Gustavo Badaró*

Muita celeuma e agitação causou a liminar concedida pelo Ministro Teori Zavascki na Medida Cautelar na Reclamação nº 23.457/PR, determinando que a investigação, que envolve o ex-presidente Lula, atualmente sem foro por prerrogativa de função, fosse encaminhada ao Supremo Tribunal Federal.
O Min. Teori Zavascki não decidiu que Lula tem foro por prerrogativa de função. Decidiu que, tendo surgido na investigação contra Lula, a possibilidade de cometimento de crimes por pessoas detentoras de foro por prerrogativa de função, a investigação deve ser remetida ao Tribunal competente, no caso, o STF.
Reproduz-se o item 7 da decisão: “Enfatiza-se que, segundo reiterada jurisprudência desta Corte, cabe apenas ao Supremo Tribunal Federal, e não a qualquer outro juízo, decidir sobre a cisão de investigações envolvendo autoridade com prerrogativa de foro na Corte, promovendo, ele próprio, deliberação a respeito do cabimento e dos contornos do referido desmembramento (Rcl 1121, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Tribunal Pleno, julgado em 04/05/2000, DJ 16-06-2000 PP-00032 EMENT VOL-01995-01 PP-00033; Rcl 7913 AgR, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 12/05/2011, DJe-173 DIVULG 08-09-2011 PUBLIC 09-09-2011 EMENT VOL-02583-01 PP-00066). No caso em exame, não tendo havido previa decisão desta Corte sobre a cisão ou não da investigação ou da acabo relativamente aos fatos indicados, envolvendo autoridades com prerrogativa de foro no Supremo Tribunal Federal, fica delineada, nesse juízo de cognição sumaria, quando menos, a concreta probabilidade de violação da competência prevista no art. 102, I, b, da Constituição da Republica”.
Reafirmou-se a ilegalidade de posicionamento que vem sendo adotado em outros casos da Operação Lava-Jato, pelo Juiz Sérgio Moro, nos quais o magistrado fazia a seleção dos elementos colhidos que envolveriam as pessoas com foro por prerrogativa de função e os remetia para o Supremo Tribunal Federal.
Desnecessário enfatizar a relevância do tema, que vai muito além da mera decisão de desmembramento ou não da investigação. Trata-se, substancialmente, de observância ou não de regra constitucional de competência originária dos tribunais, afetando diretamente a garantia do juiz natural, enquanto juiz competente predeterminado por lei. O art. 5.º, caput, inc. LIII, assegura: “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”.
A circunstância de a garantia constitucional referir-se a processo, enquanto que se está analisado um caso ainda na fase de investigação, não afasta a necessidade de observância do citado dispositivo constitucional. Conforme já tivemos oportunidade de analisar, em tese específica sobre a garantia do juiz natural, “se no curso da investigação criminal o juiz é chamado a proferir decisões de suma relevância, com possibilidade de produzir graves efeitos sobre a vida, a intimidade e o patrimônio do investigado, não há nenhuma razão para considerar que este juiz não precisa ser ‘tão imparcial’ quanto o juiz do processo. Nada justifica que se possa dispensar ou abrir mão de relevante mecanismo que permite afastar situações de risco de um julgador parcial, como o caso da garantia do juiz natural. Por tudo isso, é de se concluir que a garantia do juiz natural também se aplica ao juiz que atua durante a fase da investigação preliminar”.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Mas, se o juiz natural incide também na investigação, no caso de investigado com foro por prerrogativa de função, a partir de que momento a investigação deve ser conduzida pelo tribunal competente?
A resposta, de grande repercussão prática, pressupõe que se defina quando há elementos relevantes de um provável crime praticado por detentor de foro por prerrogativa de função, a justificar a remessa a investigação do juiz de primeiro grau para o tribunal originariamente competente.
A questão não é analisada pela doutrina, e foi por nós tratada em dois pareceres ofertados na própria Operação Lava-Jato, cujos principais argumentos serão reproduzidos.
Principia-se pela verificação casuística dos julgados do próprio Supremo Tribunal Federal sobre o tema, que já decidiu “a simples menção de nome de parlamentar, em depoimentos prestados por investigados, não tem o condão de firmar a competência do Supremo Tribunal Federal para o processamento de inquérito”.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Ou seja, não basta um simples chamamento do co-investigado. Isto é, um investigado, apenas mencionar o nome de pessoa com foro por prerrogativa de função, ainda que lhe atribuindo o concurso ou a prática delitiva, não seria suficiente para deslocar a competência para o tribunal.
Por outro lado, o STF não adota conceito formal de “investigação” ou de “investigado”, para que seja atraída sua competência. Basta que, “substancialmente”, uma pessoa detentora de foro por prerrogativa de função esteja sendo, de fato, investigada, ainda que, por subterfúgios, não se lhe atribua formalmente tal condição.
