Paulo Fernando Pinheiro Machado

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<blockquote class="jota-article__quote">
Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos!
<footer class="jota-article__quote-cite" style="text-align: left;">Romanos 11:33-36</footer>
</blockquote>
Edward Lorenz era o tipo raro de matemático aficionado por esportes ao ar livre. Quisera o destino dar-lhe uma oportunidade de reunir as suas duas paixões quando serviu como meteorologista no exército norte-americano durante a Segunda Guerra Mundial. A experiência foi lhe tão proveitosa, que Lorenz decidiu mesmo prosseguir para um doutorado em meteorologia no MIT em 1948, vindo a se tornar um gênio da matéria com o desenvolvimento da sua teoria do caos nos anos 1960. Os seus caminhos, são, de fato, inescrutáveis.
Mais ainda quando se tem em conta que a sua teoria do caos fora ela mesma, em grande medida, fruto do acaso. Em determinado momento, Lorenz estava experimentando com simulações computacionais de padrões meteorológicos, modelando 12 variáveis. Após uma pausa, Lorenz queria reproduzir uma simulação e, para ganhar tempo, reiniciou a modelagem a partir da metade do processo, arredondando uma variável de 0.506127 para 0.506 <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Essa microscópica alteração, contudo, teve um impacto colossal no modelo, alterando completamente o resultado da simulação.
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Edward Lorenz, assim, registrou a sua descoberta no Journal of the Atmosferic Sciences, em um artigo intitulado “Deterministic Nonperiodic Flow” <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Como a leitora pode imaginar, com um título desses, ninguém deu a menor pelota para a descoberta colossal de Lorenz. O interesse pelo seu trabalho somente foi despertado cerca de dez anos mais tarde, em 1972, quando ele traduziu os seus resultados para uma linguagem inteligível na palestra “Previsibilidade: o bater das asas de uma borboleta no Brasil pode gerar um tornado no Texas?”, proferida no 132º Encontro da Sociedade Americana para o Avanço da Ciência, em Washington, DC <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Imagem pode não ser nada, mas clareza de linguagem é tudo.
A palestra, que é assaz curta, vem reproduzida no seu livro “The Essence of Caos”. O fundamental a se reter aqui, cara leitora, é a proposição de que sistemas complexos – como o do clima no planeta Terra —, “são instáveis com relação a perturbações de pequena amplitude” <a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. “Duas situações climáticas particulares, diferenciadas tão somente pela presença de uma única borboleta, irão geralmente, passado um tempo suficiente, evoluir para duas situações tão diferentes quanto a presença de um tornado” <a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, esclarecia Lorenz. É importante ressaltar que a recíproca é verdadeira, isto é, “se o bater das asas de uma borboleta pode ser instrumental para gerar um tornado, ele pode ser igualmente instrumental para prevenir um tornado” <a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Batizada de “efeito borboleta”, a hipótese de Lorenz teve uma repercussão imensa, vindo a influenciar os mais diversos campos do conhecimento humano. As relações internacionais, que se constituem em um sistema absurdamente complexo de relações, não poderiam ficar alheias ao conceito. Na última semana, de fato, um pequeno evento no cenário internacional, após passado um certo tempo, poderá ter sido instrumental na prevenção de um tornado.
Como havíamos adiantado aqui nesta coluna <a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, a atual corrida armamentista entre EUA e China, que está no cerne da chamada Segunda Guerra Fria, possui alto risco de escalar para um conflito aberto entre as duas superpotências, porque não há mecanismos jurídicos de contenção dessa disputa. Ao contrário do que se deu na Primeira Guerra Fria, entre EUA e URSS, ao longo da qual uma série de regimes jurídicos internacionais de contenção e não proliferação foram estruturados para evitar o risco de que a corrida se transformasse em uma guerra quente. No momento atual, se Washington e Pequim não iniciassem conversações para a estruturação de novos regimes dissuasórios, haveria uma possibilidade iminente de formação de tornados, especialmente no Mar do Sul da China, nas proximidades de Taiwan, cuja importância estratégica global também já tivemos a oportunidade de analisar neste espaço <a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
E eis que, logo após nossa análise, uma borboleta bateu as suas asas. No último dia 15 de novembro, o presidente Joe Biden e o presidente Xi Jinping mantiveram uma reunião de cúpula virtual, na qual, segundo o comunicado oficial da Casa Branca, “os dois líderes discutiram a natureza complexa das relações entre nossos dois países e a importância de uma administração responsável da competição [entre eles]” <a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>. Segundo o assessor de Segurança Nacional dos EUA, Jack Sullivan, as conversas giraram em torno da necessidade de se garantir uma “estabilidade estratégica” nuclear <a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>. Para o bem de todos e a felicidade geral das nações, ambos os líderes concordaram sobre a necessidade de se construir mecanismos de segurança para evitar que a relação bilateral descarrilhe para um conflito aberto <a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>.
