Melina Girardi Fachin

Catarina M. V. Ramos

Em outubro de 2020, durante a maior crise sanitária e social, o Brasil assinou uma declaração internacional contra o aborto e em defesa da chamada “família tradicional”. A Declaração de Genebra – assinada em Washington durante a administração Trump –, contou, além dos EUA, com endosso de Egito, Hungria, Uganda e Indonésia. Revestida como promotora de defesa da igualdade entre gêneros no ambiente familiar, a declaração dissemina o ódio à comunidade LGBTQIA+, além da clara restrição dos direitos das mulheres<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Os países que primeiro assinaram o documento deixam isso ainda mais claro. Em Uganda, relações homoafetivas podem ser punidas inclusive com pena de morte, enquanto no Egito há perseguição sistêmica da comunidade. Os outros 25 países que integraram a declaração são países que atualmente são regidos por ditaduras ou são fundamentalistas religiosos, como Belarus, Arábia Saudita, Líbia e Paquistão<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. A meta, conforme informou o à época secretário de Saúde dos EUA, era que uma cúpula fosse organizada em 2021 para criar uma via paralela às Nações Unidas.
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Os líderes populistas não apenas têm buscado estimular maniqueísmos e divisões – entre nós e eles, os de bem e os que não o são, os certos e errados – como também, quando minoria, criam instituições paralelas para que apenas suas vozes e daqueles que os apoiam possam ecoar. O uso específico do termo “ecoar” é proposital, tendo em vista que os apoiadores ultraconservadores, assim como a lenda da ninfa Eco, não sabem falar em primeiro lugar, não se calam quando falam com eles e repetem apenas os sons das vozes que lhe chegam<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, ou seja, dos líderes que cegamente seguem.
Exemplar do que se alega é o atual governo da Hungria, ao alertar que estão sob ataque do movimento para "minar a família tradicional”, com um "fundamentalismo de direitos humanos", afetando o "privilégio das mulheres de terem filhos". O discurso, por mais absurdo que seja, é a receita de bolo do proselitismo ultraconservador, repleto de frases feitas, reproduzidas e repetidas coletivamente, sobretudo nas redes sociais, amplificando a disseminação de fake news.
Em 2020, a <a href="https://www.jota.info/eleicoes/damares-alves-derrota-flavia-arruda-e-e-eleita-senadora-pelo-distrito-federal-02102022">ministra Damares Alves</a> também discursou, ao afirmar que "[c]elebramos que o texto da declaração ora assinada consagre a inexistência de um direito à interrupção voluntária da gravidez, como às vezes se afirma em determinados fóruns internacionais". Se já não bastasse o posicionamento obtuso em relação à ONU, completou que "se diga abertamente: nada, no direito internacional dos direitos humanos, fundamenta esse hipotético direito de valer-se do aborto como opção do planejamento familiar".
Ecos que reverberam inverdades! A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ao considerar que estereótipos de gênero influenciam na vulneração da autonomia reprodutiva das mulheres<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, reconheceu a estreita relação entre pobreza, abortos inseguros e altas taxas de mortalidade materna, e outros fatores estruturais, como desigualdade, racismo, discriminação e violência, que impedem mulheres de usufruir de seus direitos fundamentais, como o direito à saúde<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Ademais, a CIDH entende que a “negação da interrupção voluntária da gravidez em certas circunstâncias constituem uma violação dos direitos fundamentais das mulheres, meninas e adolescentes”<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Em caso emblemático acerca da possibilidade de fertilização in vitro na Costa Rica<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, a Corte Interamericana de Direitos Humanos teve a possibilidade de ratificar o entendimento da comissão. Assim, afirmou que “a interpretação histórica e sistemática dos antecedentes existentes no Sistema Interamericano confirma que não é procedente conceder o status de pessoa ao embrião”, ou seja, que este não é abarcado pelo artigo da Convenção Americana de Direitos Humanos que protege o direito à vida.
No âmbito da ONU, o Comitê CEDAW expressou sua preocupação “pelo potencial que as leis antiaborto têm de atentar contra o direito da mulher à vida e à saúde. O Comitê estabeleceu que a proibição absoluta do aborto, bem como sua penalização sob determinadas circunstâncias, viola o disposto na CEDAW. Esta interpretação foi ratificada no Caso L.M.R. vs. Argentina, no qual o órgão convencional observou que negar o aborto legal em um caso de estupro causou à vítima sofrimento físico e mental, com o que se violou seu direito à intimidade e a não ser submetida a tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante”<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
O posicionamento retrógrado demonstrado pela ministra ecoa internamente nas políticas públicas brasileiras, como no caso da portaria adotada pelo Ministério da Saúde no mês anterior (Portaria 2.282/2020), estabelecendo como obrigatória a notificação dos médicos à polícia quando uma vítima de estupro interrompesse a gravidez, tendo estas que descrever as circunstâncias da violência sexual e a identidade do agressor, passando por grave tortura psicológica.
Com a derrota de Trump, o governo brasileiro foi alçado ao papel de protagonista na defesa dessa agenda antiaborto do cenário internacional. Na semana passada. Valery Huber, ex-representante de Donald Trump para temas relacionados à saúde da mulher, enfatizou a liderança brasileira em discurso durante a adesão da Guatemala a uma coalizão antiaborto. Isso enquanto o presidente Joe Biden retira os EUA da iniciativa, formando outra aliança com governos democráticos e uma agenda progressista para as mulheres e o movimento LGBTQIA+.
A Guatemala possui altos índices de violência de gênero. Em 2018, o governo guatemalteco foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por sua omissão em relação ao direito à saúde de pessoas com HIV e seus familiares. Na sentença, foi considerada que a falta adequada de atenção médica ao estado de gravidez e de puerpério “são causas de alta mortalidade e morbilidade materna, de modo que os Estados devem adotar medidas de proteção, assumir uma posição especial de garantidor”<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>. Os Estados têm, na verdade, um dever positivo de garantir a saúde da mulher grávida e no puerpério, garantindo seus direitos mais básicos à vida, à saúde sexual e reprodutiva, e à dignidade.
