Gustavo Severo

O registro de candidatura é, sem dúvida, um dos momentos mais importantes em uma eleição. É através do procedimento de registro que se forma, em definitivo, o panorama político que se desenha meses, às vezes até anos, antes do pleito. É nesse momento que os chamados pré-candidatos - que agora, com as alterações inseridas pela Lei 13.165/15, têm permissão legal para assim se apresentar perante a sociedade - serão escrutinados a fim de se verificar se preenchem os requisitos legais para se candidatar.
Não são poucos esses requisitos. Embora a democracia confira ao povo - e apenas a ele - a escolha de seus dirigentes, é comum a todos os regimes democráticos o estabelecimento de regras e requisitos que, ao impor determinados óbices às candidaturas, acabam por fazer uma seleção prévia daqueles que podem ser escolhidos.
No Brasil, se a capacidade eleitoral ativa ganhou superproteção da Constituição Federal de 1988 (após anos de desmandos do regime militar, a constituição cidadã restringiu ao máximo a limitação de direito ao voto, vedando, por exemplo, a possibilidade de perda dos direitos políticos), a capacidade eleitoral passiva vem trilhando caminho totalmente oposto.
A deterioração do sistema político brasileiro e o crescente descontentamento da população com as questionáveis práticas de seus mandatários têm acarretado inúmeras manifestações sociais em busca de reformas políticas. Entretanto, o que se tem visto são meras reformas eleitorais pontuais cuja consequência é apenas aumentar a tutela sobre o eleitorado, restringindo cada vez mais o seu âmbito de escolha nos pleitos eleitorais. Maior exemplo disso é a Lei Complementar nº 135/2010, chamada de "Lei da Ficha Limpa".
Ao alterar a Lei Complementar nº 64/90 - Lei das Inelegibilidades - a LC 135/10 estabeleceu uma série de causas de inelegibilidade e alterou as previsões legais já existentes, estabelecendo requisitos específicos para a configuração de boa parte delas. Assim, o sistema de inelegibilidades, que se desenvolveu com o passar do tempo, ganhou contornos cada vez mais complexos e menos objetivos.
Essa alteração, que por si só já trouxe ônus cada vez maiores aos pretensos candidatos, precisa encontrar eco no processo de registro, com a revisitação a temas já consolidados.
Um desses temas, de suma importância para o estabelecimento de parâmetros seguros e proteção de direitos e garantias fundamentais, é a possibilidade de conhecimento ex officio da ausência de condições de elegibilidade ou existência de causas de inelegibilidade.
A matéria não é nova e vem sendo construída, com base em entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, desde a metade do século passado. Aliás, desde o seu nascedouro a arguição de inelegibilidade tem íntima ligação com o um certo ativismo judicial do Tribunal Superior Eleitoral, tendência que é mantida até os dias atuais em razão das próprias nuances atinentes ao Direito Eleitoral, único ramo do Direito em que o autor da norma é também o seu destinatário final.
Embora a Constituição de 1934 já previsse a possibilidade de arguição de inelegibilidade no início do processo eleitoral, a regulamentação da matéria veio com a edição da Lei nº 4.738/65, que criou, através de lei, o procedimento da arguição. Frisa-se a expressão "através de lei", porque, mesmo diante da omissão legislativa, desde 1950 o Tribunal Superior Eleitoral regulamentava, por meio de Resolução, a possibilidade dessa arguição, legitimando para tanto partidos, candidatos e eleitores.
Em 1965, concomitantemente com a edição da Lei nº 4.738, o Código Eleitoral tratou da matéria. Os dispositivos, entretanto, tinham uma incompatibilidade. Enquanto a Lei nº 4.738 legitimava para a apresentação da arguição apenas partidos políticos e Ministério Público, o Código Eleitoral permitia a qualquer eleitor a iniciativa.
Para dirimir essa inconsistência sistêmica o Tribunal Superior Eleitoral, aplicando as regras hermenêuticas, entendeu que a Lei nº 4.738/65, por ser específica, deveria prevalecer. Contudo, visando ampliar as possibilidades de apreciação das questões sobre inelegibilidade, começou a se construir o entendimento de que, havendo notícia, o juiz poderia conhecer de ofício sobre as causas de inelegibilidade.
Desde então o instituto da "notícia de inelegibilidade", ideia que já ganhou status de dogma, vem sendo repetido, ano a ano, resolução a resolução, mesmo não estando previsto em nenhum dos instrumentos normativos que se seguiram.
