Alice de Perdigão Lana

André Houang

No início deste ano, artistas renomados como Gilberto Gil, Joyce e Zeca Pagodinho se manifestaram revoltados em suas redes sociais. O motivo: o uso de obras musicais, sem autorização prévia, para criação de paródias por candidatos. O caso concreto é de 2014, em que o palhaço e deputado federal Tiririca utiliza o clássico de Roberto Carlos e Erasmo Carlos “O portão” para criar o refrão “<a href="https://www.youtube.com/watch?v=NSVc9Ce_sMg">eu votei, e de novo eu vou votar. Tiririca, Brasília é o seu lugar</a>”. O STJ pausou o julgamento dos embargos, que são relevantes para as discussões de limitações e exceções aos direitos autorais, bem como as bases para sua caracterização no Brasil.
Justamente em <a href="https://www.jota.info/eleicoes">ano eleitoral</a>, esse tema polêmico voltou ao Judiciário: o uso de obras protegidas em campanhas políticas. Neste ano, dois processos enriqueceram as conversas sobre o tema: o julgamento do TJSP do caso do uso, sem autorização, de música de Marisa Monte e Arnaldo Antunes pelo político João Doria, em gravação de evento; e a volta à pauta do STJ do uso de paródias em campanhas políticas — especificamente, paródia de música de Roberto e Erasmo Carlos em campanha do então candidato Tiririca.
Para entender a discussão, é preciso rememorar alguns preceitos básicos do direito autoral, que se divide entre direitos patrimoniais e direitos morais. Os direitos patrimoniais, previstos nos arts. 28 e seguintes da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9610.htm">Lei 9.610/98</a> (Lei de Direitos Autorais) são os direitos de usar, fruir e dispor de uma obra protegida. Já os direitos morais, regrados nos arts. 24 a 27 da lei, decorrem do entendimento de que a obra é uma extensão da personalidade do criador, que tem o direito de reivindicar sua autoria, de assegurar sua integridade (podendo opor-se a atos que prejudiquem sua reputação ou honra) e de modificá-la. Muitas das polêmicas em torno do uso de obras protegidas em campanhas políticas dizem respeito aos direitos morais do autor, que ora não querem ter sua obra associada a determinado candidato, ora se opõem a usos transformativos dessas mesmas obras.
Um segundo ponto de atenção consiste nas limitações e exceções previstas na LDA. Elas são casos específicos, exemplificados na lei, em que o uso da obra pode ocorrer sem ser necessária a autorização específica do titular dos direitos autorais — como, por exemplo, a citação de pequenos trechos. As limitações e exceções são parte fundamental do direito autoral, tanto que alguns autores europeus têm preferido adotar terminologia que reflitam essa importância, como “direitos dos usuários”. A razão de ser dessas limitações e exceções é assegurar o exercício de direitos fundamentais, como o acesso à educação e à cultura e a <a href="https://www.jota.info/coberturas-especiais/liberdade-de-expressao">liberdade de expressão</a>.
A lei brasileira prevê no art. 46 um rol de limitações e exceções, que não inclui o uso de obras protegidas para campanhas políticas. O STJ, no entanto, já decidiu em repetidas ocasiões que o rol previsto na lei é meramente exemplificativo, conforme claramente previsto no <a href="https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/1310">Enunciado 115 do Conselho da Justiça Federal</a> e tem usado critérios como a regra dos três passos para avaliar se o uso de uma obra viola os direitos de seu titular. Já o art. 47 da lei limita os direitos autorais no caso de paródias, especificando que “paráfrases e paródias” são permitidas desde que não sejam “verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito”. Essa redação é frequentemente criticada, já que o propósito do uso de obras protegidas em paródias e outros usos com finalidade cômica é justamente o de, em maior ou menor grau, afrontar a obra original.
Os casos sobre o uso de obras protegidas em campanhas políticas geralmente envolvem o uso de obras musicais, seja de forma inalterada em eventos e materiais políticos, seja na forma de paródias para propagandas eleitorais. E foram justamente dois destes casos, de uso de músicas em propagandas eleitorais, que entraram em pauta novamente neste ano.
