Coronavírus

Efeitos da pandemia de Covid-19 no setor de transportes

Qual ente possui mais capacidade para veicular decisões que melhor se adequem ao atendimento do interesse público?

Amazonas
Crédito: Divulgação

Em de 8 abril de 2020, o Estado do Amazonas se tornou a Unidade da Federação com maior coeficiente de incidência de coronavírus no Brasil. A  situação se manteve inalterada até a data de hoje, com 303 casos por cada milhão pessoas, e a maior letalidade, contabilizada em 5,6%, conforme dados disponibilizados pelo Ministério da Saúde.

Em razão da crescente preocupação com a crise em saúde pública, o Governador do estado do Amazonas editou o Decreto nº 42.087, ainda em 19 de março de 2020, prevendo a suspensão do transporte fluvial de passageiros em todo o estado.

Naquele momento, o estado possuía apenas 3 casos confirmados de coronavírus (Covid-19) sendo nenhum destes no interior. Paralelo a isso, o Governo Federal editou a Medida Provisória nº 926, de 20 de março de 2020, com o objetivo de, nos termos da exposição de motivos, “reforçar os limites constitucionais legislativos e, ao mesmo tempo, prezar pelo entendimento mútuo entre União, Estados, Municípios e Distrito Federal”.

Através desta, a União estabeleceu uma série de condicionantes à restrição de transporte de pessoas pelos demais entes federativos, impondo limites relevantes no exercício das respectivas competências de todos para adotarem medidas no enfrentamento da emergência em saúde pública.

Sob a perspectiva do condomínio de competências previsto na Constituição[1], o conflito está posto e deverá ser julgado nas próximas semanas pelo Supremo Tribunal Federal (ADPF 665 e ADI 6341 e 6343).

Apesar disso, não deixa de ser relevante que este debate também seja visto sob um prisma administrativo ou regulatório: qual ente possui a mais adequada capacidade institucional para veicular decisões que melhor se adequem ao atendimento do interesse público acerca da restrição do transporte.

Tentarei iniciar esta análise com base na precoce restrição do transporte aquaviário no Amazonas (proporcionalmente o principal estado atingido pelo número de infecções do coronavírus).

De início, é importante ressaltar que a estratégia aparentemente adotada pela União até o momento tem sido a de “uniformizar” a matéria em âmbito nacional. Podemos citar, no caso do transporte fluvial, a Nota Técnica nº 47/2020 da Anvisa que recomendou, na seara do transporte aquaviário, a suspensão somente de passeios turísticos por meio de embarcações de esporte e recreio e de cruzeiros, mantendo o funcionamento do transporte de passageiros entre municípios ou estados, desde que respeitadas as recomendações sanitárias, como a utilização de álcool gel e higienização das mãos.

Há, portanto, uma contradição entre a recomendação da Anvisa e as ações adotadas no estado do Amazonas, especificamente o Decreto Estadual que suspendeu o transporte fluvial de passageiros.

O dissenso entre a União e o estado do Amazonas é um exemplo acerca dos conflitos que afloram sobre a melhor forma de enfrentar a pandemia que assola o mundo. Desta feita, deve-se questionar se a solução regulatória encampada pelo Ente Central respondeu satisfatoriamente à necessidade deste ente local (estado do Amazonas e seus municípios).

É importante que seja feito um contraponto aos argumentos apresentados pela União a favor da uniformização de tratamento a fim de revalorizar e demonstrar a importância da inclusão dos entes locais no processo de tomada de decisões para alcançar a solução que melhor atinja o interesse público.

No Brasil, a situação epidemiológica do vírus se caracteriza por (i) concentração em grandes metrópoles; (ii) poucos municípios médios e pequenos com casos confirmados e (iii) municípios pequenos com baixa ou nenhuma capacidade de internação e tratamento, adotando como protocolo o transporte dos pacientes infectados com necessidade de internação para polos com melhores condições hospitalares.

Em específico, o estado do Amazonas possui 1.559.161,682km² – o que o colocaria como 19º país com maior extensão geográfica – dividido em somente 62 municípios e uma população de aproximadamente 4,1 milhões de habitantes. Manaus, a capital, possui aproximadamente 2,1 milhões de habitantes e uma área de 11.401,092km².

O interior do Estado possui 1,9 milhão de habitantes e cada município possui, em média, 25.373,124km². Existem 10 municípios no interior que possuem mais de 50.000km². Para fins de comparação, o município de São Paulo possui 1.421,11km². Como se observa da análise dos números apresentados, o estado do Amazonas ostenta peculiaridades incomparáveis a outros estados brasileiros, em especial das regiões Sul e Sudeste.

