Maurício Barros

Após pouco mais de quatro anos de tramitação, a <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/reforma-tributaria-e-aprovada-em-1o-turno-na-camara-dos-deputados-07072023">Câmara dos Deputados aprovou</a>, em 7 de julho deste ano, o texto da <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2196833">PEC 45-A/2019</a>, que propõe a racionalização do regime de tributação do consumo no Brasil, por meio da criação de uma versão dual do Imposto sobre Valor Agregado (IVA): um tributo de competência federal, denominado Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), e um IVA subnacional, que será de competência compartilhada entre estados e municípios, denominado Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Enquanto a CBS tomará o lugar do PIS e da Cofins, o IBS terá a finalidade de substituir o ICMS e o ISS.
Os novos tributos terão base ampla e incidirão sobre operações com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos ou serviços, realizada por pessoas físicas ou jurídicas ainda que não contribuintes habituais dos tributos.
As vantagens do novo regime são diversas e os principais objetivos da reforma, a simplificação e a transparência, caso a estrutura básica da PEC seja mantida no Senado, onde aguarda votação em dois turnos, deverão ser atingidos em médio e longo prazos. Isso porque o IBS e a CBS deverão ser tributos mais simples de serem aplicados na prática e, ao incidir por fora, proporcionarão aos consumidores finais conhecer exatamente a carga de tributação indireta que deverão absorver.
Um dos pilares da simplicidade será o regime não cumulativo que está sendo proposto. Nesse ponto, a PEC 45 representa um grande avanço em comparação com os sistemas aplicados no ICMS e no PIS/Cofins, considerando que o texto aprovado acena com um critério de não cumulatividade (quase) plena e com a adoção de um critério financeiro para admitir a compensação.
Eis o texto aprovado:
<blockquote class="jota-article__citation">“com vistas a observar o princípio da neutralidade, será não cumulativo, compensando-se o imposto devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem, material ou imaterial, inclusive direito, ou serviço, excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal, nos termos da lei complementar, e as hipóteses previstas nesta Constituição”.</blockquote>
De fato, adotar a neutralidade como um princípio tende a fazer com que o IBS e a CBS sejam, efetivamente, arcados pelo consumidor final. Isso porque, embora incidam em cada etapa das cadeias plurifásicas de bens e serviços, a ideia é que cada contribuinte (intermediários dessas cadeias) repasse integralmente o ônus dos tributos para as etapas subsequentes (contribuintes/adquirentes) até que os tributos sejam suportados, integralmente, pelos consumidores finais.
Esse sistema, típico dos impostos sobre o valor agregado cobrados mundo afora, evita que ocorram resíduos tributários indevidos nas cadeias produtivas, como ocorre atualmente com o ineficiente e anacrônico sistema de tributação indireta brasileiro, que convive com os resíduos completos de IPI<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> e ISS, e uma não cumulatividade excessivamente limitada do ICMS e do PIS/Cofins, que definitivamente não são neutros.
Contudo, por mais que o texto seja muito melhor do que o atualmente aplicado aos tributos que serão extintos, ao excepcionar a possibilidade de crédito sobre operações “consideradas de uso e consumo pessoal, nos termos da lei complementar”, a PEC 45 adota uma fórmula que se aproxima da fracassada experiência do ICMS e que deve ser evitada, diante de todos os problemas enfrentados quanto à não cumulatividade no sistema atual de tributação do consumo.
Isso porque, a expressão “uso e consumo pessoal” é composta de termos com conceitos bastante vagos, claramente com inspiração na legislação da Lei Complementar 87/96 (Lei Kandir), que veda a apropriação de créditos de mercadorias e serviços para “uso e consumo” do estabelecimento e de veículos de transporte pessoal (dentro do conceito maior de “mercadorias ou serviços alheios à atividade do estabelecimento”).
Com efeito, embora ligeiramente distinta, a estrutura legal de aproveitamento de créditos de ICMS, conforme a Lei Complementar 87/96, pode ser classificada em três classes básicas de mercadorias e serviços segundo a sua possibilidade de proporcionar créditos, a saber:
<ul>