No julgamento da Reclamação nº 2349-4/TO, o STF considerou que “o convite para depor a respeito de imputação que constaria de um depoimento já e em si ato de investigação”, descocando a competência do juiz de primeiro grau para tal tribunal.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>  No julgado, o voto do Min. Sepúlveda Pertence, fornece parâmetros concretos e precisos da situação que autorizara o deslocamento da investigação para o STF: “o convite para prestar declarações ao deputado reclamante se faz em razão do interrogatório do cidadão A. R.. Nesse interrogatório, a única referência ao Deputado é que seria ele, segundo um terceiro, quem exigiria propinas para a liberação de recurso da SUDAN, um dos beneficiários dessa propina”.
Em outro caso, bem recente, o Agravo Regimental no Inquérito nº 3.847/GO, o mesmo entendimento foi seguido: “O procedimento de investigação, iniciado em primeiro grau, foi encaminhado ao Supremo Tribunal Federal em face de simples menção ao nome do parlamentar, a fim de se deliberar, exatamente, sobre a viabilidade ou não de se iniciar a persecução penal em relação a ele. E quais são os elementos de informação trazidos pela Procuradoria-Geral da República para lastrear essa pretensão? Um papelucho apócrifo, de teor absolutamente genérico, que não descreve nenhum fato concreto em relação ao parlamentar nem está corroborado por qualquer elemento idôneo de prova.”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Até mesmo a simples menção do nome de detentor de foro por prerrogativa de função em boletim de ocorrência, já justificou o deslocamento da competência: “ao receber o Boletim de Ocorrência em que a vítima narrava crime supostamente praticado por Deputado Federal, imediatamente deveria a autoridade policial ter tomado providências no sentido de encaminhar as peças ao Juízo de primeiro grau para que fosse declinada a competência a este Supremo Tribunal Federal”.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Analisando caso muito semelhante ao presente, o STF entendeu ter havido usurpação de sua competência por não lhe ter sido remetida a investigação.  Transcrevo o ponto em que há analise da situação concreta posta em julgamento: “Dado o teor de vários diálogos telefônicos travados entre os diversos envolvidos, não haveria dificuldade em constatar-se que J.O.G., então Deputado Federal, aparecia em várias ocasiões, seja como participante das conversas ou, ainda, como alguém referido por terceiro. (...) Todos esses elementos, de modo conjugado, robustecem meu convencimento de que, embora as autoridades que conduziam o inquérito à época tivessem ciência do suposto envolvimento de parlamentar federal no caso, nada fizeram para corrigir a situação”.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
Em suma, dos julgados do STF, é possível extrair que o procedimento de investigação, iniciado em primeiro grau, deve lhe ser encaminhado no caso em que, no interrogatório de um investigado surja notícia de que um Deputado Federal nominado exigiria propina;<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> ou mesmo se existir um simples papel com menção ao nome de parlamentar;<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> ou, ainda, de ser lavrado um boletim de ocorrência em que a vítima narrava crime cometido por deputado federal.<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a> De mais relevante, é o entendimento, agora reafirmado, de que, no caso em que em interceptação telefônica, a competência deve ser deslocada, pelo simples fato de surgir a menção ao prenome e nome de um deputado federal conhecido por seu destaque político.<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>
Estabelecida a premissa acima, é necessário definir quem analisa a existência de tais elementos e, posteriormente, o desmembramento ou não da investigação em relação a quem não ostenta foro por prerrogativa de função. Normalmente, a notícia do envolvimento de um político ou funcionário público egrégio ocorre quando se investiga alguém que não detém foro por prerrogativa de função, que com ele teria praticado uma infração penal. Em tal caso, haverá relação de continência por cumulação subjetiva (CPP, art. 77, I), ser sua consequência normal a formação de um processo único (CPP, art. 79). Para tanto, o art. 78 do CPP estabelece as regras de de definição do “foro prevalecente”, isto é, daquele que irá ganhar competência, tendo sua esfera de atuação ampliada, em detrimento do foro que irá perder competência. De interesse para a questão em análise é o inciso III do art. 78, que dispõe: “no concurso de jurisdições de diversas categorias, predominará a de maior graduação”.
Ou seja, concorrendo para um crime uma pessoa detentora de foro no STF, com outra que deve ser julgada por um juiz de primeiro grau, o processo será, em regra, único, e perante o STF. Exemplo clássico disso, foi o a Ação Penal 470/MG.
Contudo, o STF, visando não ampliar demasiadamente sua atuação, inclusive julgando quem a Constituição não lhe atribuiu competência para o fazer, tem se valido da amplíssima regra de separação dos processos, do art. 80 do CPP, para desmembrar os feitos em que há conexão e continência, ficando no próprio tribunal somente a investigação de quem detém foro por prerrogativa de função, e determinando o prosseguimento da persecução penal em primeiro grau, em relação a quem não ostenta tal prerrogativa.
Mas nesse caso em que ocorre o desmembramento, a quem cabe aplicar a regra do artigo 80 e desmembrar o processo? Ou, indagando de outra forma: quem desmembra é o juiz de primeiro grau, menos graduado, ou a jurisdição de maior hierarquia, no caso, o STF?
