Beatriz Kira
Professora de Direito na Universidade de Sussex. Doutora em Direito Econômico pela USP e mestra em Ciências Sociais da Internet pela Universidade de Oxford
Há hoje intensos debates acerca dos desafios concorrenciais e regulatórios relacionados aos inovadores modelos de negócios das plataformas digitais. Mais recentemente, a literatura especializada tem discutido a relação entre tais plataformas e como a natureza interconectada dos mercados digitais dá origem a elos de complementariedade e, em certa medida, de dependência entre diversos agentes econômicos que atuam em um determinado setor.
Nesse contexto, o conceito de ecossistemas digitais vem sendo desenvolvido como uma chave analítica mais ampla para descrever e examinar a estrutura e o funcionamento de tais mercados. Como um recife de coral que atrai várias formas de vida subaquática, os mercados digitais são descritos, assim, como um ambiente composto por consumidores, vendedores, anunciantes, desenvolvedores de software, aplicativos e fabricantes de acessórios, entre outros.[1]
Quais as diferenças entre plataformas e ecossistemas digitais e por que essa diferenciação importa?
Enquanto plataformas são comumente descritas como estruturas de múltiplos lados, conectando diferentes grupos de usuários, ecossistemas são mais complexos e surgem a partir das múltiplas interações entre os componentes de um sistema (que frequentemente são, eles próprios, estruturados como plataformas) e se formam a partir de relações de complementaridade e, em alguns casos, colaboração entre tais componentes.[2]
Vale frisar que o foco de ecossistemas requer um olhar que vai além do conceito clássico de mercados relevantes compreendidos em suas especificidades. Isso porque ecossistemas digitais são definidos como ambientes econômicos integrados, em que seus componentes e atores são identificados e analisados em suas relações dinâmicas, interdependentes ou conglomeradas. Podem integrar, com isso, diversos mercados relevantes.
A existência de ecossistemas digitais abrangentes traz novas questões concorrenciais, em particular no que diz respeito à integração e aos efeitos anticompetitivos e pró-competitivos que podem surgir de sua dinâmica. Nesse contexto, uma preocupação central é o fato de que alguns agentes econômicos que atuam em tais ecossistemas ocupam uma posição privilegiada, com poder para decidir como o mercado é organizado e estruturado, bem como para determinar quais participantes podem acessar o ecossistema e se beneficiar da miríade de relações e possibilidades viabilizadas ou facilitadas por eles – incluindo não apenas usuários finais, mas também usuários comerciais, que oferecem serviços complementares e, em certos casos, rivais. Por conta do controle exercido por tais atores privilegiados, a literatura tem adotado o termo gatekeepers (equivalente ao termo “guardiões” em português) para identificá-los.
Os chamados gatekeepers, portanto, são aqueles atores que detêm poder de mercado suficiente para estabelecer as regras do jogo aplicáveis a todas as outras empresas que, direta ou indiretamente, dependem do ecossistema – seja uma dependência técnica ou de infraestrutura, sem a qual o acesso é impossibilitado, seja uma dependência de fato, caracterizada pelas práticas da indústria ou do setor.
Ou seja, gatekeepers controlam os termos de acesso quase insubstituível a usuários, mas também, em alguns casos, detêm os meios para impedir que empresas e usuários mudem para outras plataformas ou ecossistemas. O poder dos gatekeepers, assim, é ainda maior se usuários (finais e comerciais) não forem capazes de usar múltiplas plataformas ao mesmo tempo (prática conhecida como multi-homing), ou se não puderem alternar facilmente entre provedores de serviços rivais.[3]
Como explicam Jacobides e Lianos, gatekeepers são “orquestradores de ecossistemas”, organizando e viabilizando as relações entre os diversos componentes. Para tanto, fazem uso estratégico de tecnologias como APIs (interfaces de programação de aplicativos, que permitem a conexão de aplicativos externos), algoritmos proprietários, grandes bases de dados e até mesmo de cláusulas contratuais para garantir a interconectividade e interoperabilidade para os consumidores finais.
No entanto, esses meios também possibilitam que gatekeepers sejam capazes de alavancar seus próprios negócios e de explorar em seu favor os “gargalos” que surgem a partir das novas arquiteturas dos modelos de negócios digitais. Em outras palavras, os mesmos meios e tecnologias que permitem a “orquestração” de um ecossistema também oferecem aos gatekeepers pontos de controle e recursos para o estabelecimento de uma vantagem competitiva estratégica ou para a obtenção de informações estrategicamente e comercialmente valiosas.
Por conta disso, tem causado preocupações de natureza concorrencial e regulatória o fato de que gatekeepers podem se engajar mais facilmente em comportamentos anticompetitivos e em transações com potencial para distorcer a concorrência. Um desafio para reguladores e formuladores de políticas públicas, no entanto, é estabelecer critérios claros para identificar quais empresas merecem o rótulo de gatekeepers e como e diferenciá-los de demais agentes atuando em mercados digitais (como discutimos aqui).