<li>1ª Classe – nunca darão direito a crédito: mercadorias e serviços (1) que se refiram a mercadorias ou serviços alheios à atividade do estabelecimento; (2) isentos ou não tributados (exceto exportação); (3) empregados em mercadorias e serviços isentos ou não tributados (exceto exportação) (art. 20, §§ 1º e 2º);</li>
<li>2ª Classe – crédito a partir de 1/1/2032: mercadorias e serviços de uso e consumo do estabelecimento (arts. 20, caput e 31, inc. I);</li>
<li>3ª Classe – sempre darão direito a crédito: demais mercadorias (inclusive ativo) e serviços adquiridos para uso nas atividades do estabelecimento.</li>
</ul>
A casuística na aplicação desses dispositivos, ao longo dos anos, tem se demonstrado desastrosa, na medida em que contribuintes, estados e tribunais têm interpretações distintas quanto às mercadorias e aos serviços que se enquadrariam em cada categoria, o que contribui para a enorme insegurança jurídica causada pelo imposto estadual.
Apenas para citar alguns parâmetros, já foram utilizados por fisco e decisões administrativas e judiciais, para a permissão ou não de créditos, os seguintes critérios:
<ol>
<li>Consumo integral e imediato da mercadoria no processo industrial do contribuinte;</li>
<li>Aplicação/utilização na atividade fim da empresa;</li>
<li>Consumo que não represente simples desgaste natural;</li>
<li>Contato físico com mercadoria produzida;</li>
<li>Essencialidade no processo produtivo, entre outros.</li>
</ol>
Com esses simples exemplos, é possível observar que a não cumulatividade de um tributo que incide sobre a comercialização acaba tomando por base, muitas vezes, critérios que deveriam ser atrelados apenas ao IPI (1 a 4) e, até mesmo, ao PIS/Cofins (5), tributos cujas materialidades são totalmente distintas do ICMS.
Mesmo na aplicação da não cumulatividade em outras atividades sujeitas ao ICMS, a confusão é enorme e os resultados, desastrosos. Basta lembrar a reiterada negativa de créditos de ICMS na aquisição de pneus por empresas transportadoras, atividade que seria totalmente inviabilizada não fossem tais aquisições.
Os termos citados nos exemplos 1 a 5, que fique bem claro, não constam na legislação do ICMS – correspondem a possíveis interpretações do texto da LC 87/96 quanto ao creditamento que, em algum momento, foram utilizados pelas autoridades fiscais e tribunais para a solução de casos concretos. Em alguns casos, os mesmos dispêndios chegaram a ser enquadrados em todos esses critérios em situações análogas, com diferentes consequências para os contribuintes envolvidos nos casos concretos, o que realça o grande repertório de insegurança jurídica.
A jurisprudência do STJ, por sua vez, ainda não foi capaz de dirimir a questão, mesmo passados quase 30 anos desde a publicação das Lei Kandir. Com efeito, a questão ainda será definida pela Primeira Seção, no tão aguardado julgamento do EAREsp 1.775.781/SP, que decidirá se bens que “apenas se desgastam pelo seu uso constante”, mas “não se consomem” durante o processo de industrialização, podem ensejar direito a créditos de ICMS.
A questão foi levada à Primeira Seção a partir de uma decisão contrária aos contribuintes, proferida pela Segunda Turma, e a existência de decisão divergente na Primeira Turma, muito embora a própria Segunda Turma também tenha decisões convergentes<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> com o entendimento da Primeira, o que só realça a grande instabilidade da matéria nos tribunais.
É certo que a redação da PEC 45 pretende aperfeiçoar o texto bruto da LC 87/96 referente à segunda classe apontada acima (uso e consumo), ao acoplar o termo “pessoal” à expressão “uso e consumo”. Esse acoplamento, certamente, tenderia a diminuir os conflitos interpretativos, por restringir o alcance da expressão.
No entanto, se alguns dispêndios podem ser claramente vislumbrados como excludentes do creditamento nesse novo paradigma (exemplo: compras de supermercado para consumo do proprietário da empresa, viagens de férias de diretores com suas famílias etc.), outros nem tanto. Como qualificar, por exemplo, dispêndios relacionados ao transporte dos empregados de uma indústria, de suas residências às instalações fabris, ou ainda refeições e medicamentos consumidos nos mesmos locais? E quanto às despesas de celulares e laptops fornecidos pelas empresas e que também podem ser utilizados fora do horário de trabalho?
