Eneida Desiree Salgado

Escrevo sob a ressaca das comemorações do Dia Internacional da Mulher. Século XXI e ainda há homenagens com flores, cosméticos e tratamentos de beleza, entregas de prêmios, bonitos discursos e pouca resposta efetiva para os problemas de gênero. O aumento no tempo da licença paternidade, a portaria interministerial que implementa a realização pelo Sistema Único de Saúde de cirurgias reparadoras de sequelas causadas por atos de violência contra a mulher e a criação da Política Nacional Integrada para a Primeira Infância escaparam um pouco do puro simbolismo. No Senado, para além das homenagens de praxe, o destaque foi para a discussão de um projeto de lei da Câmara, apresentado em 2011 e agora em tramitação no Senado, que propõe a punição de quem paga salários diferentes para homens e mulheres que desempenham a mesma função. Ou seja, quase 28 anos da promulgação da Constituição que consagra a igualdade entre homem e mulher, ainda há diferenças salariais que demandam sanções, e o Parlamento está discutindo o projeto há cinco anos.  Na Câmara, a notícia foi o lançamento da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos Humanos da Mulher, voltada à reação aos retrocessos em relação a direitos das mulheres e ao aumento da representatividade da mulher na política. A Frente conta com 200 parlamentares, sendo 3 senadoras e 23 deputadas federais, de um total de 52 mulheres em exercício na Câmara dos Deputados: ou seja, continuamos na base do #elesporelas.
As propostas da (eterna) reforma política para o aumento da participação feminina nas casas parlamentares são pouco ambiciosas. No Senado, dois projetos de lei buscam aumentar a porcentagem do fundo partidário para campanhas de candidatas (PLS 112/2015, 413/2015), dois incluem a divisão do horário eleitoral gratuito (PLS 232/2013 e PLS 343/2013) e um propõe, ainda, o aumento para 50% das cotas de candidaturas de mulheres nos cargos eleitos pelo sistema proporcional (PLS 389/2014). Todos os projetos estão parados há meses na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, aguardando designação do relator. Na Câmara, vários projetos tramitavam conjuntamente; apenas o 4497/2012, que propõe 50% de cotas de candidatura, teve parecer favorável pela relatora na CCJ – os demais, mais audaciosos, que propunham cotas de representação, tiveram a seguinte apreciação: “tais proposições apensadas não atendem ao princípio de que o voto do eleitor é determinante e, por esta razão, não é admissível desconsiderar os votos dados aos candidatos e obrigar o preenchimento de lugares nas casas legislativas em razão do sexo dos candidatos eleitos. Os referidos projetos de lei, portanto, ofendem, a nosso ver, a cláusula pétrea do voto, inserta no art. 60, § 4o, inciso II, da Constituição Federal”. Há, ainda, projetos que buscam distribuir as garantias constitucionais de acordo com a representação feminina do partido (como o PL 2482/2015, em regime de prioridade, sem tramitação desde agosto de 2015). 
Há, ainda, algumas propostas de emenda à Constituição que pretendem estabelecer cotas de representação. Na Câmara, a PEC 205/2007 busca garantir um terço das cadeiras no Senado para mulheres e, de maneira crescente, 20%, 25% e 33% das cadeiras da Câmara de Deputados, Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores; além disso, também de maneira crescente, impõe cotas de gênero para cargos em comissão e funções comissionadas nos três Poderes e na Administração Indireta de 20%, 25%, 30%, 35%, 40% e 50%, com mudança de patamar a cada 4 anos. Tramitando há três legislaturas, a proposta foi avaliada por três relatores na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania: em 2008, Flavio Dino opinou por sua admissibilidade; em 2014, a deputada Keiko Ota afirmou sua inadmissibilidade; em 2015, Tia Eron defendeu sua admissibilidade. Em nenhum dos casos houve votação do relatório na CCJ e a emenda está sem movimentação desde setembro de 2015. Apensada a essa proposta tramita a PEC 371/2013 que reserva, sem regras de transição, um terço das vagas no Senado e na Câmara para mulheres. Também tramita na Câmara a PEC 134/2015, já aprovada no Senado como PEC 98/2015 que garante cotas de gênero para três legislaturas, na proporção crescente de 10%, 12% e 16%. A relatora na CCJ opinou pela sua admissibilidade.  A PEC 23/2015, em tramitação no Senado, propõe a paridade de cadeiras na Câmara dos Deputados, na Câmara Legislativa, nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras de Vereadores, com regras de transição, começando com 35% e aumentando 5% a cada eleição. A proposta recebeu uma emenda para estabelecer 30% de reserva de vagas, e a relatora na CCJ, Simone Tebet, opina pela admissibilidade, mas propõe a adoção de 30% trazida pela emenda em face da “presente circunstância histórica”.