Essas breves anotações históricas são importantes para se ressaltar que a "notícia de inelegibilidade" e a possibilidade de conhecimento de ofício das causas de inelegibilidade foram noções estabelecidas em um quadro político e legislativo totalmente diferente do atual e que, com o desenvolvimento das matérias afetas, merecem ser repensados, talvez não em sua essência, mas sem dúvida em seus limites.
A Ação de Impugnação de Registro de Candidatura, ação incidente ao registro em si e que tem o condão de jurisdicionalizar o pedido, tornando a jurisdição contenciosa, está prevista no artigo 3º da Lei Complementar nº 64/90. Esse dispositivo possibilita aos partidos políticos, coligações, candidatos e ao Ministério Público Eleitoral impugnar registro de candidatura, indicando a ausência de condição de elegibilidade ou a presença de causa de inelegibilidade, desde que o faça no prazo de 5 (cinco) dias da publicação do edital e através de petição fundamentada.
A exigência da petição fundamentada, embora pareça lógica e desnecessária, é um ponto nodal ao entendimento da matéria. Com essa singela disposição se ampara de forma abrangente a garantia à ampla defesa e ao contraditório.
Isso porque, quando se trata de restrição a uma garantia fundamental - capacidade eleitoral passiva - não se pode interpretar os direitos à ampla defesa e ao contraditório em sua concepção meramente formal. Não basta que se possibilite meios de defesa ou que se permita ao pretenso candidato que se manifeste sobre a impugnação. É necessário que a petição, devidamente fundamentada, discorra acerca de todos os requisitos para a configuração da causa de inelegibilidade, delimite os motivos pelos quais reputa determinada causa presente e, principalmente, impõe ao impugnante o ônus de comprovar as suas alegações.
Com efeito, a partir do momento em que se instaura a jurisdição contenciosa todos os princípios processuais constitucionais e legais devem ser estritamente observados, sob pena de violação ao devido processo legal.
Nesse cenário se apresenta a "notícia de inelegibilidade" que, embora não esteja amparada pelo princípio da legalidade, deverá observar os demais princípios e garantias processuais. É o que se extrai do artigo 43 da Resolução TSE 23.455, que estabelece que "Qualquer cidadão no gozo de seus direitos políticos poderá, no prazo de cinco dias contados da publicação do edital relativo ao pedido de registro, dar notícia de inelegibilidade ao Juízo Eleitoral competente, mediante petição fundamentada, apresentada em duas vias.".
A regulamentação do TSE também prevê que à notícia de inelegibilidade se aplica, no que couber, as regras de instrução da AIRC. Tem-se então a apresentação de uma "notícia de inelegibilidade" no bojo de um procedimento não contencioso que possibilita ao magistrado inaugurar instrução processual, embora não haja o estabelecimento de uma relação jurídica processual propriamente dita.
A par disso, sedimentou-se o entendimento de que o juiz poderá, tomando conhecimento da existência de qualquer causa de inelegibilidade por qualquer meio, dela conhecer de ofício. Isso significa que mesmo depois de decorrido o prazo para apresentação de AIRC ou de notícia de inelegibilidade, caso venha aos autos notícia da ausência de condições de elegibilidade ou de existência de causa de inelegibilidade, será lícito ao juiz indeferir o registro de candidatura.
A ideia, que como já se afirmou tem status de dogma no Direito Eleitoral, é fundamentada pela doutrina na possibilidade de livre apreciação da prova pelo magistrado, prevista no artigo 7º da Lei Complementar nº 64/90 nos seguintes termos: "O Juiz, ou Tribunal, formará sua convicção pela livre apreciação da prova, atendendo aos fatos e às circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes, mencionando, na decisão, os que motivaram seu convencimento.".
Estão delimitadas, portanto, as premissas que me fazem entender que a possibilidade de conhecimento de ofício de causas de inelegibilidade é inaplicável em determinadas situações: (i) a inelegibilidade devendo ser compreendida como uma restrição a direito fundamental; (ii) aplicabilidade do devido processo legal e suas derivações; (iii) necessidade de garantia do contraditório e da ampla defesa em seu aspecto material; (iv) a necessidade de dedução de petição fundamentada e (v) fundamento no princípio da livre apreciação da prova.
Ressalto que a ideia aqui defendida não é desconstruir a possibilidade de conhecimento de ofício das condições de elegibilidade e das causas de inelegibilidade, o que sem dúvida é salutar à preservação da lisura eleitoral, mas apenas restringi-la às hipóteses objetivas e que não demandem uma perquirição mais aprofundada, com a necessidade de instrução probatória.
