da sociedade brasileira que foi assentada, e com bastante destaque, pelo redator originário da Carta Cidadã.
Deste modo, tratar integralmente nossos pares em situação de enfermidade é ônus constitucional do gestor público, que, aliás, assume o mandato ciente desta regra do jogo. Tem ele, o administrador, o poder de organizar o orçamento para cumpri-la, e, se não o faz, é por infidelidade à Constituição.
De um colega de tribuna ouvi um dos mais inteligentes argumentos a respeito da problemática orçamentária e administrativa que tanto acossa a fazenda pública na questão dos medicamentos. A reflexão foi formulada pelo Defensor Público Geral da União, Dr. Carlos Eduardo Paz. Disse ele, em síntese, que a coisa mais corriqueira neste país é o custo das obras públicas chegar ao final duas, três, cinco vezes mais caras do que o orçamento inicial e isso nunca foi motivo de alarde para administrador público algum. E porque o estardalhaço quando a questão se apresenta para tratamento médico de um enfermo? Por que se pode manejar o orçamento no primeiro caso e não no segundo?
De fato, conforme tem anunciado nesta matéria o Ministro decano do STF, Celso de Mello, com sua costumeira sabedoria, o administrador, que tem o poder de promover a gestão da coisa pública, não pode manipular sua atividade financeira e orçamentária para frustrar, fraudar e inviabilizar a efetivação de direitos fundamentais e a preservação de condições materiais mínimas de existência do cidadão.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Mas a ilegitimidade da tese fazendária está, em grau maior, na sua face política. Não se debateu a questão e suas consequências abertamente com a sociedade, conquanto lhe caiba, com exclusividade, a decisão maior na matéria, já que os custos do sistema único de saúde são, por ela, suportados.
De outro lado, o anseio da sociedade brasileira em relação ao SUS pode ser apreendido da postura dos candidatos nas campanhas eleitorais, quando, a cada período que se renova, se ouve a promessa de que prioridade será o investimento em saúde pública.
Não há dentre os que envergam ou postulam mandatos eleitorais aquele que defenda abertamente que deixar um indivíduo doente sem remédio é necessário para atender o interesse público maior. Não há o que proclame que a pessoa acometida de enfermidade grave ou rara terá de ser resiliente com o fato de que a sua doença não faz parte da política de tratamento do SUS. Não há o que proponha emenda constitucional para suprimir ou modificar os princípios da universalidade e da integralidade do texto maior.
A teoria da reserva do possível em matéria de atendimento de saúde pública, aplicada, assim, na prática, e às últimas consequências, só se defende no âmbito do processo judicial ou em reuniões de autoridades, jamais em debate aberto com os credores do sistema, com sua excelência, o pobre cidadão brasileiro.
Nesta perspectiva, a busca, no judiciário, de limitador(res) de tratamento para a pessoa carente que esteja acometida por doença grave é uma tentativa de transferir ao STF os ônus políticos da decisão restritiva de direitos e o desgaste social que representaria uma proposta de emenda constitucional com tal conteúdo.
E a Corte Suprema, é bom que se diga, jamais, ao menos até aqui, se deixou seduzir pela ideia. Há mais de 20 anos mantém estável sua jurisprudência na matéria<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, ponderando que sempre que confrontados o direito individual de preservação da vida humana e o interesse financeiro e administrativo do Estado, o primeiro é que deve prevalecer.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
Finalmente, do tanto o que foi dito e de tudo o mais que se possa dizer ou teorizar academicamente a respeito do significado efetivo do princípio da integralidade que rege o SUS, a verdade se resume a uma única pergunta formulada pelo cidadão doente ao Estado Juiz e que ecoa nas consciências republicanas e humanistas: “Vai me deixar morrer por falta de medicamento?”
O STF a responderá no julgamento.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Arts. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Agreg no RE 271.286-8/RS, Rel. Min. Celso de Mello.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Ag.Reg. na STA 175, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, Dje 25.03.2010;
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> ADPF 45, Rel. Min. Celso de Mello.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Pet 1.246-MC/SC, Ministro Celso de Mello; RE 195.192/RS, Rel. Min. MARCO AURÉLIO; RE 198.263/RS, Rel. Min. SYDNEY SANCHES; RE 237.367/RS, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA; RE 242.859/RS, Rel. Min. ILMAR GALVÃO; RE 246.242/RS, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA; RE 279.519/RS, Rel. Min. NELSON JOBIM;
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> ARE 867.023/RJ, Rel. Min. Celso de Mello.

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JOTA

“Vai me deixar morrer por falta de medicamento?”

Em jogo no STF o futuro da saúde pública brasileira

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