Fabio Feldmann

Suely Araújo

Rafael Giovanelli

A longevidade da democracia depende da qualidade do sistema de freios e contrapesos estabelecido pela Constituição. Depende também da obediência, pelos atores políticos, de duas regras não-escritas: a mútua tolerância e a autocontenção. A primeira delas convida grupos adversários a se reconhecerem, reciprocamente, como “rivais legítimos” no jogo democrático. A segunda os encoraja a resistirem à tentação de extrapolarem suas competências funcionais; poderia ser traduzida pela velha máxima da moderação no exercício do poder.
Autocracias tomam o lugar das democracias quando a pluralidade é sufocada pela concentração de poder. Se no século passado a América Latina sofreu nas mãos de ditaduras instauradas a partir de movimentos abruptos e golpes de Estado, no século XXI o fim das democracias costuma ser mais sutil. Resulta de um lento processo erosivo, que se inicia com violações reiteradas das regras não-escritas. Ausentes o respeito pela divergência política e a moderação institucional, a sociedade se polariza e os grupos se radicalizam. Intensificam-se, então, as alterações das normas escritas de divisão de poder, para benefício exclusivo dos mandantes da ocasião. Essas alterações costumam aparentar “legalidade”, afinal ou são chanceladas pelo Poder Legislativo, ou são toleradas pelas Cortes Constitucionais. Essencialmente, porém, abalam as estruturas democráticas. Foi o que aconteceu na Venezuela, na Turquia e na Hungria, entre outros países<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>O relevo dessas ameaças à democracia não passa desapercebido nos debates acadêmicos, como vemos no artigo A degradação da democracia americana e a Corte<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, do jurista Michael Klaumann, publicado na Harvard Law Review. O autor sugere um “roteiro“ (“authoritarian playbook”), utilizado, mundo afora, por governantes que desprezam a democracia: desqualificação da imprensa, ataques à independência do Judiciário, estímulo à violência, uso da mentira, entre outras práticas políticas.
Uma lição relevante que se pode e deve extrair dessa análise é que, em busca da estabilidade democrática, o Poder Judiciário precisa agir com bravura e temperança. Reconhecer os posicionamentos dos atores do jogo político, assumindo em princípio que seus projetos estão imbuídos de intenções legitimadas pelas urnas. Não exorbitar de suas prerrogativas, limitando seu poder de decisão às balizas constitucionais. Mas, sem titubeios, extirpar do ordenamento jurídico ilegalidades evidentes e as tentativas de subversão da ordem democrática – os atos tendentes a concentrar poderes, cercear direitos, tolher liberdades cívicas e reduzir transparência. No equilíbrio entre essas duas virtudes, a temperança jamais deve servir de escusa para desvanecer a coragem.
O Supremo Tribunal Federal (STF) tem trabalhado razoavelmente bem esses dois predicados. Vem evitando imiscuir-se demasiadamente em assuntos afetos exclusivamente a outros Poderes, como ficou claro na recente decisão da ministra Rosa Weber sobre a votação presencial para as mesas do Congresso Nacional<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Ao mesmo tempo, tem sido firme na adoção de medidas de proteção das instituições republicanas e da cidadania: desmobilizou uma rede criminosa de notícias falsas que ameaçava o Poder Judiciário; garantiu transparência, quando a pandemia foi usada como desculpa para reduzir o acesso à informações públicas; exigiu respeito ao direito à saúde dos povos indígenas, determinando a elaboração de um plano de enfrentamento e monitoramento da Covid-19; e reconheceu a competência comum dos entes federativos para cuidar da saúde pública, impedindo centralizações disfuncionais.
No entanto, a ordem constitucional democrática é refém de outras graves ameaças, sobre as quais a nossa Corte Suprema ainda precisa se posicionar de modo definitivo com rapidez.
Desde que assumiu a Presidência da República, a atual gestão tem envidado reiterados esforços para minar a participação social na formulação e monitoramento de políticas sociais, em seus mais variados eixos temáticos. Foi assim com políticas de saúde e assistência social, com a extinção branca do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA)<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> e com a exclusão da participação da sociedade civil no Conselho Nacional de Política sobre Drogas (CONAD). Foi assim com as políticas de educação, com a profunda fragilização do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA). E tem sido assim também com a pauta do meio ambiente.
De acordo com levantamento elaborado pelas organizações Artigo 19, IMAFLORA e Instituto Socioambiental<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, cerca de 60% dos colegiados associados às políticas socioambientais foram extintos ou reestruturados de modo a cercear a participação social. Incluem-se entre eles o Comitê Gestor do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima, o Conselho Deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente e o Conselho Orientador do Fundo Amazônia. Em um passado recente, todos esses fundos desempenharam papel importante em políticas bem sucedidas de combate e prevenção ao desmatamento. Infelizmente, hoje, batemos sucessivos recordes nas taxas de destruição de nossas florestas.