A convivência entre a grandeza territorial e baixa densidade democrática é facilmente explicável: em primeiro lugar, pela imensidão da Floresta Amazônica, que, atualmente, possui 97% de sua área preservada no estado[2].

Além disso, os municípios são, em regra, compostos pela sua sede (zona urbana) e diversas pequenas e esparsas comunidades rurais (com dezenas ou centenas de habitantes), sendo algumas ribeirinhas ou indígenas.

Em alguns casos a proporção de habitantes nas zonas rurais corresponde a 70% da população do município, conforme os últimos censos realizados pelo IBGE. É como se, envolto em sua realidade, cada município fosse um “pequeno estado”, sendo sua sede a capital e as comunidades rurais as demais cidades.

Estas comunidades rurais são relativamente isoladas e alheias ao processo de globalização, com dificuldade de acesso a serviços mínimos de telecomunicação (como o acesso de qualidade à internet) e menor contato com pessoas de fora do meio comunitário, salvo pontuais intervenções estatais (pelos próprios municípios ou pelo estado) para oferta de serviços básicos.

Apesar de, em regra, dificultar o acesso a tecnologias, serviços e produtos básicos, o isolamento destes municípios e de suas comunidades rurais parece ser paradoxalmente uma forma adequada de enfrentamento ao coronavírus (Covid-19) posto que a entrada de uma pessoa de fora da comunidade contaminada (possivelmente assintomática), importará em duas consequências inevitáveis: (i) o alastramento da infecção entre seus habitantes e (ii) incapacidade de tratamento no município do interior e, principalmente na comunidade rural, em razão da falta de qualquer estrutura hospitalar para internação, testes, equipamentos ou pessoal da área de saúde.

Nenhum dos municípios do interior do Amazonas possuem leito de UTI[3] e, em razão disto, todos os casos de infecção que necessitam de internação devem ser transferidos para a Capital por UTI móvel (via aérea). A situação adquire contornos ainda mais dramáticos nas comunidades indígenas, cuja principal causa de morte já são ordinariamente as doenças respiratórias e que sofrem o risco de extinção em caso de contaminação de alguém na tribo[4]. Já há, inclusive, registro de contaminações de indígenas no estado.

O transporte de pessoas e cargas na região ocorre quase que integralmente por hidrovias da bacia amazônica posto que a maioria das aglomerações urbanas surgiram às margens dos rios. O transporte de pessoas ocorre, portanto, precipuamente através de barcos regionais construídos artesanalmente com matéria-prima da floresta amazônica.

Uma das interessantes peculiaridades da região é que ,tão importante quanto o transporte intermunicipal (especialmente de Manaus para os municípios do interior), é o transporte intramunicipal (que sequer é citado na MP nº 926 como sendo passível de restrição), que liga as comunidades rurais entre si, com a sede do município e, consequentemente, com a capital Manaus.

É a principal forma de abastecimento de cargas essenciais (alimentos, remédios, equipamentos e insumos) e de profissionais de áreas como saúde, educação e segurança pública destas comunidades afastadas.

Ao analisar os dados atuais, percebe-se que 86,75% dos casos se concentram em Manaus e somente 3,06% dos casos são em municípios cujo acesso se dá pela via fluvial[5] o que demonstra que, até o momento, o coronavírus não tem se alastrado proporcionalmente pelos municípios de acesso exclusivo pelas hidrovias apesar do forte ritmo de crescimento da quantidade de infectados no estado. A média nacional em pequenos municípios é mais que o dobro: 7,1%[6].

Assim, ao menos preliminarmente, resta demonstrado que o exercício do poder de polícia pelo estado no sentido de restringir a circulação de pessoas pela via fluvial, em especial aquelas oriundas de Manaus, tem contribuído para evitar uma verdadeira catástrofe humanitária: a disseminação do vírus em municípios interioranos sem estrutura e comunidade rurais (inclusive as indígenas).

A adoção da solução da União, ao revés (que certamente deve possuir eficácia em outras regiões do país), poderia simbolizar o colapso do sistema de saúde estadual, e a morte de diversos munícipes e desaparecimento de comunidades rurais inteiras no estado do Amazonas.