Além da questão semântica em si, há ainda um grave risco de a lei complementar que vier a regular esse tema ser extremamente restritiva e gerar mais dúvidas interpretativas. Nesse sentido, os regimes do ICMS e do PIS/Cofins, que encontram na legislação infraconstitucional uma grande carga de regulação, geraram e ainda têm gerado, sobretudo o PIS/Cofins, um enorme contencioso, justamente pelas indevidas restrições à não cumulatividade que impõem.
O próprio termo “uso e consumo”, adotado pela Lei Kandir, é uma criação genuína do legislador complementar, considerando que a Constituição em nenhum momento veda esse tipo de creditamento – a Constituição, em relação ao ICMS, limita-se a vedar os créditos nos casos de isenção e não incidência, bem como ao exigir a efetiva cobrança na etapa anterior, como decidiu o STF.
Vale lembrar que o STF, no julgamento do Tema 346 da Repercussão Geral, decidiu que o simples fato de a Constituição ter previsto que compete à lei complementar “disciplinar o regime de compensação do imposto” (art. 155, § 2º, inciso XII, alínea “c”) já autorizou a lei complementar a vedar os créditos de mercadorias adquiridas para uso e consumo, tendo fixado que “o contribuinte apenas poderá usufruir dos créditos de ICMS quando houver autorização da legislação complementar”.
Isso em um contexto constitucional no qual, como dito, somente havia vedações expressas de aproveitamento de créditos nos casos de isenção e de não incidência, conforme art. 155, § 2º, inciso II. Logo, a permissão de tratamento da matéria por lei complementar na PEC 45, que também relega à lei complementar a competência para dispor sobre o regime de compensação do IBS e da CBS, no art. 156-A, § 5º, inciso II, pode abrir uma brecha para que venham restrições e insegurança semelhantes ao que o ocorreu, e tem ocorrido, com o ICMS, o que é completamente indesejado e pode ser evitado.
Por tudo isso, parece que a adoção da expressão “uso ou consumo pessoal” poderia ser evitada e ceder lugar a um texto mais direto e que já não venha impregnado com tantas acepções distintas dos regimes anteriores, em função de sua vagueza e histórico de conflitos. Embora seja difícil encontrar um texto mais preciso, uma ideia seria a de se permitir o creditamento de tudo aquilo que for usado ou consumido no estabelecimento ou nas atividades (meio e fim) da empresa, já que o foco de um IVA é a tributação do consumo final.
Ainda que possa haver consumo final por contribuintes, a marginalidade desse consumo diante de todo o volume de transações tributadas justifica ignorar essas circunstâncias em prol de uma maior simplificação. Já os consumos pessoais de sócios, dirigentes etc. deveriam ser tratados como casos de simulação, já devidamente tipificados na legislação (art. 149, inciso VII, CTN; art. 167, § 1º, incisos I e II, Código Civil), com a consequente lavratura de autos de infração e a cobrança dos tributos, multas e juros.
Além disso, parece salutar que a delegação à lei complementar para regular essa matéria seja totalmente banida, para que não se repitam os mesmos erros do passado e se possa avançar em um modelo de IVA que realmente atenda aos anseios de simplificação e justiça.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Embora o foco seja substituir o IPI pelo Imposto Seletivo (IS), não exatamente incorporá-lo aos IBS e/ou à CBS, fato é que o atual imposto sobre produtos industrializados não funciona como um verdadeiro excise tax, pois incide sobre virtualmente quase todos os produtos industrializados em alguma medida, diferentemente do que deverá ser o IS. Por essa razão, o IPI é visto como mais um tributo indireto arrecadatório que onera quase que indiscriminadamente todo o consumo.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> A título de exemplo, a Segunda Turma do STJ, no julgamento do REsp 1.175.166 (DJe de 26/03/2010), analisou caso de contribuinte que prestava serviço de transporte e desejava apropriar créditos de ICMS de peças utilizadas em veículos de sua frota. Embora a decisão tenha determinado o retorno dos autos à corte de origem, o entendimento foi o de que a Lei Kandir não limitou o crédito, tampouco fez referência à necessidade do material integrar-se ao produto final, bastando que o “insumo” fosse aplicado e consumido na atividade fim da empresa para que ensejasse o direito ao crédito.

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JOTA

Expressão 'uso ou consumo pessoal' na PEC 45 poderia ser evitada e ceder lugar a um texto mais direto

É possível melhorar a não cumulatividade do IBS e da CBS

Reforma tributária e não cumulatividade do IBS e da CBS: expressão 'uso ou consumo pessoal' na PEC 45 poderia dar lugar a texto mais direto