Teresa Melo

A eleição da Mesa da Câmara dos Deputados para o biênio 2020-2022 ficará para a história brasileira por muitos motivos. Um deles tem forte impacto nas regras do jogo democrático: a apresentação de candidaturas avulsas para os cargos da Mesa cuja indicação cabia aos partidos de oposição ao governo. A eleição para a Mesa Diretora segue o princípio da proporcionalidade partidária (verificada no início de cada legislatura) e, por isso, somente podem ser candidatos a cada cargo da Mesa os parlamentares filiados ao partido a quem cabe a indicação – ou para quem o partido que indica cedera a vaga. Essas candidaturas avulsas para a Mesa não se confundem, por sua vez, com a discussão sobre a constitucionalidade de candidaturas avulsas em sentido lato, matéria já judicializada perante o Supremo Tribunal Federal (STF). Trato dos dois fenômenos, ainda que a relação entre eles pareça não existir.
Após idas e vindas e diversos acordos, coube ao PT a indicação para a 2ª secretaria, e ao PDT e ao PSB a escolha de dois suplentes, um de cada partido. Em regra, o partido apresenta um único candidato para a vaga em disputa e a votação ocorre principalmente para efeito de verificação de quórum. A novidade da última eleição, porém, refere-se à apresentação de dois candidatos por todos os partidos da oposição com assento na Mesa: um oficial e um “avulso”. Os candidatos avulsos do PT e do PSB não constavam do acordo firmado no Colégio de Líderes, mas venceram as eleições – contra o seu próprio partido. O candidato avulso do PDT, se não tivesse retirado a sua candidatura, provavelmente também teria sido vencedor.
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O fato corresponde a mais um exemplo de que o sistema de partidos políticos está em crise e que a maioria partidária da Câmara dos Deputados se beneficiou do “racha” dos partidos da oposição para diminuir a força de seus candidatos oficiais para a eleição da direção da Câmara. A disputa interna na última eleição da Mesa também relativiza, na prática, um entendimento até hoje prevalente no mercado das ideias políticas: o de que os partidos políticos representam uma contenção, um filtro necessário ao bom funcionamento do sistema representativo e, como decorrência lógica, a Constituição de 1988 teria exigido a filiação partidária como condição de elegibilidade, vedando as candidaturas avulsas. Já defendi essa tese e não ignoro que os partidos podem exercer esse papel.
Mas hoje temos um desenho ruim nos dois extremos: ao mesmo tempo em que os partidos são uma barreira de entrada para o sistema político representativo – correspondendo a um limite à liberdade política – não têm conseguido desempenhar a contento o papel de defesa da democracia.
<blockquote class="jota-article__eye">A corrosão dos partidos políticos por dentro vem se acentuando e precisa ser combatida com medidas estruturantes, como o fim das emendas orçamentárias individuais e de bancada, utilizadas como moeda de troca em negociações das Casas Legislativas.</blockquote>
Há muito se fala que o devido processo orçamentário precisa de mudanças e não pode seguir a lógica paroquial. Mas para além do fim de emendas orçamentárias, outra discussão precisa ser feita pelo Congresso: a possibilidade de candidaturas avulsas.
Não quero com isso afirmar que a corrosão dos partidos políticos deve ser combatida acabando-se com os partidos. O foco deve ser outro: maior liberdade política e busca pela melhor forma de promover o equilíbrio entre o ideal liberal da autonomia individual e o ideal democrático da autodeterminação coletiva. Pode-se aprioristicamente ser contra ou a favor das candidaturas avulsas, mas não há como negar que uma discussão ampla, séria e informada a respeito do tema e de seu impacto para o fortalecimento da democracia interessa a todos – e que deve ser feita em primeiro lugar pelo Legislativo, e não pelo STF.
Ao final, pode-se chegar à conclusão de que o reconhecimento de candidaturas avulsas representa uma importante alteração na cadeia de incentivos partidários – e em como realizam seus acordos e suas campanhas – sempre muito custosas para a sociedade. Conter a corrosão dos partidos políticos envolve mais liberdade, e não menos.
E mais: o fato de o sistema constitucional permitir candidaturas avulsas não impede a livre escolha dos cidadãos à filiação ou a livre escolha dos eleitores para votar em um candidato vinculado a um partido. Da regra de filiação partidária prevista na Constituição tampouco decorre uma proibição automática para a apresentação de candidaturas avulsas – uma exceção assim precisaria estar expressa, uma vez que restringe o valor liberdade, cláusula pétrea da Constituição. Não é irrazoável pensar que quem se elegeu sem a estrutura partidária (tempo de TV, fundo partidário etc.) também merece se sentar em uma cadeira do Plenário. E, pragmaticamente, aceitar candidaturas avulsas pode ter menos impacto do que os famigerados partidos de aluguel, que possibilitam uma espécie de candidatura avulsa maquiada de candidatura controlada por uma agremiação política.
Há ao menos um importante obstáculo no caminho desse debate. O reconhecimento de candidaturas avulsas não interessa aos congressistas, já acostumados com os ônus e bônus do desenho institucional atual. É uma pauta inicialmente bloqueada no Legislativo, por envolver interesses diretos dos parlamentares. Para se ter uma ideia, o atual Presidente da Câmara dos Deputados já anunciou a constituição de uma comissão para debater possíveis alterações na lei eleitoral, porém com foco na discussão sobre voto impresso e na necessária auditoria das eleições. Com efeito, a ninguém interessa a dúvida sobre a existência ou não de fraudes eleitorais. Mas a discussão sobre lei eleitoral não pode se resumir às urnas eletrônicas. É uma ótima oportunidade para trazer de volta à arena democrática a discussão sobre direitos.
Caso o bloqueio da pauta legislativa permaneça, abre-se espaço para que o STF protagonize a discussão, com os conhecidos déficits de capacidade institucional. Se é certo que a questão deve inicialmente ser feita pelas instâncias políticas majoritárias, também é certo que o vácuo decisório gerado pelo conflito de interesses políticos e o bloqueio da pauta no Legislativo passam a justificar a legitimidade do Supremo Tribunal Federal para decidir a questão. Cortes constitucionais, no Brasil e no mundo, têm como principal função a defesa dos direitos fundamentais e da democracia. Ao lado disso, o desenho das relações entre Legislativo, Executivo e Judiciário opera para conter o poder pelo poder, e não para justificar Poderes sem controle. Depois não me venha falar em ativismo judicial.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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JOTA

Conter a corrosão dos partidos políticos envolve mais liberdade, e não menos

Eleições das Casas Legislativas, partidos políticos e candidaturas avulsas

Conter a corrosão dos partidos políticos envolve mais liberdade, e não menos