Sob a perspectiva regulatória, a mera adoção de medidas sanitárias para diminuição da possibilidade de contágio não parece se consubstanciar de  indícios científicos suficientes de que seriam suficientes para impedir o avanço do coronavírus nos pequenos municípios, o que não se justifica em razão da incidência do princípio da prevenção e precaução em saúde pública[7].

Assim, preliminarmente, a decisão adotada pelo estado do Amazonas parece mais adequada à realidade local do que a decisão inicialmente adotada pelo Governo Federal, uniforme em todo o território nacional, em não restringir o transporte fluvial de passageiros ou permitir que os entes locais o façam se considerem necessário.

Eventualmente, a matéria aportou ao Supremo Tribunal Federal por meio da Reclamação Constitucional nº 39.871, de Relatoria do Min. Roberto Barroso, em que a União requereu a suspensão de decisão judicial que mantinha a validade do Decreto Estadual que suspendeu o transporte fluvial de pessoas.

Ao julgar o pedido liminar, o Min. Relator manteve a decisão judicial questionada que concluiu que a Nota Técnica em que a Anvisa limita-se a recomendar que os passageiros lavem as mãos e usem álcool gel era medida insuficiente em razão da realidade local ao concluir que, nesse caso, o Juízo agiu de forma razoável em decorrência de omissão da Anvisa quanto à suspensão do transporte de passageiros de serviços não essenciais no âmbito do estado.

Trata-se, portanto, de medida adequada e que privilegia a autonomia dos entes locais para, ante sua realidade, impor as medidas de poder de polícia necessárias ao enfrentamento da pandemia.

Como se observa do exemplo do transporte fluvial no Amazonas, a resposta a todas essas questões dificilmente poderão ser equacionadas pela União de forma centralizada e única para todos os estados e municípios do país.

Nesse sentir, é importante que na atual quadra da pandemia prevaleça o experimentalismo federativo e a valorização de soluções locais de forma que se permita que estados e municípios – mais próximos e conhecedores sua própria realidade – sejam capazes de definir as estratégias e rumos a serem tomados no combate ao coronavírus, aliando ciência e conhecimento de suas peculiaridades, alcançando a melhor forma de atingir o interesse público, ao revés de estratégias normativas prêt-à-porter com a pretensão de impor solução única e igual a realidades diversas.

 


[1] As três principais correntes defendem que a competência para restringir o transporte se insere (i) na competência privativa da União sobre “trânsito e transporte” (art. 22, inc. XI); (ii) pela incidência do princípio da “predominância de interesses”, conforme definido na competência executiva de cada Ente para cada tipo de transporte, sendo a União responsável pela restrição ao transporte internacional e interestadual e os Estados pelo transporte intermunicipal (art. 21, inc. XII, alínea d e e); (iii) na competência concorrente para legislar sobre proteção à saúde (art. 24, inc. XII).

[2] Disponível em <https://www.acritica.com/channels/governo/news/lima-diz-que-vai-casar-ajuda-federal-com-acoes-ja-desenvolvidas-no-am>

[3] 47% dos municípios do País não tem leitos de internação e apenas 23% contam com UTI pública. Disponível em <https://oglobo.globo.com/opiniao/virus-poe-prova-estrutura-do-sus-em-cidades-pequenas-medias-24355436>;

[4] Disponível em < https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52030530>;

[5] Levantamento feito em 13/04: Parintins (11), Santo Antônio do Içá (10), São Paulo de Olivença (7), Tabatinga (3), Anori (3), Tonantins (4) e Tefé (1), conforme dados disponibilizados pela Agência de Vigilância Sanitária Local. Disponível em <>;

[6] Levantamento disponível em <https://oglobo.globo.com/opiniao/virus-poe-prova-estrutura-do-sus-em-cidades-pequenas-medias-24355436>

[7] E.g. “O princípio da precaução é um critério de gestão de risco a ser aplicado sempre que existirem incertezas científicas sobre a possibilidade de um produto, evento ou serviço desequilibrar o meio ambiente ou atingir a saúde dos cidadãos, o que exige que o estado analise os riscos, avalie os custos das medidas de prevenção e, ao final, execute as ações necessárias, as quais serão decorrentes de decisões universais, não discriminatórias, motivadas, coerentes e proporcionais. 3. Não há vedação para o controle jurisdicional das políticas públicas sobre a aplicação do princípio da precaução, desde que a decisão judicial não se afaste da análise formal dos limites desses parâmetros e que privilegie a opção democrática das escolhas discricionárias feitas pelo legislador e pela Administração Pública.” (RE 627189; Rel. Min. Dias Toffoli)