Das diversas justificativas e pareceres constantes da tramitação dos projetos e das propostas, nota-se a existência de duas visões da igualdade. Tanto os que defendem a adoção de uma ação afirmativa para a inclusão de mulheres nos parlamentos como os que a afastam argumentam em torno do princípio da igualdade. Essas leituras distintas alcançam até mesmo a percepção da necessidade das ações afirmativas e de políticas públicas de redução das desigualdades.
Parte-se aqui de duas premissas. A primeira é que a ideia constitucional de igualdade impõe a adoção de medidas de discriminação positiva, em face da leitura dos objetivos da República estabelecidos pelo artigo 3º da Constituição de 1988: construir uma sociedade livre, justa e solidária, reduzir as desigualdades e promover o bem de todos implicam na configuração de um modelo social de Estado. O cumprimento da Constituição demanda, inafastavelmente, a intervenção do Estado e na compreensão das dimensões prestacionais dos direitos fundamentais, inclusive os direitos de liberdade. 
A segunda premissa é que as mulheres compõem uma minoria política relevante cujas pautas políticas e sociais têm sido sistematicamente ignoradas pelo Parlamento, fato que implica em uma desigualdade ofensiva à Constituição. O retrocesso na defesa dos direitos reprodutivos, a persistente desigualdade de salários e de posições de poder e a permanente violência real e simbólica contra as mulheres são exemplos (não exaustivos) da necessidade de que mais mulheres participem das deliberações e construam as políticas públicas legislativas para a superação deste estado de coisas. Ou seja: parte-se do pressuposto que uma maior presença de mulheres no Parlamento é necessária e desejável.
Levando em consideração esses dois fundamentos – que estão longe de ser consenso em um cenário heterogêneo e pluralista – há três possibilidades de implementar essa participação. Descarto, portanto, desde logo, a estratégia de “sentar e esperar que, naturalmente, as mulheres conquistem seu espaço, porque afinal de contas elas começaram a votar bem depois e daqui a pouco essa discriminação já desaparece e os partidos vão começar a permitir a ascensão de mulheres, porque já temos o Partido da Mulher Brasileira e agora vai”. Rejeito essa postura porque a pauta política do PMB mostra como a referência à mulher é puramente simbólica e porque já são mais de 70 anos de voto feminino e ainda temos umas das representações políticas femininas mais pífias do mundo: o Brasil está em 154º lugar entre 191 nações avaliadas pela Inter-Parlamentary Union em 1º de fevereiro de 2016 (http://www.ipu.org/wmn-e/classif.htm).
 A primeira possibilidade seria a adoção voluntária de quotas pelos partidos políticos, o que funciona bem em países que adotam listas fechadas e bloqueadas nos sistemas proporcionais ou que adotam o voto majoritário (embora aqui com menor efetividade). Em listas não bloqueadas, como no Brasil, cotas voluntárias de partidos políticos acabam por se esvaziar na distribuição desigual de recursos financeiros, da propaganda partidária e do horário eleitoral gratuito. Outro problema é a falta de democracia interna nas organizações partidárias, o que permitira alguns desvios no preenchimento destas cotas por mulheres que, na realidade, seriam reforços ao capital político de pais e maridos. O respeito ao princípio democrático pelos partidos políticos é um problema em nossa frágil democracia: algo que deve ser implementado, se não por vontade própria dos partidos (que livremente se organizam há quase quarenta anos), por decisão parlamentar – e não, obviamente, por imposição derivada de resolução do Tribunal Superior Eleitoral, é bom que se ressalte.
A segunda possibilidade, e que o Brasil experimenta desde 1993, é a cota de candidaturas, que impõe aos partidos a indicação de uma porcentagem de candidatos de cada gênero. Em vigor há doze eleições, com alterações em relação à porcentagem, ao número de candidatos que podem ser registrados pelos partidos e à atenção quanto à seriedade das candidatas inscritas, o modelo, não acompanhado por um fortalecimento partidário das lideranças femininas e por medidas tímidas em relação ao acesso ao fundo partidário, não atingiu resultados satisfatórios. 
