Marjorie Marona

Lucas Magalhães

O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) festejou publicamente o mais novo passo em direção ao autogolpe que o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, avançou no último domingo (01/05), envolvendo a destituição de cinco ministros da Sala constitucional da Corte Suprema de Justiça (CSJ) daquele país.
O entusiasmo do filho zero-três do presidente da República, Jair Bolsonaro, não chega a surpreender. Foi ele quem, às vésperas do segundo turno das eleições de 2018, de que seu pai sairia vencedor, desdenhou do Supremo Tribunal Federal (STF) sugerindo que para “fechá-lo” bastaria “um soldado e um cabo”. Esse é, aliás, o ponto de partida da nossa análise acerca do padrão de relação entre o STF e o Palácio do Planalto ao longo dos dois primeiros anos do governo, que compõe, ao lado de outros trinta e quatro ensaios, o recém-lançado livro Governo Bolsonaro: retrocesso democrático, degradação política (Autêntica, 2021)<a href="applewebdata://4BB130B6-D911-42C7-A014-1587E59AD339#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Argumentamos que a tendência de escalada da tensão entre o Supremo e o governo pode ter sofrido alguma inflexão com a aproximação de Bolsonaro com o centrão, mas a crise institucional não foi completamente debelada. Reconhecemos, ainda, que as táticas de retaliação contra o Supremo são condizentes com os arroubos autoritários do presidente da República, mas não chegaram a mobilizar o Congresso (e a opinião pública) de modo consequente.
Assim como em El Salvador, também aqui no Brasil as justificativas para os ataques à Corte envolviam críticas a uma atuação supostamente política por parte do tribunal em oposição ao governo. Assim como no caso do atual presidente do Brasil, Bukele também é considerado um populista de direita, um líder personalista que chegou ao poder recentemente, como um outsider e se atribuiu a alcunha de messias. E, assim, como no Brasil, ele vem governando em crescente tensão com as instituições democráticas. Em fevereiro, por exemplo, o presidente el salvadorenho determinou a invasão da Assembleia Nacional para pressionar deputados de oposição, que ainda eram maioria.
Há, contudo, uma diferença fundamental: atualmente, em El Salvador, o presidente eleito conta com o apoio majoritário na Assembleia Legislativa - são 64 deputados governistas e 20 opositores. No Brasil, ao contrário, Bolsonaro ainda patina para construir governabilidade. Por essa razão, os ataques que perpetrou contra o Supremo Tribunal Federal se constituíram massivamente no campo da informalidade – e não raro foram pessoalizados, dirigidos aos ministros – suas manifestações, suas decisões.
Em uma das suas primeiras investidas, em 2020, Bolsonaro afirmou publicamente que a decisão do ministro Alexandre de Moraes de suspender a nomeação de Ramagem para o comando da Polícia Federal foi política e, inclusive, lançou suspeitas sob o processo de nomeação do referido ministro. Mais recentemente, após Barroso determinar que o Senado instaurasse a CPI sobre a pandemia, Bolsonaro declarou em rede social que faltava “coragem moral” ao ministro e sobrava-lhe “imprópria militância política”.
Diferentemente, em El Salvador, embora o presidente Bukele tenha defendido a legitimidade de sua intervenção alegando que se fosse, de fato, um ditador “teria fuzilado” os ministros, o que – parece – se justificaria, pois “salvaria mil vidas em troca de cinco”, concretizou-se, de fato, um movimento formal de retaliação: a destituição de cinco juízes da Sala Constitucional que recentemente tomaram decisões que desagradaram o presidente daquele país. O poder de Bukele foi ampliado, pois imediatamente indicou substitutos alinhados com o Executivo.
