Paulo Fernando Pinheiro Machado

Na área das finanças, 2021 foi a crônica de uma morte anunciada. Como viemos alertando ao longo do <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/estagflacao-omicron-e-o-fim-da-globalizacao-10122021">ano aqui nesta coluna</a> <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, a inflação aliada à estagnação da atividade econômica devoraram os rendimentos das aplicações financeiras no ano passado, com o Ibovespa “figurando entre os piores desempenhos globais”, segundo o Valor Econômico <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. O único investimento que fechou 2021 com ganho real foi o bitcoin, com valorização acumulada de 71% em dezembro, em um cenário no qual a inflação oficial está prevista para fechar em 10,04% <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Todos os outros investimentos financeiros fecharam o ano com perdas reais.
Seria esse resultado uma evidência da pujança das criptomoedas? Um indicativo de que, na atual guerra monetária internacional — cujos principais aspectos já tivemos ocasião de analisar <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-lei-de-gresham-as-govcoins-e-as-criptomoedas-18062021">nesta coluna</a> <a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> —, o bitcoin estaria tomando a dianteira, pavimentando o caminho para que as próximas décadas sejam marcadas por um processo de descentralização monetária, com menos controle por parte dos bancos centrais? Muita calma nesta hora, cara leitora. Olhar para uma coisa é muito diferente de ver uma coisa.
Concluir pela vitória das criptomoedas na disputa pela definição do novo padrão monetário internacional seria apenas olhar para o seu desempenho nominal. Para ver realmente o fenômeno, para compreender a sua real dimensão e as consequências que trará no futuro, é preciso encontrar a sua beleza, a sua essência real. Aqui, a questão primordial é estabelecer se as criptomoedas são um ativo financeiro com valor real, capaz de materializar um investimento ou se são apenas um veículo de especulação. A valorização acumulada de 71% em 12 meses, de fato, não parece bonita. Parece macunaímica.
Nassim Nicholas Taleb já chegou mesmo a afirmar que o bitcoin é como a bolha das tulipas sem a estética e disfarçada de “moeda”. O intelectual levantino fazia referência ao famoso episódio, ocorrido no século 17 na Holanda, da “loucura das tulipas”, quando ocorreu um verdadeiro frenesi especulativo pelas flores, cujos preços dispararam para, como sói acontecer, despencar logo após, levando consigo uma torrente de especuladores para a ruína. Sou forçado a concordar com Taleb, esteticamente não há comparação entre uma tulipa e um token digital.
O escritor escocês Charles Mackay (1814-1889), autor das famosas "Memoirs of Extraordinary Popular Delusions and the Madness of Crowds", descreve o episódio como “tendo sido pendurada uma isca dourada tentadoramente diante do povo, e um após o outro, todos correram para os mercados das tulipas, como moscas em torno de um pote de mel. Nobres, cidadãos, fazendeiros, mecânicos, marinheiros, lacaios, criadas, até limpadores de chaminés e costureiras, todos especulavam em tulipas”. Soa familiar, não?
A essência da crítica de Taleb, de fato, é bastante pungente. Em um paper altamente técnico, Taleb conclui que “em sua versão atual, apesar do exagero, o bitcoin falhou em concretizar o conceito de 'moeda sem governo' (provou nem mesmo ser uma moeda), não podendo ser uma reserva de valor de curto nem de longo prazo (seu valor esperado não é superior a 0), não podendo operar como um hedge de inflação confiável e, o pior de tudo, não constituindo, nem mesmo remotamente, um porto seguro para os investimentos de alguém, um escudo contra a tirania do governo ou um veículo de proteção para episódios catastróficos” <a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Para ele, as criptomoedas não passariam de uma pirâmide ponzi.
As criptomoedas em geral, e o bitcoin em particular, segundo Taleb, seriam apenas e tão somente uma entrada em um registro público (blockchain), isto é, elas não possuem valor residual e nem geram proventos de qualquer natureza. Por isso, segundo os modelos clássicos de avaliação de instrumentos financeiros, o valor presente de um ativo deve incluir as suas expectativas de ganhos futuros, que, no caso das criptomoedas, é zero, porque há um custo alto em energia para a manutenção da rede, que é infinito, ao passo que o número de bitcoins a serem minerados é finito, o que faz com que o sistema tenda a se extinguir no longo prazo. Isso sem mencionar a possibilidade de ocorrer alguma falha na internet.
A comparação do bitcoin com o ouro, ainda segundo Taleb, seria fruto de “falta de rigor financeiro”. O ouro, segundo ele, teria sido selecionado como reserva de valor de maneira orgânica, através de séculos de competição com outras soluções disponíveis. Em particular, Taleb chama a atenção para o fato de que, por mais de dois milênios, antes mesmo de ser usado como moeda, o ouro já atraía uma fascinação justamente por suas propriedades estéticas e o seu uso em joalheria. O ouro, assim, não teria sido selecionado do nada, ex ante, pela mera publicação de um "white paper". É preciso enxergar beleza para se ver alguma coisa.
Aliás, ausente qualquer valor intrínseco às criptomoedas – em particular estético, a sua utilização como hedge contra a inflação tem como pressuposto a manutenção do seu nível tecnológico, isto é, de que não haverá no futuro a introdução de uma nova tecnologia que torne a blockchain obsoleta. Taleb menciona o caso das fichas telefônicas na Itália, os gettoni, utilizados para pequenas compras, como um café expresso, por exemplo, mas não para transações mais significativas, como a compra de um Alfa Romeo.
Lembro-me de que, quando garoto, o mesmo fenômeno monetário se dava em Curitiba com as fichas de vale-transporte, os VTs, utilizados para comprar sanduíches e refrigerantes, carregados em recheadas carteiras de velcro. A inovação tecnológica dispensou tanto os VTs como os gettoni. Nada impede que uma nova tecnologia torne a blockchain obsoleta, risco real cuja integração na avaliação presente do bitcoin faria com que, necessariamente, o seu valor fosse igual a zero. O resto não passa de especulação. “Poucos ativos na história financeira”, arremata Taleb, “foram mais frágeis do que o bitcoin”.
Confesso que a crítica de Taleb me fez olhar com mais atenção para os detalhes técnicos das criptomoedas. Seguirei olhando, buscando ainda encontrar alguma beleza nelas. Por enquanto, olho, olho e não vejo nada que se pareça, minimamente, com a Minnie Driver. Seguirei buscando. Quem procura acha. Afinal, a beleza está nos olhos de quem vê, não é mesmo?
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/estagflacao-omicron-e-o-fim-da-globalizacao-10122021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/estagflacao-omicron-e-o-fim-da-globalizacao-10122021</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> <a href="https://valor.globo.com/financas/noticia/2021/12/30/inflacao-bate-retorno-das-aplicacoes-no-ano.ghtml">https://valor.globo.com/financas/noticia/2021/12/30/inflacao-bate-retorno-das-aplicacoes-no-ano.ghtml</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> <a href="https://valor.globo.com/financas/noticia/2021/12/30/so-aplicacao-em-bitcoin-ganhou-da-inflacao-em-2021.ghtml">https://valor.globo.com/financas/noticia/2021/12/30/so-aplicacao-em-bitcoin-ganhou-da-inflacao-em-2021.ghtml</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-lei-de-gresham-as-govcoins-e-as-criptomoedas-18062021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-lei-de-gresham-as-govcoins-e-as-criptomoedas-18062021</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> TALEB, N.N. Bitcoin, Currencies, and Fragillity. arxiv.org/abs/2106.14204

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