A questão de Taiwan, contudo, permaneceu como o pomo da discórdia. O presidente Biden garantiu que os EUA continuam comprometidos com “uma única China”, mas alertou que o país se opõe a “esforços unilaterais de alteração do status quo ou de minar a paz e a estabilidade através do Estreito de Taiwan” <a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>. O presidente Xi, por sua vez, culpou o envolvimento norte-americano em uma agenda de independência de Taiwan pelas tensões atuais. Segundo o líder chinês, “esses movimentos são extremamente perigosos, exatamente como brincar com fogo. Quem brinca com fogo acaba queimado” <a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>. Ouch.
Minha avó costumava dizer que quem brinca com fogo acorda molhado. Não sei o que é pior, mas o recado está dado. Repare, cara leitora, que a notícia auspiciosa é justamente a de que ele foi dado. A maioria dos analistas tendem a minimizar o impacto que a cúpula virtual possa vir a ter sobre a balanço geopolítico global. Discordo. Em diplomacia, uma reunião de cúpula é sempre uma oportunidade para se organizar uma agenda bilateral de trabalho, que será posteriormente conduzida pelas chancelarias dos dois países, de maneira profissional e silenciosa. Como o bater das asas de uma borboleta, pode parecer um gesto ínfimo, mas que, na complexidade do clima geopolítico internacional, pode realmente ser instrumental para prevenir um tornado. Inescrutáveis são os seus caminhos.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Ferguson, Niall. Doom. Nova York: Penguin, 2021. p. 75
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Lorenz, Edward N. " Deterministic Nonperiodic Flow". Journal of Atmospheric Sciences, 20.2 (1963): 130-141. &lt;<a href="https://doi.org/10.1175/1520-0469(1963)020%3c0130:DNF%3e2.0.CO;2">https://doi.org/10.1175/1520-0469(1963)020&lt;0130:DNF&gt;2.0.CO;2</a>&gt;. Web. 22 Nov. 2021.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Ferguson, Niall. Doom. Nova York: Penguin, 2021. p. 75
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Lorenz, Edward N. The Essence of Caos. Seattle: University of Washington Press, 1993. p. 182
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Ibid, p. 181
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Ibid.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Pinheiro Machado, Paulo Fernando. “A Geopolítica da Inteligência Artificial - A importância do Direito Internacional para a estruturação de novos regimes dissuasórios”, Diários de um Diplomata, Jota, 12 nov. 2021. Disponível em: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/geopolitica-inteligencia-artificial-12112021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/geopolitica-inteligencia-artificial-12112021</a>
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Pinheiro Machado, Paulo Fernando. “A crise do Estreito de Taiwan - Aspectos jurídicos da primeira grande crise da Segunda Guerra Fria”, Diários de um Diplomata, Jota, 29 out. 2021. Disponível em: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/crise-estreito-de-taiwan-29102021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/crise-estreito-de-taiwan-29102021</a>
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> <a href="https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2021/11/16/readout-of-president-bidens-virtual-meeting-with-president-xi-jinping-of-the-peoples-republic-of-china/">https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2021/11/16/readout-of-president-bidens-virtual-meeting-with-president-xi-jinping-of-the-peoples-republic-of-china/</a>
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Sevastopulo, Demetri e Mitchell, Tom. “Washington and Beijing agree to hold talks on nuclear arsenal”, Financial Times, 17 nov. 2021.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> Ibid.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> <a href="https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2021/11/16/readout-of-president-bidens-virtual-meeting-with-president-xi-jinping-of-the-peoples-republic-of-china/">https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2021/11/16/readout-of-president-bidens-virtual-meeting-with-president-xi-jinping-of-the-peoples-republic-of-china/</a>
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> <a href="https://www.bbc.com/news/world-asia-china-59301167">https://www.bbc.com/news/world-asia-china-59301167</a>

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