Roberto Fragale Filho

<p>Nesses últimos anos, o Judiciário saiu da penumbra, virou notícia jornalística e objeto acadêmico. De repente, olhares múltiplos e plurais por ele se interessaram, introduzindo-o em suas agendas de trabalho. Esforços explicativos sobre o processo decisório do Supremo Tribunal Federal (STF) e seu impacto sobre a democracia tornaram-se assunto do dia. Especulações em torno dos processos de escolha e de nomeação de seus ministros foram integradas à análise dos comentaristas políticos. Exercícios analíticos para dar inteligibilidade a categorias como judicialização da política e das relações sociais continuam sendo empreendidos, ainda que nem sempre com razoável êxito. Enfim, o judiciário está na vitrine, o que é, sem dúvida, algo muito bom, pois esta exposição contribui para uma maior transparência no trato de uma dimensão quase esquecida da coisa pública: a adjudicação. Há, entretanto, dois problemas com esses olhares: de uma parte, eles tratam o judiciário como um todo homogêneo, eliminando muito da heterogeneidade interna que alimenta suas divergências e, de outra parte, eles concentram seu interesse nas cúpulas, como se as jurisdições de base pouco ou nada interferissem na atuação do judiciário.<br />
Esses dois problemas fazem com que a recuperação da memória do judiciário seja essencialmente feita a partir de sua cúpula com ênfase nas trajetórias individuais de seus membros. Poucos são os esforços de recuperação ou conservação da memória judicial do primeiro grau de jurisdição. Há, evidentemente, exceções como, por exemplo, o trabalho realizado pelo Memorial do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-RS), cujas iniciativas de salvaguarda de processos, de coleta de depoimentos e de institucionalização de centros regionais de memória são louváveis. Esta mesma preocupação esteve presente na pesquisa realizada pelo Núcleo de Pesquisa sobre Práticas e Instituições Jurídicas (NUPIJ) da Universidade Federal Fluminense (UFF) com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em 2006-2007 sobre a memória judiciária trabalhista de São João de Meriti, que resultou na publicação do artigo “Perto do mundo, longe da Capital: acesso à justiça e jurisdição trabalhista no município de São João de Meriti” em Passagens - Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica. Retomada agora em 2015, a pesquisa reconstitui a história de magistrados, servidores e advogados – operários do direito – em torno de uma litigância local de quase quatro décadas. São histórias esquecidas sobre o fazer justiça no cotidiano que ajudam a compreender os conflitos do trabalho na periferia de uma metrópole. Nesse processo, chama atenção a fragilidade dos dados institucionais, cujos registros precários nem sempre correspondem à memória coletiva.<br />
Assim, estatísticas precárias não dão conta do impacto da crise econômica oriunda do Plano Collor, que destroçou a indústria local do jeans com forte impacto na litigância trabalhista, e fichas funcionais incompletas não traduzem os intricados processos de movimentação profissional de servidores e magistrados. A ausência de uma preocupação memorialística faz com que se perca a exuberância de um passado rico, profundamente articulado com a história do grupo Sendas, cuja origem remonta ao bairro de São Mateus em São João de Meriti. Grande foi a surpresa dos pesquisadores ao descobrir que a comarca teve um primeiro juiz titular, Paulo Leal Netto Machado, que ali permaneceu por apenas quatro meses entre 1978 e 1979, sem maiores registros institucionais. Na verdade, em diferentes entrevistas, ele foi lembrado pelos advogados mais antigos da comarca como o juiz que levou uma facada de um bancário, reclamante insatisfeito com a decisão de seu processo. O curioso é que o episódio, verdadeiro, não ocorreu com ele, mas com outro juiz trabalhista quase três anos mais tarde, conforme registro da edição do jornal O Globo de 11 de janeiro de 1982. Essa curiosidade da crônica policial judiciária pode ser um caminho inesperado para compreender a litigância trabalhista bancária, que deixou de referir-se a um mundo de escriturários e câmaras de compensação noturnas para agora lidar com um ambiente asséptico, transbordando de tecnologia, e com redução de empregados. Esse caminho inesperado revela a riqueza da memória judicial de litígios locais, repleta de histórias prosaicas e circunstâncias inesperadas, que se perde com a ausência de sua preservação ou em função do interesse quase exclusivo pela história de cúpula. Recuperar essa memória é um grande desafio para melhor entender as articulações entre judiciário e sociedade, seus diferentes momentos e suas prováveis possibilidades. Afinal, o judiciário tornou-se uma interessante e crescente interface dos inúmeros dilemas da sociedade. Deixar essa interlocução esvair-se é desperdiçar a riqueza de uma história pedindo para ser contada, é desperdiçar todo o potencial explicativo existente na litigiosidade que nunca ganha a vitrine dos tribunais superiores. Em suma, combater esse desperdício é urgente para que toda essa riqueza não se perca.</p>


Judge’s gavel and very old legal book with watch

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Em busca da memória judicial perdida

Judiciário e sociedade