Ao felicitar a Guatemala pela suposta coragem e por “servir de exemplo à América Latina”, Damares explicou que “os objetivos do governo brasileiro, como a Declaração proclama, são reafirmar todos os direitos humanos das mulheres; o direito inerente de todo ser humano à vida; e que, em nenhuma hipótese, o aborto deve ser promovido como um método de planejamento familiar”.<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>
Outra falácia digna dos sofistas gregos. Em local algum o aborto é utilizado como método de planejamento familiar, ou como a primeira alternativa que isenta as pessoas de educação e proteção sexual. O que sempre se busca é a proteção dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher. Não é apenas o direito de liberdade de escolha, mas, ao se tratar de abortos inseguros realizados principalmente pelas mulheres pretas e pobres, é a proteção do direito à vida da mulher.
Inspirada justamente por essa linha de pensamento subvertida dos valores de proteção dos direitos humanos, no dia 8 de março, simbolicamente no Dia Internacional da Mulher, a ministra não assinou declaração conjunta no que se refere à saúde feminina e seus direitos reprodutivos e sexuais, ficando ao lado de Arábia Saudita, Egito, Rússia e China<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>. Seu posicionamento já era no sentido de seguir as diretrizes da Declaração de Genebra, sendo, paradoxalmente, coerente em sua incoerência com a realidade, que mata mulheres – pretas e pobres – sistematicamente.
O aborto inseguro ainda é a causa de maior mortalidade materna, mesmo com o aumento de 233% de casos de mortes maternas por Covid-19 de 2020 a 2021<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>. E a ministra – que paradoxalmente chefia o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos! – expressou sua opinião em canal jornalístico de que o aborto seria uma violência contra a mulher. Se já não bastasse a ausência de Censo, que também não é ocasional e desconectado, o planejamento e o monitoramento de políticas públicas ficam profundamente prejudicados pelo desprendimento da realidade demonstrado em falas ultraconservadoras.
A posição do governo brasileiro como protagonista na defesa de uma agenda antiaborto do cenário internacional, considerando nessa coalizão países que matam a comunidade LGBTQIA+ ou estão sob regimes ditatoriais, é gravíssima. Por mais que os absurdos sejam cotidianos, não podemos deixar de nos revoltar com um governo que, por negligência, tal como na pandemia, ignora as vidas de mulheres que morrem em abortamentos inseguros sem acesso médico ou com assistência precarizada, que não desenvolve políticas públicas de proteção à mulher grávida, que não investe seu próprio orçamento nas finalidades institucionais de seus próprios ministérios, se diga, orgulhosamente, ser a favor da vida. Só há celebração da morte e do retrocesso. Só há ecos ao horror.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em: <a href="https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/10/23/brasil-assina-declaracao-internacional-contra-o-aborto-e-a-favor-do-papel-da-familia.ghtml">https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/10/23/brasil-assina-declaracao-internacional-contra-o-aborto-e-a-favor-do-papel-da-familia.ghtml</a>. Último acesso em 20 out 2021.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Disponível em: <a href="https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/10/22/brasil-eua-e-ditaduras-se-aliam-jamais-havera-direito-ao-aborto.htm?cmpid=copiaecola">https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/10/22/brasil-eua-e-ditaduras-se-aliam-jamais-havera-direito-ao-aborto.htm?cmpid=copiaecola</a>. Último acesso em 20 out 2021.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> OVÍDIO. Metamorfoses. Domingos Lucas Dias (tradutor). São Paulo: Editora 34, 2017.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> CIDH. Acceso a servicios de salud materna desde una perspectiva de derechos humanos. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 69. 7 junho 2010, 29; e CIDH. Acceso a la justicia para mujeres víctimas de violencia sexual: la educación y la salud. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 65. 28 dezembro 2011, 144.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> OEA. Declaración sobre la violencia contra las niñas...
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> OEA. Declaración sobre la violencia contra las niñas...
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a>  CORTE IDH. Caso Artavia Murillo e outros (Fertilização in Vitro) vs. Costa Rica. Sentença de 28 de novembro 2012. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Série C no 257.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a>. UN, CEDAW, Caso L.M.R. Vs. Argentina, CDH, Com. nº 1608/2007, Doc. ONU CCPR/C/101/D/1608/2007 (2011).
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> CORTE IDH. Caso Cuscul Pivaral e outros Vs. Guatemala. Exceções preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 23 de agosto de 2018. Série c n. 359.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Disponível em: <a href="https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/10/18/governo-brasileiro-e-alcado-a-lider-de-alianca-ultraconservadora-mundial.htm?cmpid=copiaecola&amp;cmpid=copiaecola">https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/10/18/governo-brasileiro-e-alcado-a-lider-de-alianca-ultraconservadora-mundial.htm?cmpid=copiaecola&amp;cmpid=copiaecola</a>. Último acesso em 20 out 2021.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> Disponível em: <a href="about:blank">https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/03/08/brasil-nao-adere-a-ato-de-60-democracias-na-onu-pela-defesa-das-mulheres.htm</a>. Último acesso: 20 out 2021.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> Disponível em: <a href="https://apublica.org/2021/05/aborto-inseguro-e-das-principais-causas-de-morte-materna-e-mulheres-negras-sofrem-mais/">https://apublica.org/2021/05/aborto-inseguro-e-das-principais-causas-de-morte-materna-e-mulheres-negras-sofrem-mais/</a>. Último acesso em 20 out 2021.

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JOTA

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