Gustavo Fossati

Layla Salles

Isael Meneses

A ineficiência da regulação tributária de um dos serviços protagonistas na atual conjuntura de prática de isolamento social no país produz um custo desnecessário ao ambiente econômico.
Com os avanços tecnológicos ocorridos desde o final do último século, muitos dos quais denominados de disruptivos,<a href="#_edn1" name="_ednref1">[i]</a> foi possível observar a transformação do modelo econômico tradicional no que se denomina de economia digital,<a href="#_edn2" name="_ednref2">[ii]</a> a qual é marcada pelo funcionamento virtual de mercados e negócios em nível global.
<a href="https://conteudo.jota.info/solucoes-para-crise"><img class="aligncenter wp-image-244421 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-solucoes-para-a-crise-1.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Quanto ao impacto dessa digitalização no setor de transportes no Brasil, verificou-se que a disseminação da prestação de serviço de utilidade pública por particulares, contratados por meio de plataforma digital para smartphones, acabou por dar ensejo à alteração na dinâmica de funcionamento do mercado de transportes, seja com relação tanto aos correspondentes processos quanto à variedade de produtos ofertados, chegando-se ao ponto de ser inquestionável a respectiva essencialidade no contexto das determinações de isolamento social feitas pelos governos dos estados no bojo da pandemia provocada pelo vírus Covid-19.<a href="#_edn3" name="_ednref3">[iii]</a>
Ressalte-se que tal mudança no estado da arte dos transportes acabou por tornar necessária a adaptação do modelo regulatório tributário até então vigente.<a href="#_edn4" name="_ednref4">[iv]</a>
Entretanto, ainda que esse tipo de serviço de transporte digital tenha sido introduzido no Brasil em meados de 2014,<a href="#_edn5" name="_ednref5">[v]</a> os debates acerca da respectiva legalidade ocorridos também em países como os Estados Unidos, Alemanha, França e China, pareceram abafar a tomada de decisões pelos municípios e pelo Distrito Federal acerca do tratamento tributário concedido à correlata atividade econômica.
Muito embora o governo federal tenha dado ensejo por meio da Lei 13.640/18<a href="#_edn6" name="_ednref6">[vi]</a> ao ajuste da Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei 12.587/12) para fins de inclusão das diretrizes de regulamentação do serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros, com relação à matéria tributária, as iniciativas ainda permanecem tímidas e diferenciadas nas distintas cidades do país, já que alguns municípios sequer editaram normas tributárias específicas quanto ao tema, e outros deram ensejo à produção normativa inadequada para fins de incentivo dessa atividade econômica.
Partindo-se da configuração de um sistema jurídico-tributário ótimo como premissa essencial à realização de uma regulação tributária eficiente<a href="#_edn7" name="_ednref7">[vii]</a> das distintas atividades econômicas, propomos analisar, no presente artigo, em um esforço não exaustivo, as normas tributárias editadas por algumas das capitais dos estados e pelo Distrito Federal quanto ao serviço de transporte prestado por particulares por meio de aplicativo, iluminando o estado da arte da regulação tributária relativa à essa atividade econômica no país.
Alinhado ao fenômeno da digitalização, ocorrido nas relações sociais e econômicas, mormente em razão das facilidades promovidas pela internet, o setor dos transportes no Brasil passou a ser inundado por novos condutores, veículos e produtos de utilidade pública, ofertados e contratados por meio de plataformas digitais vinculadas a softwares de propriedade de empresas localizadas em países estrangeiros.
Os tradicionais tipos de produtos disponíveis no mercado até então, como os táxis, com acionamento presencial ou por telefone, passaram a concorrer com novas alternativas de transporte de menor custo, contratação virtual e as mais diversas ferramentas de personalização, como a escolha da categoria do veículo utilizado, da possibilidade de silêncio durante a viagem, de temperatura mais ou menos amena e, ainda, com a oportunidade de avaliação do condutor e do serviço em si.