Com efeito, inúmeros dos óbices ao deferimento do registro de candidatura podem ser aferidos de forma objetiva e com base nos elementos obrigatoriamente constantes do pedido de registro. Exemplo disso são as condições de elegibilidade, cuja existência deve ser demonstrada de forma documental pelo candidato. São requisitos objetivos de nacionalidade, exercício dos direitos políticos, alistamento, domicílio eleitoral, filiação partidária e idade mínima, todos demonstráveis através de documentos e certidões, muitas delas extraídas do próprio sistema da Justiça Eleitoral. Nesses casos, impossibilitar que o magistrado, sem a apresentação de Impugnação ao Registro, reconheça a inexistência de alguma dessas condições e indefira o registro, mesmo havendo a demonstração documental, seria retirar a própria razão de ser do procedimento de registro.
De igual modo, algumas das causas de inelegibilidade também são objetivas e não exigem atuação ativa do magistrado para que sejam reconhecidas, mesmo na inexistência de impugnação ao registro. É o caso, por exemplo, das causas de inelegibilidade constitucionais - analfabetismo, exercício de cargo eletivo, parentesco com detentores de mandato eletivo e exercício de atividade militar sem o afastamento ou agregação exigidos -, que podem ser aferidas pela simples análise documental.
Mesmo na Lei Complementar nº 64/90, com a redação conferida pela Lei Complementar nº 135/10, existem causas de inelegibilidade objetivas, como a condenação em ação de investigação judicial eleitoral, na qual se comina a sanção de inelegibilidade (art. 1º, I, alínea "d") ou a condenação criminal pelos crimes taxativamente previstos no rol constante do artigo 1º, I, "e", da referida Lei.
Em hipóteses como essas a inelegibilidade pode ser aferida pelo magistrado a partir da mera verificação da efetiva existência de condenação colegiada, sendo desnecessário perquirir qualquer elemento subjetivo para a configuração do tipo legal. Caberá apenas ao candidato comprovar a existência de fato que excepcionalmente afaste a referida inelegibilidade.
O problema se apresenta naquelas causas de inelegibilidade em que a lei não prevê um critério meramente objetivo, mas exige a demonstração de determinados requisitos para a configuração da inelegibilidade. Nesses casos o ônus de comprovar a existência de todos os requisitos para que seja reconhecida a causa de inelegibilidade é do impugnante<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, conforme reiteradamente tem decidido o Tribunal Superior Eleitoral. A questão que ora se propõe é: poderia nesses casos o magistrado, sem a devida provocação, investir-se na função da parte e, determinando a produção de provas, reconhecer de ofício a inelegibilidade?
Tome-se por exemplo a regra prevista no artigo 1º, I, "g", da Lei Complementar n.º 64/90, que trata da inelegibilidade daqueles que tiverem suas contas rejeitadas pelo Tribunal de Contas. Para a configuração da inelegibilidade não basta o julgamento da Corte de Contas, mas o dispositivo legal exige a presença concomitante dos seguintes requisitos: (i) irregularidade insanável; (ii) que configure ato de improbidade administrativa; (iii) decisão irrecorrível do órgão competente; e (iv) inexistência de suspensão ou anulação pelo Poder Judiciário.
À exceção do quarto requisito, que constitui fato modificativo ou extintivo do direito do autor, as demais condições para a configuração da inelegibilidade devem ser demonstradas pelo impugnante em "petição fundamentada" e, principalmente, por ele comprovadas.
Nesse contexto, imagine-se que o nome de um dos pretensos candidatos conste na famigerada "lista dos inelegíveis", amplamente divulgada pelos Tribunais de Contas por todos os canais de mídia e encaminhadas aos Tribunais Eleitorais do país. Ainda que não seja proposta Ação de Impugnação de Registros de Candidatura a notícia dessa possível causa de inelegibilidade fatalmente chegará ao conhecimento do magistrado que, diante da possibilidade de indeferimento do registro de candidatura, determinará a intimação do pretenso candidato para sobre ela se manifestar.
O candidato então estará diante de um acórdão do Tribunal de Contas que analisou cada minúcia formal e material das contas de um convênio, de um município ou de um estado, apontando, no mais das vezes, incontáveis falhas e opinando pela rejeição das contas, sem indicar com precisão qual daqueles vícios deu ensejo à conclusão. E sobre ele terá que se manifestar, sob o ponto de vista da inelegibilidade e seus requisitos, num verdadeiro jogo de adivinhação.
