João Vitor Antunes dos Santos

No último mês, a organização sem fins lucrativos <a href="https://www.cartacapital.com.br/politica/amazonia-ong-pressiona-tpi-a-julgar-bolsonaro-por-crime-contra-humanidade/">AllRise apresentou ao Tribunal Penal Internacional (TPI)</a> novos dados sobre o desmatamento da Amazônia, a fim de reforçar as denúncias feitas contra o presidente da República, Jair Bolsonaro. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) apontou, nesse contexto, que o <a href="https://www.jota.info/jotinhas/desmatamento-da-amazonia-e-preservacao-do-meio-ambiente-o-papel-do-governo-federal-17052022">recorde de áreas desmatadas</a> foi superado e atingiu mais de 1.000 quilômetros quadrados somente em abril de 2022.
Ocorre, porém, que as denúncias realizadas buscam enquadrar a destruição florestal promovida pelo governo brasileiro como um crime contra a humanidade (artigo 7º do Estatuto de Roma do TPI). Atualmente, não há qualquer previsão expressa nesse diploma que penalize condutas diretamente danosas à natureza.
Embora o TPI tenha afirmado no “Policy Paper on Case Selection and Prioritisation” de 2016 que começaria a processar crimes ambientais nos anos seguintes, a Corte manteve-se inerte<a href="#_edn1" name="_ednref1">[1]</a>. Nenhum caso foi julgado até agora.
Com o intuito de superar essa deficiência normativa, o Independent Expert Panel (IEP), composto por 12 juristas da Fundação Stop Ecocide, elaborou finalmente uma <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-ecocidio-e-o-tribunal-penal-internacional-12072021">proposta de definição jurídica para o ecocídio</a>, neologismo este comumente atribuído àquelas ações que provocam danos em massa ao ecossistema. Recomendou-se também que tal crime fosse incorporado ao artigo 5º do Estatuto de Roma com a seguinte redação: “qualquer ato ilícito ou arbitrário perpetrado com consciência de que existem grandes probabilidades de que cause danos graves que sejam extensos ou duradouros ao meio ambiente”<a href="#_edn2" name="_ednref2">[2]</a>.
Frente a esse movimento, cumpre questionar quais são os entraves à incorporação desse novo tipo penal e sob que justificativa ela ainda não aconteceu. Para tanto, o presente artigo tem por objetivo analisar as dificuldades textuais (referentes à redação sugerida) e as dificuldades procedimentais (referentes à tramitação de uma emenda) dessa proposta.
Sob essa primeira perspectiva, observa-se que a definição formulada pelo IEP encontra problemas (i) na atribuição de um mens rea excessivamente brando e (ii) no emprego de um viés antropocêntrico.
O mens rea é considerado como um requisito subjetivo correspondente à intenção do agente de cometer uma conduta criminosa. No seara internacional, o mens rea padrão está disposto no artigo 30 (1) do Estatuto de Roma e consiste na vontade de cometer determinado ilícito junto ao conhecimento de seus elementos materiais (dolo direto). Nada obstante, a expressão “consciência de que existem grandes probabilidades”, presente no esboço da norma sobre o ecocídio, distingue-se da previsão comum do Estatuto e associa-se, na verdade, às modalidades de imprudência e de dolo eventual — tipos muito mais fáceis de serem preenchidos.
Embora o artigo 30 (1) admita exceções ao mens rea padrão, é imperioso perceber que as únicas disposições nesse sentido são para a responsabilidade de chefes militares ou outros superiores hierárquicos (artigo 28). Na jurisprudência, uma única ressalva foi admitida isoladamente no caso The Prosecutor v. Thomas Lubanga Dyilo, quando o TPI permitiu a negligência para crimes de guerra com a utilização de crianças como soldadas<a href="#_edn3" name="_ednref3">[3]</a>.
É também preciso notar que nenhum dos quatro delitos atualmente contemplados pelo estatuto dispõe sobre seu respectivo mens rea de maneira tão abrangente quanto àquela proposta. Assim sendo, podemos presumir que alguns Estados-Parte, preocupados com a eventual responsabilização de seus nacionais, apresentem maior resistência em ratificar uma emenda que vise a adicionar um tipo penal com um requisito subjetivo pouco rigoroso.
Somado a isso, vale ressaltar ainda a ótica antropocêntrica sob a qual a redação se sustenta. De acordo com a comissão do IEP, a palavra “arbitrário” (“wanton”) refere-se ao “imprudente descuido por danos que seriam claramente excessivos em relação aos benefícios sociais e econômicos previstos”.
Nesse ponto, a proposta pretende introduzir um exame de proporcionalidade, ou seja, uma análise de custo-benefício que admite a destruição do ecossistema caso os ganhos sejam claramente superiores aos prejuízos. Em outras palavras, tal norma permitiria causar “danos graves que sejam extensos ou duradouros ao meio ambiente” desde que a humanidade fosse suficientemente beneficiada. Essa escolha textual mostra-se, portanto, contraproducente ao espírito da norma e deve deixar certos Estados-Parte apoiadores da causa ambiental relutantes em apoiar sua aprovação nesses moldes.