De fato, o modelo de separação dos poderes que conforma os regimes democráticos contemporâneos recepciona, quase em todo o mundo, cortes constitucionais caracterizadas pelo exercício de uma função contramajoritária, do que decorre uma dinâmica de maior ou menor tensão institucional. Nesse contexto, a literatura especializada já mapeou variados mecanismos de court-curbing – de limitação ou controle sobre as Cortes, por meio da alteração de sua composição (tal como aconteceu em El Salvador), da limitação de sua competência ou jurisdição, da modificação de seus procedimentos internos, da reversão de decisões particulares etc.
A aprovação de legislação capaz de retaliar a Corte pelo seu desempenho, no entanto, não é tarefa simples. As amplas maiorias geralmente exigidas tornam o mister ainda mais complicado naqueles casos em que o governo não possui uma sólida base de apoio no Legislativo ou uma ampla base social, em regimes presidenciais. A compreensão do porquê o governo Bolsonaro, à diferença de seu consonante colega latino-americano, não logrou transformar seus delírios autoritários em retaliações concretas contra o Supremo passa pela reflexão crítica acerca do padrão de funcionamento de seu governo (Avritzer, 2021).
Ao que tudo indica, o apoio da opinião pública, que em quadros de extrema polarização é um recurso fundamental (Bartels; Johnston, 2020) para impor limites à Corte, particularmente em governos minoritários, e foi mobilizado pelo ex-capitão antes como estratégia de fidelização de sua base – em linha com a identificação do bolsonarismo como um governo-movimento (Couto, 2021) – do que propriamente como recurso para construção de governabilidade.
Vale lembrar que, na primeira metade de seu governo, Bolsonaro fez do Executivo seu campo de batalha, e foi e desde a Presidência – uma estrutura reativa e personalizada, voltada para a defesa de sua autoridade – que emanaram suas manifestações mais agressivas e autoritárias para sinalizar suas posições não apenas para os membros do governo e dos demais poderes, mas, também, para grupos externos (Inácio, 2021). Do bunker presidencial, para o qual foram convidados apenas os familiares do presidente, seus assessores leais e parte da ala militar, as ameaças ao Supremo Tribunal Federal cumpriram, portanto, a função de sinalizar preferências, na melhor das hipóteses. Na pior, ganharam forma de bravata.
<blockquote class="jota-article__eye">O Brasil não é El Salvador. Até aqui, as condições de possibilidade de retaliações concretas e formais em face do Supremo Tribunal Federal não estão dadas.</blockquote>
E, diga-se, nem mesmo depois da aproximação de Bolsonaro com o centrão e a exitosa eleição dos presidentes das duas casas do Legislativo – em sua tardia tentativa de garantir alguma governabilidade. Passados poucos meses o casamento de interesse já apresentava sinais de desgaste (Santos; Barbosa, 2021) - e limites em seu potencial de superar as sucessivas crises políticas, colapsos administrativos e problemas de coordenação interna do gabinete, que marcaram a primeira metade do governo (Inácio, 2021). Em relação a esse último ponto, aliás, ampliou-se a dificuldade pela desestabilização da frágil correlação interna de forças dos três grupos que formavam o gabinete inaugural: os ideológicos, os técnicos e especialistas e os militares.
O recente conflito entre as Forças Armadas e o governo, culminando na troca do ministro da defesa e dos comandantes das três forças dá exemplo disso. Particularmente, a demissão do general Fernando Azevedo acabou por dinamitar as pontes do Planalto com o Supremo. Antes de assumir a pasta da defesa o militar compunha o gabinete estratégico que o ministro Dias Toffoli havia montado quando assumiu a presidência da Corte, em 2018, com o objetivo de criar canais de diálogo interinstitucional. Por indicação do então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, que Azevedo havia assumido o cargo no Supremo. Para além de sua ótima interlocução com o Alto-Comando do Exército, entretanto, Azevedo também tinha bom trânsito no Congresso Nacional e proximidade com Bolsonaro e seu vice – o general da reserva Hamilton Mourão. Talvez não seja demais apontá-lo como um dos mais importantes elos de ligação entre o governo e o Supremo.