Como se isso não fosse suficiente, a retração democrática também atingiu o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), órgão colegiado que tem papel fundamental na política ambiental. E atingiu em cheio.
<blockquote class="jota-article__eye">O CONAMA é um dos mais importantes e longevos colegiados da política brasileira. Foi criado em 1981 e aprovou suas primeiras resoluções em 1984.</blockquote>
Desempenha papel consultivo e deliberativo no Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA). É responsável por criar normas de controle da qualidade do meio ambiente, figurando como um verdadeiro formulador dos regramentos ambientais de caráter nacional. Hoje, existem 224 Resoluções do CONAMA em vigor, que tratam dos mais variados e importantes assuntos, como licenciamento ambiental, qualidade das águas e do ar, proteção da biodiversidade, mudanças de clima e desmatamento, entre outros temas.
Ao longo das últimas décadas, essas normas foram elaboradas com ampla participação, o que lhes conferia legitimidade social e precisão técnica. Diversos segmentos sociais eram ouvidos e tinham seus argumentos considerados. Grupos empresariais, entidades ambientalistas, povos indígenas e tradicionais, representantes da comunidade científica, autoridades federais, estaduais e municipais. A formação do colegiado era equilibrada, promovia o diálogo qualificado e estimulava a composição de interesses. Nas palavras do saudoso Paulo Nogueira Neto, o CONAMA era uma espécie de “Parlamento Ambiental”. Uma instituição de vanguarda para o fortalecimento da democracia verde.
No entanto, o advento do Decreto nº 9.806, de 28 de maio de 2019, alterou profundamente a divisão interna do CONAMA, acabando com qualquer possibilidade de participação efetiva da sociedade civil em seu processo deliberativo.
<blockquote class="jota-article__eye">De modo desproporcional, esse decreto concentrou poderes decisórios no Executivo federal, subvertendo o Parlamento Ambiental em um órgão de governo em que sequer ocorre processo efetivo de debate.</blockquote>
Há decisões chancelando o posicionamento do ministro do Meio Ambiente, não um processo real de deliberação.
Ao reduzir o número de conselheiros que compõe o colegiado, o Decreto nº 9.806/2019, retirou, proporcionalmente, mais cadeiras dos representantes da sociedade civil e dos Estados Federados. Povos indígenas, comunidades tradicionais e a comunidade científica (na figura da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC) perderam a representação específica a que tinham direito. Estão alijados do processo deliberativo. O Poder Executivo federal, por sua vez, ganhou cadeiras, proporcionalmente.
O que houve, de fato, foi uma transferência do poder de voto da sociedade civil e dos estados federados para o Executivo federal. Atualmente, este detém 10 dos 23 votos (43%), enquanto as entidades ambientalistas têm 4  (17%). Nas últimas décadas, jamais houve tamanho desequilíbrio na proporcionalidade.
Ademais, a sociedade civil perdeu o direito de escolher seus representantes. Os conselheiros ambientalistas, antes eleitos por seus pares, agora são nomeados por um obscuro sorteio, o que prejudica sobremaneira a qualidade da representação dos ambientalistas. As entidades sorteadas ficam longe de ter a legitimidade auferida pela regra anterior.
Na configuração do CONAMA dada pelo Decreto nº 9.806/2019, as vozes de ambientalistas foram silenciadas. A opinião dos governantes se tornou hegemônica. Os caminhos do diálogo e da construção coletiva de soluções para os desafios contemporâneos se estreitaram perigosamente – se é que não se fecharam completamente. As graves consequências disso para o meio ambiente já foram sentidas. Regras fundamentais para a gestão de recursos hídricos<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a> e para o controle da qualidade do ar<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a> foram revogadas e alteradas de forma voluntarista e açodada. Aliás, o voluntarismo e a inconstitucionalidade da revogação das Resoluções nº 284/2001, nº 302/2002 e nº 303/2002, foram reconhecidas pelo próprio Supremo Tribunal Federal. Seguindo voto magistral da eminente ministra Rosa Weber, o plenário, por unanimidade, reestabeleceu os efeitos das normas<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>.
Diversas outras ameaças pairam no ar, como a a aprovação de uma ampla lista de espécies da fauna silvestres que poderão ser criadas e comercializadas como animais de estimação. Aves ameaçadas de extinção, como o papagaio charão e o papagaio-do-peito-roxo, estão no rol. Também constam o canário-da-terra, o curió, o trinca-ferro e a arara-kanindé (entre outros), que estão entre as aves mais traficadas do país. A lista, que pode representar um salvo-conduto para o crime e a corrupção, certamente resultará na retirada massiva de animais dos seus habitats.  Esse é apenas um entre vários exemplos.
