Beatriz Figueiredo Campos da Nóbrega

A relação entre comércio e meio ambiente é inegável e a necessidade de preservação ambiental, inegociável.
Mas, em meio à crescente tensão geopolítica internacional, a escalada de medidas restritivas ao comércio internacional amparadas em justificativas ambientais tem sido objeto de preocupação.
A chamada "transição verde", para uma economia menos poluente e de baixo carbono, não pode servir de instrumento à competição na ordem internacional, sobretudo quando em prejuízo ao lado mais fraco da balança.
Credenciais ambientais cada vez mais complexas são exigidas, por meio de regulações inovadoras, condicionando a entrada de mercadorias nos mercados dos países desenvolvidos. Ao imporem barreiras técnicas ao comércio, as regulações ambientais (green measures) condicionam as transações mercantis  a procedimentos muitas vezes onerosos, desproporcionais e não transparentes, exigindo um crescente alinhamento da cadeia produtiva a critérios de conformidade ambiental.
Soluções regulatórias podem, e devem, induzir a uma equação positiva ao binômio “comércio-meio ambiente”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.  Mas merecem cautela quando, adotadas no âmbito do comércio internacional, causam efeitos extraterritoriais sobre os demais Estados (spillover effect). Embora originalmente adstritas à esfera nacional ou regional, estas green measures afetam o comércio internacional pois, afinal, os produtos exportados, para acederem ao país das restrições, devem se adequar às suas exigências e requisitos ambientais.
Portanto, devem ser observadas de perto pelos potenciais afetados, como o Brasil.
É o caso de regulações restritivas à importação de mercadorias que sejam produzidas em áreas com desmatamento florestal ou que  acarretem emissão de carbono no seu processo produtivo.  Iniciativas de carbon-pricing e deforestation-free regulations são exemplos ilustrativos<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
De acordo com o World Trade Report da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/omc">OMC</a>, de setembro de 2023, “enquanto políticas ambientais são ferramentas importantes para proteger o meio ambiente e acelerar a ‘transição verde, muitas são desenhadas e implementadas sem levar em consideração os seus impactos sobre o comércio.” O isolamento na adoção de medidas unilaterais ou regionais sem coordenação multilateral, diz a OMC, afeta não apenas sua efetividade, mas “também impacta parceiros comerciais”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Mas estas medidas são compatíveis com os princípios e regras do sistema multilateral de comércio?
Embora o framework da Organização Mundial do Comércio (OMC) permita aos Estados regularem o comércio para proteger a vida ou a saúde humana, animal ou vegetal, também prevê que isto não pode configurar discriminação arbitrária ou injustificada ao comércio internacional (artigo XX, Parte II, General Agreement on Tariffs and Trade 1947 - GATT 1947).
No mesmo sentido, o Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio (TBT Agreement) da OMC prevê que exigências  técnicas não podem servir de instrumentos à criação de obstáculos desnecessários ao comércio, tampouco serem mais restritivas do que o necessário para cumprir um objetivo legítimo (artigo 2.2, TBT Agreement). E isto sem mencionar o compromisso de “tratamento especial e diferenciado”, assumido pelos membros da OMC em relação aos países em desenvolvimento, que também deve ser observado para as restrições comerciais (artigo XXXVI, Parte IV, Gatt 1947).
Há dúvidas, porém, se o arcabouço jurídico da OMC, que não foi substantivamente atualizado desde a Rodada Uruguai, pode prover instrumentos efetivos contra as novas formas de protecionismo do século 21. O enfraquecimento do seu órgão de solução de controvérsias, ademais, reduz a possibilidade de que conflitos comerciais sejam resolvidos de forma proporcional e ao amparo do quadro normativo multilateral.
Em particular, no caso do Brasil, a transposição da agenda ambiental para o comércio internacional expõe a vulnerabilidade das exportações nacionais: intensivas em recursos naturais,  são potenciais alvos para medidas comerciais com objetivos ambientais, sobretudo os setores intensivos em recursos naturais, como o agropecuário e o de mineração.
Relatório da FAO e da OCDE para o período 2023-2031 destaca o papel central das exportações de bens primários na econômica brasileira<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>,  o país como “world’s prime exporter of basic agricultural commodities”<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Documentos anteriores das mesmas organizações (Relatório da FAO e OCDE 2021-2031<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>), no entanto, já alertavam para o relevante impacto que regulações produzem nos mercados da agricultura, dos biocombustíveis e pesca, alterando fundamentalmente a estrutura do mercado.
Cita-se no relatório, ainda, os potenciais efeitos do Acordo Mercosul-União Europeia sobre a estrutura do comércio internacional, acaso celebrado O princípio da precaução (precautionary principle) é uma das divergências entre europeus e brasileiros, sendo  cláusula que permitiria restrições à importação de produtos, seja pelo uso de agrotóxicos, desmatamento ou, no geral. A vagueza e amplitude do termo (precaução), por si só, é preocupante, precisando estar amparado em evidencias científicas.