Ao que tudo indica, só resta a Bolsonaro a via da nomeação dos ministros como forma de influenciar o STF. Trata-se, contudo, de um processo bem mais complexo – e um tanto obscuro para alguém acostumado a atuar às sobras dos parâmetros do Estado Democrático de Direito. O ex-capitão, que já abandonou suas preferências manifestas quando da abertura da primeira vaga na Corte, vendo-se obrigado a negociar o nome de Kássio Nunes Marques com o centrão, provavelmente não terá ainda chance de ver alguém terrivelmente evangélico ocupando uma cadeira no tribunal logo mais, quando da aposentadoria de Marco Aurélio Mello. Acossado por uma CPI, cuja abertura se deu por determinação do Supremo, e que tende a desgastá-lo, embora provavelmente não tenha o condão de derrubá-lo, Bolsonaro terá novamente que negociar a indicação com sua base de apoio no Legislativo – o que significa, em última análise, que também não será por essa via que o ex-capitão conseguirá ampliar sua influência sobre a Corte.
Duas concessões a esse argumento merecem, contudo, registro. Em primeiro lugar, é preciso que se diga que o desenho do Supremo Tribunal Federal permite que um único ministro possa causar grande impacto na agenda do governo, em decorrência do volume de poder alocado individualmente no tribunal: pedidos de vista e decisões monocráticas são os instrumentos mais conhecidos de intervenção direta de um ministro no processo de conformação da decisão judicial. Observe-se a recente decisão do novato ministro Kássio Nunes, às vésperas do domingo de Páscoa, liberando a realização de missas e cultos religiosos em todo o Brasil, em oposição ao entendimento do colegiado. A posterior reversão plenária da decisão liminar monocrática não afastou os efeitos desejados pela base governista e Kássio Nunes, sozinho, logrou reforçar a política negacionista do governo em face da pandemia de COVID-19.
Vale a pena registrar, ainda, que embora as investidas do ex-capitão contra o STF não tenham gerado efeitos mais concretos e imediatos até agora, não significa que o clima de ameaça tenha sido permanentemente dissipado.
<blockquote class="jota-article__eye">Bolsonaro (e sua base de apoio mais fiel) não esconde seu veio antidemocrático, que contempla, sem dúvida, o desejo de subjugar o Supremo.</blockquote>
A questão é que, por um lado, o tipo de ativismo presidencial que adotou obstruiu as possibilidades de arregimentar apoio junto ao Legislativo. Por outro, as negociações com o centrão, em busca de estabilidade com o Congresso Nacional, ampliaram os conflitos internos ao governo, com alto custo para ala militar. Isso nos autoriza a supor que se o retorno dos militares à política é preocupante, porque contribui para a renovação de legados autoritários e compromete a dimensão liberal da democracia brasileira (Passos, 2021), não parece ser material suficiente para que Bolsonaro prossiga com um autogolpe.
Dito, isso é preciso que estejamos atentos aos desdobramentos dos últimos acontecimentos em El Salvador porque se a nossa realidade (ainda) não é comparável à do nosso vizinho, em termos de retrocesso democrático; em relação à nossa própria trajetória “não há um aspecto, da economia às políticas públicas, passando pela relação com a imprensa ao sistema de Justiça, das relações internacionais ao convívio com os movimentos sociais, em que estejamos melhores do que no passado recente” (Avrtizer; Kerche; Marona, 2021).
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<a href="applewebdata://4BB130B6-D911-42C7-A014-1587E59AD339#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Com exceção de Bartels and Johnston (Curbing the Court: why the Public Constrains Judicial Independence, Cambridge University Press, 2020) todas as demais referências desse texto remetem à citada obra Governo Bolsonaro: retrocesso político e degradação política, organizada por Leonardo Avritzer, Fábio Kerche e Marjorie Marona, e que traz uma minuciosa análise dos dois primeiros anos do atual governo federal sob a ótica de antropólogos, sociólogos, cientistas políticos, economistas e especialistas em relações internacionais das principais universidades brasileiras.

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JOTA

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