A Constituição Federal e a normativa internacional garantem à sociedade civil o direito de participar, de modo efetivo, da formulação, monitoramento, avaliação e controle de políticas ambientais. Essa é uma regra expressa no parágrafo único do artigo 193 do Texto Constitucional, e um princípio implícito no artigo 225. A Convenção Americana de Direitos Humanos, por sua vez, impõe ao Poder Público o dever de assegurar a realização desse direito, como registrou, peremptoriamente, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, na Opinião Consultiva n. 23, de 2017. A participação social é o principal instrumento para garantir que as decisões políticas de fato satisfaçam o interesse público e o bem comum.
Com base nisso, ainda em 2019, a Procuradoria-Geral da República bateu às portas do STF contra o decreto que alterou a composição do CONAMA<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>. Por um lado, a virtude da moderação aconselhou a Corte a ouvir atentamente as razões que levaram a Administração Pública a reformar o colegiado, além de aguardar para observar como se daria o funcionamento do órgão no novo modelo; por outro, a sucessão dos fatos já comprovou a deterioração democrática e os riscos de degradação ambiental advindos desse formato.
Entramos no terceiro ano do mandato de uma gestão que flertou com a extinção do Ministério do Meio Ambiente, ensaiou abandonar o Acordo de Paris, prometeu acabar com a fiscalização ambiental e tem fragilizado a proteção de Unidades de Conservação. Quanto mais o tempo passa, mais se consolida o modo autocrático, ineficaz e ineficiente de gestão da política ambiental. É chegada, então, a hora de a temperança dar lugar à coragem. O Supremo Tribunal Federal precisa declarar a inconstitucionalidade do Decreto nº 9.806/2019, antes que seja tarde demais.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Essa tese é bastante conhecida da ciência política. Foi apresentada por Steven Levistsky e Daniel Ziblatt, no livro Como as Democracias Morrem, escrito para alertar a sociedade norte-americana sobre os graves riscos a que seu país estava submetido sob o governo Trump. Com trilhas parecidas, podem ser citadas outras obras, como Ruptura – A crise da democracia liberal, de Manuel Castells.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> No original: The Degradation of American Democracy – And The Court. Disponível em: <a href="about:blank">https://harvardlawreview.org/2020/11/the-degradation-of-american-democracy-and-the-court/</a>
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> MS 37.647.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura – FAO/ONU, o CONSEA desempenhou papel fundamental para o êxito, nas décadas passadas, das políticas de combate à fome no país. Disponível em: <a href="about:blank#:~:text=Direitos%20Humanos-,Extinto%20pelo%20governo%2C%20Consea%20%C3%A9%20essencial%20para,%C3%A0%20fome%2C%20diz%20Na%C3%A7%C3%B5es%20Unidas&amp;text=Criado%20em%201993%2C%20pelo%20ent%C3%A3o,2003%2C%20no%20primeiro%20governo%20Lula">https://www.camara.leg.br/noticias/556204-extinto-pelo-governo-consea-e-essencial-para-combate-a-fome-diz-nacoes-unidas/#:~:text=Direitos%20Humanos-,Extinto%20pelo%20governo%2C%20Consea%20%C3%A9%20essencial%20para,%C3%A0%20fome%2C%20diz%20Na%C3%A7%C3%B5es%20Unidas&amp;text=Criado%20em%201993%2C%20pelo%20ent%C3%A3o,2003%2C%20no%20primeiro%20governo%20Lula</a>. Acesso: 26.11.2020.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a>Ver: <a href="about:blank">https://www.imaflora.org/public/media/biblioteca/mapeamento_dos_retrocessos_de_transparencia_e_participacao_social_na_politica_ambiental_.pdf</a> . Acesso: 10/02/2021.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a>Foram revogadas: a Resolução CONAMA nº 284/2001 (licenciamento ambiental de empreendimentos de irrigação); a Resolução CONAMA nº 302/2002 (uso do entorno de reservatórios artificiais); e a Resolução CONAMA 303/2002 (regras sobre as áreas de preservação permanente).
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a>Revogação da Resolução CONAMA nº 264/1999 e aprovação da Resolução CONAMA nº 499/2020, estabelecendo novas regras para o licenciamento ambiental da atividade de coprocessamento de resíduos em fornos rotativos de produção de clínquer.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> ADPF 747 – MC-Ref/DF
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> ADPF 623.

Conservação da floresta Amazônica

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JOTA

Decreto nº 9.806, de 28/05/2019, acabou com participação da sociedade civil no processo deliberativo do CONAMA

Em defesa do Conselho Nacional do Meio Ambiente

Decreto nº 9.806, de 28/05/2019, acabou com participação da sociedade civil no processo deliberativo do CONAMA