Não obstante os benefícios dessa modalidade de serviço e a correspondente utilidade para a mitigação do impacto do corrente nível de desemprego no Brasil acabem tornando a respectiva proibição praticamente inviável, inúmeros debates foram travados no cenário nacional acerca da correspondente legalidade, principalmente em virtude de alegada concorrência desleal com relação ao serviço prestado por taxistas, profissão devidamente regulamentada pela “Lei dos Taxistas” e sujeita a uma série de obrigações, como, por exemplo, a obtenção de licenciamento específico, conforme a Lei  12.468/11.<a href="#_edn8" name="_ednref8">[viii]</a>
Contudo, ainda que a mencionada dificuldade de adaptação do mercado às mudanças advindas da inovação tecnológica nos transportes não tenha sido exclusividade do Brasil, depois da mencionada regulamentação dos serviços por aplicativo pelo governo federal, percebe-se que tais debates por aqui vêm sendo em parte apaziguados, abrindo-se espaço ao endereçamento das correlatas questões tributárias, as quais são determinantes ao desenvolvimento da citada atividade econômica e, com isso, à geração de renda aos motoristas e de receita aos distintos municípios do país e ao Distrito Federal.<a href="#_edn9" name="_ednref9">[ix]</a>
Tratando-se da atual configuração do sistema tributário brasileiro no âmbito do serviço de transporte por aplicativo, com base na análise das normas editadas por algumas das capitais dos estados e no Distrito Federal, verificou-se, de um lado, significativa inexistência de normas tributárias, como é o caso de Aracaju, João Pessoa, Florianópolis e Boa Vista<a href="#_edn10" name="_ednref10">[x]</a> e, de outro lado, a concomitante existência de dispositivos semelhantes aos editados pelos municípios de Natal, Palmas, Salvador e Distrito Federal,<a href="#_edn11" name="_ednref11">[xi]</a> estabelecendo três tipos de cobrança simultaneamente:
<ol>
<li>Imposto sobre Serviços (ISS);</li>
<li>Taxa pelo exercício do poder de polícia atrelado à fiscalização dessa atividade econômica digital;</li>
<li>Preço público pela exploração intensiva do sistema viário urbano.</li>
</ol>
No que tange à essa última modalidade de cobrança, os municípios instituíram espécie de “preço público”, definindo, como fato gerador, a utilização da infraestrutura viária para a prestação de serviços de transporte remunerado, privado e individual, de passageiros.
Os destinatários da cobrança são as operadoras de plataformas tecnológicas (OPT), empresas credenciadas pelo poder público e autorizadas a disponibilizar e operar aplicativo on-line de agenciamento de viagens, visando à conexão entre passageiros e prestadores.
A cobrança é realizada por meio da aplicação de uma alíquota ad valorem aplicada sobre a receita auferida em cada deslocamento, destinando-se a arrecadação desse “preço público”, em regra, a projetos na área de transporte público e conservação do meio ambiente, da malha viária e da mobilidade urbana.
A busca por um sistema tributário ótimo, estruturado sobre os princípios da equidade, da clareza, da razoabilidade e da produção do menor custo possível,<a href="#_edn12" name="_ednref12">[xii]</a> é fundamental para a realização de uma regulação tributária eficiente da atividade econômica. No entanto, vislumbramos os seguintes problemas na regulação tributária dos serviços de transporte por aplicativo:
<ol>
<li>O sistema tributário não é uniforme;</li>
<li>Algumas das normas tributárias editadas, ao estabelecerem a cobrança de preço público, terminam por inovar no ordenamento tributário, sem o respectivo respaldo constitucional, produzindo um custo desnecessário ao ambiente econômico;</li>
<li>Em virtude dos itens anteriores, o correspondente modelo regulatório é ineficiente.</li>
</ol>
No que diz respeito à falta de uniformidade no ordenamento jurídico-tributário relativo ao transporte por aplicativo, importa mencionar que a diversidade regulatória dessa mesma atividade econômica, conforme a localização ou o município da prestação do serviço, afeta o ideal de vinculação da tributação à capacidade contributiva dos contribuintes e, consequentemente, os benefícios trazidos ao ambiente econômico face ao princípio da neutralidade fiscal, previsto no artigo 146-A, da Constituição Federal brasileira.<a href="#_edn13" name="_ednref13">[xiii]</a>
A cobrança de “preço público” pela exploração intensiva do sistema viário urbano, como se fosse um pedágio, é extremamente problemática.