Igual dificuldade se verifica no reconhecimento de ofício da inelegibilidade prevista no artigo 1º, I, “l” da lei 64/90. Para a configuração desse tipo, necessário se faz a comprovação não só da existência de condenação colegiada por improbidade administrativa, mas também a presença de (i) dolo; (ii) enriquecimento ilícito e (iii) lesão ao patrimônio público, comprovação essa cujo o ônus recai unicamente sobre o autor da impugnação do registro de candidatura.
Como, nesta hipótese, se admitir que o magistrado sem qualquer provocação indefira um registro de candidatura?
A oportunização da manifestação do candidato em casos tais nem de longe significará observância do princípio do contraditório em seu aspecto material. A falta de delimitação do requisito para configuração da causa de inelegibilidade retirará do candidato a plenitude de sua defesa, na medida em que o magistrado poderá, eventualmente, considerar para fins de configuração da inelegibilidade um vício que, dentro do contexto do acórdão da Corte de Contas, não foi considerado importante pelo candidato ou por seu procurador quando da manifestação apresentada.
Não por outro motivo é que Flávio Cheim Jorge afirma que "há, enfim, uma carga argumentativa que jamais será dada ao magistrado, sob pena de convertê-lo em parte". <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>Está aí, no meu entendimento, a maior limitação dada ao poder do magistrado conhecer de ofício das causas de inelegibilidade. Embora ele o possa fazer nas hipóteses que exijam análise objetiva e documental, nunca poderá substituir-se ao impugnante na dedução de razões subjetivas (como a presença de dolo por exemplo) que fundamentem a suposta inelegibilidade, sob pena de afronta ao princípio da inércia.
Portanto, sem essa necessária dedução - traduzida na lei e no regulamento com a expressão "petição fundamentada" - restará violado o devido processo legal, pois mitigadas as garantias de contraditório e ampla defesa.
De igual modo, estará comprometida nessa situação a distribuição do ônus da prova. Ao se retirar a figura do impugnante, substituindo-a pela possibilidade de conhecimento de ofício da inelegibilidade, fatalmente ocorrerá a total inversão do ônus da prova, recaindo sobre o pretenso candidato, a partir daí, o ônus de demonstrar e comprovar a inexistência de causa de inelegibilidade.
Trata-se, com a devida vênia de todos os que defendem teses diversas, de verdadeira subversão de todo o processo eleitoral e suas garantias. A possibilidade conferida ao magistrado de fundamentar seu convencimento em elementos não alegados pelas partes ou de determinar a produção de provas complementares não lhe dá liberdade plena de deduzir razões e atuar como parte, promovendo verdadeira investigação nos casos em que os legitimados, talvez pela conveniência de não atrair para si o ônus probatório, quedem-se inertes.
Tudo isso, lembre-se, em um cenário onde o que está em jogo é um dos direitos mais sagrados assegurados pela Constituição Federal: o direito ao sufrágio passivo.
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REFERÊNCIAS
Brasil. Constituição Federal de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.
Brasil. Lei Complementar nº 64/90. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp64.htm#art6
JORGE, Flávio Cheim, LIBERATO, Ludgero e RODRIGUES, Marcelo Abelha. Curso de Direito Eleitoral. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2016
TSE. Resolução 23.455. Disponível em http://www.tse.jus.br/legislacao-tse/res/2015/RES234552015.htm.
TSE. Agravo Regimental em Recurso Ordinário nº 264687, Acórdão de 01/02/2011, Relator Min. HAMILTON CARVALHIDO
ZILIO, Rodrigo Lopez. Direito Eleitoral. 5ª edição. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2016.
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> "1 - O ônus de comprovar a existência de causa de inelegibilidade é do impugnante, conforme remansosa jurisprudência desta Corte.
2 - Agravo regimental a que se nega provimento."
(Agravo Regimental em Recurso Ordinário nº 264687, Acórdão de 01/02/2011, Relator(a) Min. HAMILTON CARVALHIDO, Publicação: DJE - Diário da Justiça Eletrônico, Tomo 35, Data 18/02/2011, Página 22 )
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> JORGE, Flávio Cheim, LIBERATO, Ludgero e RODRIGUES, Marcelo Abelha. Curso de Direito Eleitoral. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2016. p. 506.

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JOTA

Pode o juiz indeferir sem provocação o registro de candidatura?


O reconhecimento ex officio de inelegibilidades

Pode o juiz indeferir sem provocação o registro de candidatura?