Mariana Saragoça

Andre Bogossian

Hodekirichardson Cunha

Um dos temas mais relevantes no setor de saneamento básico desde o processo de transição governamental decorrente das eleições passadas tem sido o arranjo de competências e poderes no setor. Particularmente, mesmo antes do início do novo governo havia a indicação de um movimento de alteração das competências referentes à edição de normas de referência. Conferidas pela Lei 14.026/2020 à então Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ana">ANA</a>), a proposta inicial era de que tais competências fossem destinadas para a Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental (SNS), que atualmente integra o refundado Ministério das Cidades.  
Assim, no primeiro dia de 2023 tivemos a edição da <a href="https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/155651">MP 1154</a>, que deu nova redação ao artigo 3º da Lei 9.984/2000, retirando a menção à elaboração de normas de referência como finalidade institucional da ANA. Também foi editado o Decreto 11.333/2023, que atribuiu à SNS competência para instituir normas de referência sobre o saneamento básico, sem expressamente revogar as disposições que haviam conferido tais prerrogativas à ANA. 
A reação da sociedade aos movimentos iniciais de alteração das atribuições na governança regulatória do setor de saneamento foi tal que o governo, por meio de manifestações de diversos integrantes, deu sinais indicativos de que as alterações não teriam passado de erros legislativos, e não prosperariam. 
Contudo, os desafios à manutenção das estruturas de governança regulatória em âmbito federal não pararam por aí. No início de fevereiro foi proposta emenda aditiva ao Projeto de Lei de Conversão referente à MP 1154/23, com o fim de instituir conselhos ligados aos ministérios e secretarias, que "atuarão nas funções de regulação, deslegalização e edição de atos normativos infralegais", retirando, na prática, a atribuição de editar normas regulatórias setoriais das agências reguladoras federais. 
A Emenda 54 traz a previsão de que tais conselhos sejam compostos "por representantes do ministério, da agência, dos setores regulados da atividade econômica, da academia e dos consumidores, aprovados pelo Congresso Nacional". Para tanto, a emenda propõe alterar todas as leis constitutivas de agências reguladoras em âmbito federal – no caso da ANA, criada pela Lei 9.984/2000, tal lei passaria a ter um artigo 4º-C, prevendo a criação do referido conselho e um parágrafo único prevendo que as decisões inerentes às atividades de contencioso administrativo da agência "serão de competência exclusiva de órgão administrativo julgador independente no qual se garanta o duplo grau de jurisdição e o direito à ampla defesa e contraditório". 
Normas de referência são “atos normativos infralegais” e sua edição pode inegavelmente ser considerada um exercício de soft regulation. Seria então a elas aplicável a alteração promovida pela Emenda 54, de modo que a competência para sua elaboração passaria a ser de conselho a ser constituído na administração direta federal para o setor de saneamento?  
Note-se que não se trata de uma tentativa de alteração específica de competências da ANA para elaboração de normas de referência, como as anteriores, mas de um movimento amplo (também não isento de críticas) de redirecionamento das competências normativas regulatórias em âmbito federal em que a ANA seria apenas uma das agências afetadas. Ainda assim, e mesmo caso a Emenda 54 venha a prosperar no processo de conversão da MP 1154 em lei, tal medida não pode ser interpretada para significar a retirada da competência da ANA para elaboração das citadas normas de referência. 
Em primeiro lugar porque, do ponto de vista formal, os principais dispositivos que atribuem tal competência permanecem vigentes e não são afetados por quaisquer das medidas propostas. Dentre outros, em especial nos artigos 1º e 4º-A da Lei 9.984/2000, conforme alterada pela Lei 14.026/2020, vemos que a agência permanece sendo responsável pela instituição de normas de referência no setor. A edição de “atos normativos infralegais” e o exercício de função regulatória por tais conselhos não necessariamente exclui o âmbito de competência que foi mantido com a ANA.  
Em outros termos: a atribuição de funções regulatórias e de edição de atos normativos infralegais a novas figuras não necessariamente exclui as competências atribuídas a outros entes. Pelo contrário, tem o condão de gerar maiores desafios para conciliação das normas produzidas por cada ente no quebra-cabeça normativo já bastante complexo aplicável ao setor de saneamento. 
Tanto é assim que a atribuição de competência para “atuação na regulação” do setor de saneamento ao futuro conselho, se a emenda prosperar, não vai significar uma redução da competência das entidades reguladoras locais e regionais vinculadas aos entes subnacionais titulares de tais serviços e às estruturas de regionalização que deles decorrerem. Nem poderia, por uma questão de competência constitucionalmente atribuída a tais entidades, que realizam a regulação direta dos serviços de saneamento inclusive por meio da adoção de normas de referência da ANA.  
Desse modo, será necessário fazer uma interpretação restritiva das pretensas modificações no arranjo institucional regulatório caso a Emenda 54 prospere. Deve ser preservada a atribuição da ANA para editar normas de referência no saneamento básico, com base no artigo 1º e 4º-A da Lei 9.984/2000, ainda que eventual futuro conselho a ser criado para o setor de saneamento básico com fundamento na conversão da MP 1154 também possua atribuições normativas, cujo exercício deve ser realizado sempre em harmonia e coordenação com as normas de referência da ANA.

marco legal do saneamento

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JOTA

Deve ser preservada a atribuição da agência para editar normas de referência no setor

Em defesa do papel da ANA na governança regulatória do saneamento básico

Deve ser preservada a atribuição da ANA para editar normas de referência no saneamento básico