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Educação inclusiva ou eugênica?

Poder Público precisa combater a discriminação, não a estimular

Educação inclusiva ou eugênica?
© Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil Educação O ministro da Educação Milton Ribeiro, participa do programa Sem Censura, na TV Brasil. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Muito se celebra a Constituição brasileira de 1934 como a que fez nascer nossa primeira Ordem Econômica. Em seu artigo 115 estava o dever de a economia ser organizada “conforme os princípios da Justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que possibilite a todos existência digna”. Todavia, nem todos lembram do lado sombrio dessa mesma Constituição, cujo art. 138 determinava que incumbia “à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das respectivas leis, […] estimular a educação eugênica”.

Eugenia significa “bem nascido”; é forma de “higiene social” para “melhoramento da raça”. Defende o predomínio racial branco, com discriminação de pessoas por categorias (a exclusão de negros, indígenas, pessoas com deficiências – e de todos os demais que não se encaixem no padrão). A “educação eugênica” visava a formar pessoas que excluíssem a integração. Corrompia, de modo hediondo, a garantia constitucional de assegurar a todos, sem qualquer exceção, existência digna. Duvidamos que haja alguém que se orgulhe desse passado constitucional brasileiro, mas fato é que ele precisa ser lembrado, posto à luz do dia, para que jamais se repita. Todavia, quase 100 anos depois ainda se escutam ecos, ativos e passivos, de 1934.

Nada obstante tenhamos legislação rica em previsões garantidoras de acesso da pessoa com deficiência às instituições de ensino regular, fato é que inexistem políticas públicas de implementação, integradas com mecanismos que permitam às crianças e adolescentes possuir igualdade material no exercício de um aprendizado pleno. O que acarreta a descrença – inclusive por parte das famílias – no sistema educacional inclusivo.

Esse descrédito moral da eficácia na inclusão escolar traz consigo a turva visão de que o acesso educacional não segregacionista seria utópico, levando à procura de ensino alternativo à escola regular. Situação difícil, muitas vezes agravada justamente por aqueles que têm a obrigação de criar soluções. Afinal, recentemente foi publicado que o assim chamado Ministro da Educação disse que crianças com deficiência “atrapalham” os demais alunos, eis que tornam “impossível a convivência”.

Ou seja, a seriedade do tema é agravada através da resposta daquele que tem por dever, constitucional e legal, estimular a inclusão e o acolhimento. Ao contrário da Constituição de 1934, a atual legislação brasileira é promotora da educação inclusiva. Ainda que possa ter outras opiniões, por mais medievais que sejam, cabe ao Sr. Ministro da Educação cumprir a lei. E é na sucumbência da lei a uma realidade onde a tipicidade motora e neurológica é requisito implícito à convivência, que se abre caminho para o futuro repetir o passado, remontando a tristes momentos em que o lugar da pessoa com deficiência era onde a vista não alcançasse.

O interessante é que a aplicação sistemática da atual Constituição garantiria, por si só, o dever de o Estado agir proativamente na concessão de meios de inclusão. Isso desde o preâmbulo (que assegura o exercício dos direitos fundamentais sociais), o art. 1º (a dignidade humana como fundamento da República) e o art. 3º (ordenador de medidas de inclusão social). Mas podemos pensar no caput do art. 5º, no art. 6 º, incisos II e V, no art. 23, inciso XIV do art. 24, inciso III do art. 208, inciso II do art. 227.

Observe-se que, no inciso III do art. 208, encontramos previsão expressa e inequívoca de que é dever do Estado o atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino. Basta abrir os olhos e ler, sem grandes esforços, para se verificar que a Constituição ordena aos Poderes Públicos que adotem, de modo proativo, medidas de acolhimento a pessoas com deficiência, sem qualquer exclusão e sem quaisquer “salas especiais para que essas crianças possam receber o tratamento que merecer e precisam”, como teria afirmado o Sr. Ministro da Educação.