Primeiro, porque deturpa o conceito de pedágio, entendido como a exação decorrente da utilização de vias conservadas pelo poder público. De regra, a manutenção das vias públicas de acesso local dentro dos municípios é custeada pelo caixa geral dos impostos, visto que o benefício trazido é para toda a coletividade e não apenas para um único tomador do serviço público.
Excepcionalmente, admite-se a cobrança de contribuição de melhoria, mas apenas quando se tratar de evidente obra pública de construção ou reconstrução da via pública, da qual decorra valorização imobiliária para os proprietários dos imóveis beneficiados, não podendo caracterizar mero serviço de manutenção e conservação.
Segundo, porque viola o princípio da igualdade. Se o fato gerador é a utilização da infraestrutura viária, e os destinatários da cobrança são as operadoras de plataformas tecnológicas (OPT), então todos os demais usuários da infraestrutura viária, que tanto se beneficiam igualmente dela como contribuem para o seu desgaste, deveriam pagar igualmente a exação.
Caso contrário, o que se tem é o tratamento desigual de contribuintes que se encontram em situação equivalente, o que é manifestamente vedado pela Constituição Federal. Em outras palavras, quer cobrar essa exação como se fosse um pedágio, então cobra de todos os condutores de veículos automotores que utilizam as vias conservadas pelo poder público.
Terceiro, porque a tributação dessa atividade econômica deve ocorrer por meio do ISS. Isso, porque tanto o operador da plataforma como os motoristas via aplicativo são prestadores de serviços. O primeiro presta um serviço de intermediação de transporte de passageiros entre o transportador e o passageiro, via plataforma on-line ou aplicativo digital. O segundo presta o serviço de transporte propriamente dito que, quando for intramunicipal, é sujeito ao ISS. Ambos são atores econômicos no setor de serviços, sujeitos, portanto, ao ISS.
<blockquote class="jota-article__eye">Esse quadro normativo expõe uma clara ineficiência regulatória em virtude da produção de custos desnecessários ao ambiente econômico dos transportes por aplicativo, trazendo, ao fim, um cenário de incerteza e de insegurança jurídica.<a href="#_edn14" name="_ednref14">[xiv]</a></blockquote>
Diante do exposto e da análise das normas tributárias editadas por algumas das capitais dos estados e pelo Distrito Federal, mesmo depois de quase seis anos da implementação do serviço de transporte privado por aplicativo no país, o quadro atual da produção normativa tributária ainda não se configurou adequadamente, de modo a alcançar a necessária regulação tributária eficiente, o que tem gerado obstáculos ao desenvolvimento dessa atividade econômica de nítida relevância no contexto das medidas de isolamento social, da geração de empregos, de renda e de receita aos municípios e ao Distrito Federal.
Este artigo expressa a opinião do autor, não representando necessariamente a opinião institucional da FGV.
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<hr />
<a href="#_ednref1" name="_edn1">[i]</a> A inovação disruptiva se dá quando da respectiva capacidade de enfraquecimento ou, eventualmente, de substituição de indústrias, empresas ou produtos estabelecidos no mercado. Ver: Cortez, Nathan. Regulating disruptive innovation. Berkeley Technology Law Journal, Berkeley, n. 29, p. 175-228, 2014.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[ii]</a> Muito embora o conceito de economia digital ainda não seja pacífico na doutrina, vale mencionar a seguinte definição: “The digital economy represents the pervasive use of IT (hardware, software, applications and telecommunications) in all aspects of the economy, including internal operations of organizations (business, government and non-profit); transactions between organizations; and transactions between individuals, acting both as consumers and citizens, and organizations”. (Cohen, Delong, Weber, and Zysman 2001)". Ver aqui: Atkinson, Robert D. and McKay, Andrew S., Digital Prosperity: Understanding the Economic Benefits of the Information Technology Revolution (March 2007). Disponível em: <a href="https://ssrn.com/abstract%20=1004516">https://ssrn.com/abstract =1004516</a> or <a href="https://dx.doi.org/10.2139/ssrn.1004516">http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.1004516. Acesso em 01/04/2020.</a>
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[iii]</a> No estado do Rio de Janeiro, as medidas de isolamento social são objeto do Decreto 47.006, publicado no Diário Oficial em 30 de março de 2020.