O primeiro caso envolve o político João Doria. O TJSP julgou, em 2 de fevereiro de 2022, o <a href="https://internetlab.org.br/pt/semanario/11-02-2022/#18506">caso do uso da música original, sem paródia, dos artistas Marisa Monte e Arnaldo Antunes por Doria</a>, então prefeito de São Paulo. A música foi utilizada, sem autorização, em gravação realizada para divulgar em 2017 evento organizado pela Nike em parceria com a Prefeitura de São Paulo. O tribunal decidiu que o uso da obra infringiu tanto os direitos morais quanto os direitos patrimoniais dos compositores, condenando Doria ao pagamento de indenização.
O segundo caso, por sua vez, não versa sobre uso de música original, mas sim paródia, e entrou na pauta do STJ. Em 9 de fevereiro, o relator ministro Luis Felipe Salomão apresentou seu voto nos embargos de divergência em recurso especial nº 1810440 - SP. O caso envolve o uso pelo deputado federal Tiririca da música “O portão” de Roberto Carlos e Erasmo Carlos. O então candidato à reeleição em 2014 fez uma paródia da música em sua propaganda eleitoral, alterando a clássica letra para “eu votei e de novo eu vou votar… Tiririca, Brasília é o seu lugar”.
A gravadora alegou que a paródia infringia os direitos morais dos músicos, especialmente o direito moral de integridade, ou seja, o direito de “assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra” (art. 24, inciso V da LDA).
Na decisão sobre o recurso especial, o relator ministro Marco Aurélio Bellizze deu razão ao partido do então candidato, enquadrando a versão de Tiririca enquanto paródia respaldada pelo art. 47 da LDA. Conforme o voto do relator, a LDA é precisa em garantir a proteção às paródias como obras autônomas, sem haver necessidade de prévia autorização. O ministro ainda considerou que a paródia não ofendeu outros candidatos ou os autores da música original. A 3ª Turma do STJ, em 2019, seguiu o relator e decidiu, por unanimidade, que o deputado Tiririca <a href="https://www.youtube.com/watch?v=gWvuVx9A2MY">não violou direitos autorais</a> ao realizar a paródia. Os artistas opuseram então embargos de divergência, alegando que havia decisões contraditórias a respeito do enquadramento de um uso de obra protegida enquanto paródia no sentido do art. 47 da lei. Os embargos aguardam decisão final.
<a href="https://www.youtube.com/watch?v=NlYGxVK4q0A">Em sessão de fevereiro de 2022</a>, os ministros votaram pelo conhecimento dos embargos, e o relator, ministro Salomão, apresentou seu voto. Ele afirma que um jingle político pode caracterizar uma paródia de livre elaboração e exploração nos termos do art. 47 da LDA, desde que observados determinados requisitos objetivos. O relator afirmou que a finalidade eleitoral, comercial ou publicitária de uma paródia não é fator impeditivo da configuração da paródia, e apresenta como requisitos para a caracterização da paródia: (i) a criatividade da nova obra, (ii) a ausência de efeito desabonador da obra originária, (iii) o respeito à honra, intimidade, imagem e privacidade de terceiros, (iv) a observância do direito moral do ineditismo do autor e (v) o atendimento da regra do teste dos três passos.
No caso da propaganda de Tiririca, o relator concluiu que todos esses requisitos foram satisfeitos. Para ele, a natureza satírica da propaganda satisfaz o requisito de criatividade, não houve qualquer constrangimento à dignidade da pessoa humana e a regra dos três passos foi atendida. A votação do mérito da matéria, no entanto, foi interrompida com o pedido de vistas do ministro Raul Araújo. Dessa forma, o assunto ainda não foi decidido.
Os casos jogam luz sobre um tema de crescente importância no direito autoral. O uso de obras protegidas por políticos é tema de questionamentos importantes: em que ocasião um político pode usar obras protegidas e em quais hipóteses o autor pode vedar esse uso? A resposta a essas perguntas não é simples e deve se guiar por balizas como a forma do uso da obra (execução pública em comício ou reprodução em material publicitário), usos não alterados de usos transformativos, e a natureza desse uso transformativo, de forma a avaliar se ele pode ser caracterizado como paródia.
Além de seguir esses critérios, a análise do uso político de obras protegidas deve buscar um equilíbrio entre a proteção dos direitos morais dos artistas e o direito da coletividade, de poder elaborar, divulgar e acessar paródias — inclusive fora do contexto eleitoral. O uso integral e não alterado de uma obra em um vídeo publicitário não deve ser tratado da mesma forma que um uso transformativo com cunho cômico.

tiririca

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JOTA

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