Superada a análise das dificuldades intrínsecas à redação atribuída pelo IEP, há de se realçar as três principais dificuldades procedimentais: (i) a formação de uma maioria entre os Estados-Parte; (ii) a morosidade na tramitação de propostas de emenda ao Estatuto; e (iii) a regra jurisdicional aplicada aos crimes emendados.
Quanto ao primeiro aspecto, uma alteração normativa em assembleia exige a rígida maioria de dois terços dos Estados-Parte presentes e votantes nos moldes do artigo 121 (2). A incorporação de um novo crime também requer que sete oitavos dentre eles tenham depositado os respectivos instrumentos de ratificação ao secretário-geral da ONU. No que toca ao ecocídio, é necessário salientar que uma configuração majoritária se torna ainda mais complexa devido ao lobby de nações influentes, como Reino Unido e Estados Unidos, os quais historicamente se posicionaram contrárias à adição desse tipo penal.
A segunda preocupação procedimental diz respeito à demora na introdução de um novo crime ao Estatuto de Roma. Para fins comparativos, vale reparar que sete anos se passarem entre a definição legal do tipo de agressão em 2003 e a aprovação de sua emenda em 2010. Sob essa lógica, as estimativas do copresidente do IEP, Philippe Sands, são de que o trâmite de inclusão do ecocídio ao estatuto pode demorar entre 5 e 50 anos<a href="#_edn4" name="_ednref4">[4]</a>. Resta saber se o planeta consegue esperar.
Por fim, entende-se pela leitura do artigo 121 (5) que a jurisdição automática do TPI somente é aplicada àqueles crimes originais ao estatuto, de modo que os Estados-Parte não são obrigados a se sujeitarem a regramentos referentes a delitos inseridos a posteriori.
Veja-se, por exemplo: as emendas de 2017 que adicionaram ao artigo 8º os crimes de guerra mediante uso de armas biológicas foram ratificadas por apenas dois Estados-Parte (Luxemburgo e Eslováquia) até o presente momento<a href="#_edn5" name="_ednref5">[5]</a>. Já no caso das chamadas Emendas de Kampala, somente 41 países — dentre os 123 Estados-Parte do Estatuto de Roma — ratificaram a inclusão do crime de agressão ao artigo 5º. Logo, o obstáculo aqui exposto reside na possível não ratificação da emenda do ecocídio por uma quantia substantiva de membros, de sorte que este crime se torne praticamente ineficaz.
Em conclusão, o caminho para a incorporação efetiva do ecocídio ao Estatuto de Roma deve ser longo e sinuoso. Há de se considerar que a redação apresentada pelo IEP não é necessariamente definitiva e que as dificuldades textuais e procedimentais apresentadas podem (e devem) ser enfrentadas.
Para além do avanço normativo que essa medida produziria aos casos de destruição sistemática como o da Amazônia, é imperioso destacar que o aumento de discussões sobre essa pauta já tem sido, por si só, de extrema importância para a preservação ambiental. Ainda que a tipificação do ecocídio não deva ser vista como a panaceia para os problemas ecológicos, este pode ser um mecanismo eficiente para se fazer cumprir o direito humano ao meio ambiente.
<hr />
<a href="#_ednref1" name="_edn1">[1]</a> Policy paper on case selection and prioritization. Office of the Prosecutor. Disponível em: <a href="https://www.icc-cpi.int/sites/default/files/itemsDocuments/20160915_OTP-Policy_Case-Selection_Eng.pdf">https://www.icc-cpi.int/sites/default/files/itemsDocuments/20160915_OTP-Policy_Case-Selection_Eng.pdf</a>. Acesso em: 05 jun. 2022.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[2]</a> Independent Expert Panel for the Legal Definition of Ecocide: Commentary and Core Text. Disponível em: <a href="https://www.stopecocide.earth/legal-definition">https://www.stopecocide.earth/legal-definition</a>. Acesso em: 05 jun. 2022.
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[3]</a> TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 07 de fevereiro de 2007, The Prosecutor v. Thomas Lubanga Dyilo Disponível em: <a href="https://www.icc-cpi.int/pages/record.aspx?uri=266175">https://www.icc-cpi.int/pages/record.aspx?uri=266175</a>. Acesso em: 20 mai. 2022.
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[4]</a> SANDS, Philippe. The legal concept of Ecocide. Entrevistador: Dirk Brengelmann. Disponível em: <a href="https://www.youtube.com/watch?v=ChYTmfwDUGI&amp;t=2143s&amp;ab_channel=DuitslandinNederland">https://www.youtube.com/watch?v=ChYTmfwDUGI&amp;t=2143s&amp;ab_channel=DuitslandinNederland</a>. Acesso em: 07 jun. 2022.
<a href="#_ednref5" name="_edn5">[5]</a> HELLER, Kevin Jon. The Rome Statute’s Flawed Amendment Regime – Starvation in NIAC Edition.  OpinioJuris. Disponível em: <a href="http://opiniojuris.org/2019/12/07/the-rome-statutes-flawed-amendment-regime-starvation-in-niac-edition/">http://opiniojuris.org/2019/12/07/the-rome-statutes-flawed-amendment-regime-starvation-in-niac-edition/</a>. Acesso em: 04 jun. 2022.

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