Na União Europeia está em análise o Digital Markets Act (DMA) uma proposta de regulamentação ex ante com foco particular em gatekeepers. O Artigo 3 do DMA designa como gatekeepers os provedores de “serviços centrais de plataforma” (core platform services, ou CPS no termo em inglês).
O conceito de CPS adotado pela DMA é bastante amplo, incluindo enorme variedade de serviços e produtos digitais, tais como intermediação, busca, redes sociais, mensageria, compartilhamento de vídeos e armazenamento em nuvem, entre outros. Tais empresas estariam sujeitas às obrigações do DMA (i) se houver evidência de alta concentração do mercado, (ii) se houver dependência em relação a uma ou algumas plataformas que controlam o acesso a grupos de usuários, e (iii) se o poder detido pela plataforma CPS puder ser usado para tratar injustamente usuários e clientes de negócios economicamente dependentes.[4]
Para caracterização de um CPS como gatekeeper, o DMA propõe ainda que sejam satisfeitos três critérios cumulativos: (i) a plataforma tenha impacto significativo no mercado europeu, (ii) a plataforma desempenhe uma forte função de intermediação, operando um canal importante de conexão a clientes e (iii) a plataforma detenha uma posição consolidada e durável no mercado.[5]
Há, ademais, um mecanismo que permite à Comissão Europeia designar como gatekeepers as plataformas CPS que não necessariamente cumpram tais critérios, mas que apresentem características que apontem para riscos de distorção da concorrência, tais como seu tamanho, o número de empresas que dependem de seu serviço, a existência de barreiras a entradas, entre outras características.[6]
Já a Competition and Markets Authority (CMA), autoridade antitruste do Reino Unido, propõe a adoção de um termo distinto para identificar atores econômicos que desempenham essencialmente o papel de gatekeepers, entendendo-os como empresas com “Status de Mercado Estratégico” (strategic market power, ou SMS no termo em inglês). Tais empresas seriam aquelas detentoras de “uma posição de poder de mercado duradoura ou controle sobre um mercado de gateway estratégico, que leva a plataforma a desfrutar de uma posição de negociação poderosa e resultando em uma posição de dependência comercial”.[7]
A identificação de uma empresa SMS, por sua vez, seria feita por meio de dois testes. O primeiro seria uma avaliação para aferir se a empresa tem poder de mercado substancial e entrincheirado em uma atividade digital. Tal poder pode ser detectado quando não houver boas alternativas para o produto ou serviço oferecido e se a entrada ou expansão de outros fornecedores for limitada. É importante ressaltar que para a caracterização da empresa SMS, a avaliação não é feita ao nível da empresa específica, mas sim com foco na atividade realizada, o que é entendido como “o conjunto de produtos e serviços fornecidos por uma empresa que têm uma função semelhante ou que, em conjunto, cumprem uma função específica”. Como se nota, a ideia de ecossistemas é invocada no conceito de atividade na proposta.[8]
O segundo teste proposto pelo CMA busca avaliar se o poder de mercado substancial e entrincheirado na atividade fornece à empresa uma “posição estratégica”. Tal posição estratégica pode ser identificada por diversos fatores, incluindo o fato de o agente econômico ser o ponto de acesso de clientes a uma ampla gama de outros negócios, o fato da atividade realizada pela empresa ser um insumo ou contribuição importante para uma ampla gama de outras empresas conduzirem seus negócios, o fato de a empresa poder usar sua posição em dada atividade para alavancar seu poder de mercado de modo a estendê-lo para outras atividades, ou o fato de a empresa poder usar a atividade para determinar as regras do jogo dentro do próprio ecossistema da empresa e também para um espectro mais amplo de participantes do mercado, entre outros fatores.[9]
Na Grécia, está em curso uma reforma da lei de defesa da concorrência que dá à autoridade antitruste poderes para intervir caso uma empresa que detenha posição dominante em um ecossistema dela abuse. O projeto parte do conceito jurídico “posição dominante” para estabelecer o conceito de “posição de força econômica”, que permitiria a uma dada empresa “determinar, ou pelo menos ter uma influência considerável sobre, as condições sob as quais a concorrência se desenvolverá".
Importante notar que na proposta grega o foco também não é o poder de mercado de uma empresa específica em um determinado mercado relevante, mas sim na força econômica detida por determinado agente econômico em relação a todo um ecossistema, o que engloba várias entidades independentes, conectadas por complexos nexos de dependência em múltiplas direções – ou seja, para além dos conceitos tradicionais do direito antitruste, que se dedicam às relações verticais ou horizontais.[10]
No Brasil, não há uma lei ou regulação específica estabelecendo um teste legal claro para identificar um gatekeeper com base em características de dada empresa e de sua posição de mercado, tampouco regras ex ante específicas para gatekeepers. No entanto, a Lei de Defesa da Concorrência (Lei 12.529/2011) fornece dispositivos que podem ser interpretados para identificar tais agentes econômicos. Ou seja, já existem, no ordenamento brasileiro, conceitos que poderiam ser invocados e utilizados pela autoridade antitruste para identificar as características centrais que levariam a designação de determinado agente econômico como um gatekeeper.