A terceira via para implementar a participação da mulher na política e, mais especificamente, no Parlamento é a adoção de cotas de representação. Trata-se de reservar cadeiras nas casas parlamentares segundo critérios de gênero, criando, obviamente, uma diferença de peso nas escolhas eleitorais. Como medida mais enfática, é a que reúne mais críticas, principalmente em relação a um alegado desrespeito à vontade do eleitorado e à baixa representatividade de eventuais mulheres parlamentares que entrariam pelas cotas. Como afirmado acima, defende-se como pressuposto que o Estado deve agir para diminuir a desigualdade, promover o bem de todos e construir uma sociedade livre, justa e solidária e que uma forma de ação é instituir ações afirmativas. A cota de representação para mulheres é uma ação afirmativa e, portanto, parte de uma desigualdade fática para propor uma desigualdade jurídica. As ações afirmativas são válidas constitucionalmente desde que tenham como fundamento uma desigualdade relevante e tenham como efeito a redução da desigualdade e as cotas de representação para mulheres passa por esses testes.
Em relação a um alegado desrespeito à vontade do eleitorado derivado da desigualdade de peso dos votos, deve-se ressaltar que o sistema eleitoral brasileiro já incorpora pesos distintos da manifestação eleitoral, ao instituir um número mínimo e máximo de deputados federais por estados, o que provoca diferenças significativas nos quocientes eleitorais. O brocardo “one man, one vote” (tão machista quanto possível), alegado em uma manifestação parlamentar contra as propostas legislativas de adoção de cotas de representação, já é relativizado no Brasil em nome do princípio federalista. Também pode-se afirmar um deslocamento da vontade do eleitorado pelo sistema proporcional, quando os votos não aproveitados para eleger um candidato são transferidos a outro do mesmo partido ou coligação.
Quanto à provável baixa representatividade das mulheres eleitas por força das cotas de representação, isso ocorre devido às práticas políticas, parlamentares e partidárias que deixam pouco espaço para a participação feminina. E não se trata de desinteresse da mulher, ou não teríamos mais de 44% de mulheres entre os filiados a partidos políticos no Brasil.  Além disso, a abertura do sistema para a necessária participação de mulheres irá, necessariamente, gerar lideranças femininas, abrindo espaço no horário eleitoral gratuito, nas estruturas partidárias e na esfera parlamentar.
Deste modo, defendo a implementação de cotas de representação para mulheres na Câmara de Deputados, da Câmara Legislativa, nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras de Vereadores. Mas não me filio a nenhuma das propostas já apresentadas na Câmara e no Senado: proponho uma política afirmativa de cotas temporária, pois, se a constitucionalidade de uma discriminação positiva deriva da aptidão de gerar efeitos na redução da desigualdade real, as cotas se tornarão desnecessárias com o tempo. 
Há um ano defendi, com Renata Caleffi, a adoção de uma cota de 40% de cadeiras para mulheres, considerando o quociente partidário e as sobras. Isso elevaria, segundo nossos cálculos, em 25% a atual representação feminina nas legislaturas. Depois de analisar os projetos de lei sobre direitos da mulher apresentados no Parlamento, penso que é hora de ser mais ousada, e propor de fato a paridade.
Assim, a sugestão é que as vagas obtidas pelos partidos e coligações sejam ocupadas por homens e mulheres em iguais proporções, sem alterar o sistema de lista não hierarquizada, permitindo ao eleitorado, e não aos partidos, que decida quem serão as mulheres eleitas. Haveria duas listas de eleitos e, muito provavelmente, mulheres com menos votos ocupariam cadeiras, com o afastamento de candidatos com mais votos (como, aliás, ocorre desde 1955 com o sistema proporcional). Para que a escolha eleitoral seja autêntica, torna-se absolutamente indispensável que a cidadania compreenda a lógica das cotas e sua aplicação.
Ainda, como toda ação afirmativa, a ideia é que essa política de cotas de representação se aplique em três legislaturas (municipais, estaduais e federais). Neste período de mais de quatorze anos, as mulheres teriam condições igualitárias para concorrerem aos cargos eletivos, com espaço nos partidos e na propaganda política. O princípio da igualdade de condições seria garantido por uma alteração no Código Eleitoral quanto à distribuição das vagas e a ocupação das cadeiras e haveria um espaço para o desenvolvimento de lideranças femininas sem os atuais obstáculos. Depois deste período, acredita-se, não seria mais necessária a ação afirmativa, pois na ausência de desigualdade fática não se exigiria uma desigualdade jurídica. 
O que se deseja é que o dia da mulher seja incompreensível para as próximas gerações e que Simone de Beauvoir e seu “O Segundo Sexo” se tornem anacrônicos. A crença aqui compartilhada é que mais mulheres no Parlamento representarão mais direitos para as mulheres, igual remuneração, igual dignidade. É uma crença na política, na mulher e no Direito. Espero que o tempo não me torne cética.

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O acesso das mulheres à representação política

Menos flores, mais direitos