Cabe lembrar que as origens do sistema GATT remontam a um momento histórico em que a busca da integração econômico-comercial foi concebida como um remédio contra os extremismos políticos que culminaram em duas Grandes Guerras. A OMC, criada em 1995, veio consolidar a busca de cooperação, transparência, competição leal, não discriminação, proibição ou eliminação de barreiras e, com isso, a liberalização com vistas a  um comércio internacional justo.
O nacionalismo e o regionalismo, contudo, voltaram a ser uma realidade. Isto fica evidente pela difusão dos Acordos Regionais de Comércio nas últimas décadas, bem como pelo papel central desempenhado pelos blocos regionais na condução das decisões adotadas na economia mundial – como União Europeia, Mercosul, Nafta e Apec. Os fenômenos ainda se manifestam pela paralisação do mecanismo de solução de controvérsias da OMC, símbolo de inegável de um frágil multilateralismo.
Mas ainda há soluções que podem ser buscadas no âmbito multilateral para evitar distorções ilegítimas ao comércio internacional. Seja pela instauração de Specific Trade Concerns perante a OMC; seu Trade Policy Review Mechanism; pela ativação do seu inovador mecanismo de Multi-Party Interim Appeal Arbitration Arrangement, caso por meio de consultas e Painel não se atinja solução satisfatória; ou, ainda, pela tentativa de suprir o gap regulatório multilateral, com negociações de parâmetros ambientais a serem inseridos, de maneira coordenada e coletiva, em acordos internacionais<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. Nesse último caso, porém, o risco de fragmentação regulatória precisa ser sopesado diante da possibilidade, virtuosa, de convergência para regras comuns em algum momento futuro.
De qualquer maneira, é certo que, se no pós-guerra a cooperação internacional foi impulsionada pelos arranjos institucionais de Bretton Woods, a efetividade destas organizações multilaterais hoje está debilitada. Estratégias cada vez mais arrojadas e sagazes não ocultam a realpolitik de interesses nacionais e regionais colocados em primeiro plano. Por mais que uma reglobalização seja pouco provável no cenário atual, é preciso pensar em formas de resgatar a efetividade destas instituições.
Onde está o Leviatã internacional, quando a comunidade internacional parecer regredir ao estado hobbesiano de guerra de todos contra todos?
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> O comércio, e a cadeia produtiva subjacente, pode estimular o uso de energias não renováveis, impulsionar a emissão de poluentes e agravar o desmatamento; mas, por outro lado, pode estar orientado por políticas comerciais que promovam o acesso a tecnologias limpas, tornando os processos de produção mais sustentáveis e eficientes, diminuindo a utilização de insumos nocivos ao meio ambiente e apoiando o crescimento econômico sustentável e o desenvolvimento social.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Neste sentido, recentes iniciativas europeias do CBAM e EUDR - a Carbon Border Adjustment Mechanism e a European Union Deforestation Regulation. Por mais legítima que seja sua rationale, os critérios usados não podem ser desnecessários,desproporcionais ou excessivamente onerosos.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> “While environmental policies are important tools to protect the environment and accelerate the green transition, many  of the policies are designed and implemented without considering their trade impacts. A lack of coordination of environmental policies not only affects the effectiveness of such policies, but also impacts trading partners” E o relatório continua: “and could invite trade retaliation (...) [and] result in more costly and less effective policies. World Trade Organization. World Trade Report 2023.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> O que é observado de perto pelos parceiros internacionais, vide: <a href="https://www.ers.usda.gov/amber-waves/2022/september/brazil-s-momentum-as-a-global-agricultural-supplier-faces-headwinds/">https://www.ers.usda.gov/amber-waves/2022/september/brazil-s-momentum-as-a-global-agricultural-supplier-faces-headwinds/</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> “The Latin America and Caribbean region has experienced a vast expansion of its exports, notably from Brazil, and is projected to reinforce its position as the world’s prime exporter of basic agricultural commodities.” (grifo nosso). OECD-FAO Agricultural Outlook 2023-2032, página 62.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> “Policies play an important role in agricultural, biofuel and fisheries markets, for which policy reforms often change market structure”. OECD-FAO Agricultural outlook 2021-2030”, página 27. Vide: <a href="https://www.oecd-ilibrary.org/agriculture-and-food/oecd-fao-agricultural-outlook-2021-2030_19428846-en">https://www.oecd-ilibrary.org/agriculture-and-food/oecd-fao-agricultural-outlook-2021-2030_19428846-en</a>
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a>Como é feito no Singapore-Australia Green Economy Agreement e no Asia-Pacific Economic Cooperation (APEC)'s Model Schedule of Commitments for Environmental and Environmentally Related Services.

comércio exterior

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Relação entre comércio e meio ambiente coloca desafios globais em debate

Economia verde ou protecionismo verde?

Relação entre comércio verde e protecionismo ambiental coloca desafios globais em debate em meio à crescente tensão geopolítica internacional