As respostas são induvidosas: tal decisão caberá ao próprio Supremo Tribunal Federal, e nunca aos juízes de primeiro grau. A apreciação da ocorrência concreta das abertíssimas hipóteses de aplicação do art. 80 do CPP, determinando ou não a separação do processo, será sempre da “jurisdição de maior hierarquia”. Caso contrário, a decisão do julgador de menor hierarquia, estaria condicionado o julgamento do juiz de maior hierarquia. Mais do que isso, o julgador menos graduado estaria impondo ao mais graduado a separação dos processos, quando no caso concreto o tribunal de maior hierarquia poderia, tendo um conhecimento completo dos fatos, optar por não desmembrar o feito.
Em recente julgado, relatado pelo próprio Min. Teori Zavascki, decorrente de feito também originário da denominada Operação Lava Jato, o STF decidiu, com base em seus precedentes, que: “é de ser tido por afrontoso à competência do STF o ato da autoridade reclamada que desmembrou o inquérito, deslocando o julgamento do parlamentar e prosseguindo quanto aos demais’ (...) ‘até que esta Suprema Corte procedesse à análise devida, não cabia ao Juízo de primeiro grau, ao deparar-se, nas investigações então conjuntamente realizadas, com suspeitos detentores de prerrogativa de foro - em razão das funções em que se encontravam investidos -, determinar a cisão das investigações e a remessa a esta Suprema Corte da apuração relativa a esses últimos, com o que acabou por usurpar competência que não detinha’” <a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>
Noutro julgado, igualmente referente à denominada Operação Lava Jato, o STF deixou claro que a ele cabe apreciar a excepcionalidade ou não do caso, decidindo pelo seu desmembramento ou, se houver motivo justificante, a manutenção da união processual.<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>
Em suma, a decisão nada mais fez do que garantir a competência do STF no caso de pessoas com foro por prerrogativa de função, que somente podem ser processadas e investigadas perante o próprio STF. E, surgindo elementos ou indícios de seu possível envolvimento em um crime praticado em concurso com quem não ostenta foro por prerrogativa de função, cabe ao Tribunal, por ser hierarquicamente superior, e não ao juiz de primeiro grau, decidir que órgão judiciário será competente para a investigação e eventual processo.
Mesmo que seja possível o desmembramento, ficando no STF somente os investigados que ostentam foro por prerrogativa de função, não cabe ao juiz selecionar, ao seu alvedrio, quais elementos dizem respeito aos investigados que ocupam cargos egrégios, remetendo-os ao STF. É exatamente o oposto, o juiz de primeiro grau deve remeter toda a investigado ao STF, a quem caberá, então, no caso de prosseguimento da investigação, decidir se todos os envolvidos, inclusive os que não tem foro por prerrogativa de função, ficarão sob a jurisdição do tribunal ou, ao contrário, se o feito será desmembrado, retornando ao primeiro grau os investigados não sujeitos à competência originária do STF.
Em apertada síntese, a decisão é correta. E o STF, juiz natural da causa,  que deverá pautar a competência do juiz de primeiro grau, e não o contrário, com o juiz Sérgio Moro definindo o que os Ministros do Supremo Tribunal Federal deverão julgar, embora este pareça se o desejo daqueles que colocam sua ideologia acima da Constituição.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Gustavo Henrique Badaró, Juiz Natural no processo penal, São Paulo: RT, 2014, p. 237-238.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> STF, HC nº 82.647/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Carlos Veloso, j. 18.03.2003, j. v.u.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> STF, Rcl nº 2349-4/TO, Pleno, Rel. Min. Carlos Velosso, rel p. Ac. Min. Cezar Peluso, m.v.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> STF, Ag Rg no Inq nº 3.847/GO, 1.ª Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, j.07.04.2015, v.u..
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> STF, Inq. 3438/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Rosa Weber, j. 11.11.2014, v.u.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> STF, Inq. 2842/DF, Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 02.05.2013, v.u.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> STF, Rcl nº 2349-4/TO, Pleno, Rel. Min. Carlos Veloso, rel p. Ac. Min. Cezar Peluso, m.v.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> STF, Ag Rg no Inq nº 3.847/GO, 1.ª Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, j.07.04.2015, v.u..
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> STF, Inq. 3438/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Rosa Weber, j. 11.11.2014, v.u.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> STF, Inq. 2842/DF, Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 02.05.2013, v.u.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> STF, Apn nº 871 QO/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 10.06.2014, v.u.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> STF, Ag Rg no Inq. nº 3.515/SP, Plenário, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 13.02.2014.

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Desnecessário enfatizar a relevância do tema, que vai muito além da mera decisão de desmembramento ou não da investigação

E surge um investigado com foro por prerrogativa de função: em que momento a investigação deve ser remetida para o tribunal competente?

Desnecessário enfatizar a relevância do tema, que vai muito além da mera decisão de desmembramento ou não da investigação