Mas o assunto não se encerra em previsões constitucionais genéricas. A legislação ordinária é ainda mais específica. O Estatuto da Pessoa com Deficiência reserva o Capítulo IV para tratar do tema da educação de PCDs. Em seu art. 27, dispõe sobre o inequívoco dever do Estado, da família, da comunidade escolar e da sociedade, de assegurar educação de qualidade à pessoa com deficiência, colocando-a a salvo de toda forma de violência, negligência e discriminação.

O mesmo diploma, em seu art. 28, garante medidas específicas para sistemas de inclusão (profissionais de apoio escolar, tecnologia assistida, ensino em libras, atendimento educacional especializado, recursos que eliminem barreiras, plano educacional especializado, dentre outros). Observe-se que não apenas as medidas coletivas detêm proteção legal, mas igualmente mostram-se garantidas as individuais que permitam a inclusão plena.

O Estatuto da Criança e Adolescente reprisa o dispositivo constitucional, prevendo o dever do Estado de atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino (art. 54, inc. III).

Podemos ainda citar a Lei da Pessoa com Autismo (Lei 12.764/2012), a qual, além de garantir a pessoas com TEA os direitos previstos no Estatuto da Pessoa com Deficiência, prevê o direito de acesso da pessoa com autismo à escola regular, criminaliza a recusa de matrícula e garante acesso a acompanhante escolar especializado.

Não deixemos de mencionar a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (da qual o Brasil é signatário, ratificado pelo Decreto 6.949/2009), a qual, no caput de seu art. 24, disciplina que Estados signatários reconhecem o direito das pessoas com deficiência à educação, e agirão para “efetivar esse direito sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades”, incumbindo-se do dever de assegurar um “sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida”. Ao Estado cumpre garantir que nenhuma pessoa seja excluída do sistema educacional geral sob alegação de deficiência. Existe o dever ativo de incluir e acolher.

Embora não exaurientes, tais menções são suficientes em corroborar a intensa legalidade do direito pleno de inclusão escolar e social. O que, lamentavelmente, confronta a realidade em que estamos inseridos, esvaziando a fé do cidadão no direito e nas instituições. A dificuldade de se obter acesso tem seu agravante na ausência de medidas proativas do Estado – e é piorada em razão de manifestações públicas agressivas aos deveres fundamentais de plena inclusão e acolhimento.

Curiosamente, o mesmo Brasil que criminaliza a discriminação da pessoa com deficiência mediante pena de reclusão de 1 a 3 anos, aumentada se o crime fosse por comunicação social ou publicação de qualquer natureza (art. 88 do Estatuto da Pessoa com Deficiência), também testemunha o Sr. Ministro da Educação demonstrar visão capacitista, excludente e segregacionista. Mas talvez esteja tudo bem, afinal, aparentemente tudo se resolve com um pedido de desculpas a eventuais ofensas e constrangimentos, sob a alegação de “erro de expressão”. Será?

A situação se resolve com a escusas a quem teria se ofendido? Como fica a expectativa de um Poder Público que combatesse todo e qualquer tipo de prática discriminatória? A bem da verdade, a resposta tornada pública se traduz em falas que incentivam a perpetuação do mito de que a capacidade do indivíduo repousa em sua tipicidade, pontuando-se a divergência como estigma.

Em meio ao desespero de tantas famílias para garantir o acesso à educação, o pleito por qualidade de ensino inclusivo reduz-se aos poucos ao pedido de acesso ao ensino, que por sua vez reduz-se paulatinamente ao pleito por mínima dignidade – numa descrente expectativa social de uma sociedade que respeite as divergências neurológicas e motoras. Justamente nesse ambiente de espera por socorro do Poder Executivo, o qual tem o dever legal de atuar em prol da inclusão, a fala de que “crianças deficientes atrapalham” não só é retrógrada, trágica e cruel, mas flagrantemente ilegal.