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[iv]</a> A doutrina denomina desconexão regulatória a situação em que se faz necessária uma reconexão regulatória. Isso ocorre quando novas tecnologias em funcionamento são relegadas a um vazio regulatório. Ver: Baptista, Patricia; Keller, Klara I., Por que, quando e como regular as novas tecnologias? Os desafios trazidos pelas inovações disruptivas. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 273, p. 123-163, set./dez. 2016.
<a href="#_ednref5" name="_edn5">[v]</a> O termo inicial da prestação do serviço de transporte por aplicativo resta baseado na data de ingresso da empresa Uber no país, conforme informação constante no site da empresa: <a href="https://www.uber.com/pt-BR/newsroom/fatos-e-dados-sobre-uber/">https://www.uber.com/pt-BR/newsroom/fatos-e-dados-sobre-uber/</a>. Acesso em 03/04/2020.
<a href="#_ednref6" name="_edn6">[vi]</a> Para acesso à norma federal que regulamenta o serviço de transporte por aplicativo, ver: . Acesso em 03/04/2020.
<a href="#_ednref7" name="_edn7">[vii]</a> O sentido de regulação tributária, como empregado neste trabalho, é o da interferência do Estado no domínio econômico, pelas normas de Direito Tributário, no sentido de disciplinar determinada atividade privada. Paralelamente, a regulação tributária eficiente é vinculada ao alcance dos efeitos esperados com a citada interferência, como é o caso da configuração de crescimento econômico face ao desenvolvimento daquela atividade econômica.
<a href="#_ednref8" name="_edn8">[viii]</a> Para acesso à Lei dos Taxistas, ver: <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/%20L12468.htm">http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/ L12468.htm. </a>Acesso em 03/04/2020.
<a href="#_ednref9" name="_edn9">[ix]</a> Paulo Caliendo menciona a vinculação entre o crescimento econômico e a carga tributária. Ver: Caliendo, Paulo. Direito Tributário e análise econômica do Direito: uma visão crítica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 113.
<a href="#_ednref10" name="_edn10">[x]</a> Ressalte-se que a constatação da inexistência de normas tributárias aplicáveis ao serviço de transporte por aplicativo nesses municípios deriva de pesquisa realizada nos sítios eletrônicos das respectivas prefeituras, secretarias de fazenda e câmaras municipais.
<a href="#_ednref11" name="_edn11">[xi]</a> Lei 6.913/19, Lei 2.330/17, Lei 5.691/16 e Lei 9.448/19, referentes, respectivamente, a Natal, Palmas, Distrito Federal e Salvador.
<a href="#_ednref12" name="_edn12">[xii]</a> Adam Smith sustenta que o alcance de um sistema tributário ótimo resta vinculado aos princípios da equidade, clareza, razoabilidade e menor produção de custos ao ambiente econômico. Ver aqui: Caliendo, Paulo. Direito Tributário e análise econômica do Direito: uma visão crítica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 113.
<a href="#_ednref13" name="_edn13">[xiii]</a> O princípio da neutralidade fiscal tem como proposta a garantia da diminuição dos efeitos da tributação sobre a decisão dos agentes econômicos, mitigando distorções e ineficácias no sistema econômico. O Estado deve implementar suas políticas com o mínimo de efeitos negativos para a sociedade. Ver: Caliendo, Paulo. Direito Tributário e análise econômica do Direito: uma visão crítica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 113.
<a href="#_ednref14" name="_edn14">[xiv]</a> A insegurança jurídica trazida pela proposta de cobrança de preço público sobre o serviço de transporte por aplicativo é objeto de reportagem que trata do Projeto de Lei 01/20, que tramita na Câmara Municipal de Porto Alegre. Disponível em: <a href="https://camarapoa.rs.gov.br/noticias/projeto-preve-taxacao-de-transporte-por-aplicativo.%20Acesso%20em%2003/04/2020">https://camarapoa.rs.gov.br/noticias/projeto-preve-taxacao-de-transporte-por-aplicativo. Acesso em 03/04/2020</a>.

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JOTA

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