No quadro atual da legislação brasileira, tal análise seria possível apenas no contexto de casos específicos, pela caracterização do gatekeeper à luz de um caso concreto em exame pela autoridade. Para uma aplicação robusta e funcional (do ponto de vistas argumentativo e de efetividade decisória), consistente (do ponto de vista jurisprudencial) e sustentável (do ponto de vista da segurança jurídica) dos conceitos de ecossistemas digitais e gatekeepers, o Cade pode se valer de testes – em geral aplicados na forma de perguntas que compõem um checklist a ser utilizado pela autoridade. Ou seja, a designação de um certo ator econômico como gatekeeper depende de uma análise individualizada, que deve ser conduzida pelo Cade à luz das particularidades do caso concreto e das características dos agentes econômicos envolvidos.
As referências legais mais imediatas estão contidas no art. 36 da Lei de Defesa da Concorrência, a começar pelo caput, que trata como infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir certos efeitos.
A presunção de posição dominante (20% ou mais de um certo mercado relevante) contida no parágrafo 2º do mesmo artigo, se verificada, servirá de ponto de partida para a análise de potenciais condutas anticompetitivas praticadas por um gatekeeper em meio a um ecossistema (se tais elementos forem identificados por meios dos referidos testes).
Potencias exemplos dessas condutas seriam a venda casada (subordinar a prestação de um serviço à utilização de outro, art. 36, §3º, XVIII), a formação de estrutura verticalizada envolvendo agentes com posição dominante (art. 36, §3º, Xl), o bloqueio de acesso a bem/infraestrutura essencial (art. 36, §3º, IV e V) e o tratamento discriminatório a concorrentes (Lei 12.529/2011, art. 36, §3º, X). O Cade pode, ainda, vir a levar em consideração, entre outras normas e preceitos de natureza regulatória, a potencial violação a princípios da interoperabilidade em arranjo de pagamento e/ou entre arranjos de pagamento distintos, do acesso não discriminatório aos serviços e às infraestruturas necessários ao funcionamento dos arranjos de pagamento, nos termos da Lei 12.865/2011).
Em resumo, o recurso aos testes de identificação de ecossistemas digitais e de gatekeepers combinado às normas jurídicas formais em vigor permitiria que em certos casos concretos os elementos estruturais e constitutivos do modelo de negócio das plataformas digitais sejam identificados e analisados adequadamente, à luz do estado da arte das pesquisas disponíveis na literatura, bem como à luz dos modelos regulatórios e práticas de defesa da concorrências hoje adotados.
Isso, por sua vez, levaria a um escrutínio consistente e criterioso de casos envolvendo tais atores para uma aplicação das normas antitruste – seja em casos de condutas anticompetitivas, seja em casos de atos de concentração. Se isso for feito cuidadosamente pelo Cade, não será necessária qualquer alteração legislativa, ainda que futuramente a regulação setorial enderece o assunto de forma mais estrutural.
[1] Analogia desenvolvida originalmente em EZRACHI, Ariel; STUCKE, Maurice E., Virtual Competition, Journal of European Competition Law & Practice, v. 7, n. 9, p. 585–586, 2016.
[2] Ver por exemplo JACOBIDES, Michael G. and LIANOS, Ioanis. Ecosystems and Competition Law in Theory and Practice. CLES Research Paper 1/2021, 2021.
[3] Sobre a centralidade do multi-homing para a caracterização dos gatekeepers ver GERADIN, Damien, ‘What Is a Digital Gatekeeper? Which Platforms Should Be Captured by the EC Proposal for a Digital Market Act?’ (February 18, 2021). http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3788152
[4] Proposta DMA, dezembro 2020, https://eur-lex.europa.eu/legal-content/en/TXT/?uri=COM%3A2020%3A842%3AFIN
[5] No original em inglês: “Providers of core platform providers can be deemed to be gatekeepers if they: (i) have a significant impact on the internal market, (ii) operate one or more important gateways to customers and (iii) enjoy or are expected to enjoy an entrenched and durable position in their operations.” Proposta DMA, https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/PDF/?uri=CELEX:52020PC0842&from=en
[6] Proposta DMA, dezembro 2020, https://eur-lex.europa.eu/legal-content/en/TXT/?uri=COM%3A2020%3A842%3AFIN
[7] CMA, “Online Platforms and Digital Advertising. Market study final report”, 1 de julho de 2020, §7.55. https://assets.publishing.service.gov.uk/media/5fa557668fa8f5788db46efc/Final_report_Digital_ALT_TEXT.pdf
[8] CMA, “Online Platforms and Digital Advertising. Market study final report”, 2020.
[9] Idem.
[10] Para uma discussão aprofundada da proposta grega, ver JACOBIDES, Michael G. and LIANOS, Ioanis. Ecosystems and Competition Law in Theory and Practice. CLES Research Paper 1/2021, 2021.