Eneida Desiree Salgado

E cá estamos outra vez para falar de Direito Eleitoral. Sim, esse ramo do Direito que serve para concretizar o princípio democrático e o princípio republicano, garantindo que o exercício do poder político se legitime pelo consentimento do povo (ou do corpo eleitoral ou ainda de sua maioria, vá lá) em um sistema que promova a competição entre as alternativas eleitorais em condições de igualdade. Quase realismo fantástico, segundo a política e o Direito brasileiros hoje.
Mas sejamos justas: não é de hoje. O Direito Eleitoral nunca conseguiu dar conta das fraudes inventadas pelo espírito criativo dos brasileiros. Era só haver uma modificação na legislação que já se encontrava outra maneira de burlar o sistema de disputa eleitoral. Então, no fim da Primeira República, criaram um aparato de governança eleitoral com tal peculiar composição e concentração de poderes que nenhum outro país cogita copiar, mas cuja crítica é quase uma heresia, mesmo que casse mais mandatos do que o regime militar e dê decisões sem coerência nem consistência. A ditadura militar preferiu outro tipo de artimanha, para conviver com eleições periódicas sem que isso ameaçasse sua hegemonia: fraudes normativas, com a alteração das regras do jogo para evitar que a oposição ganhasse espaço.
Neste momento de ruptura democrática, ou, mais cuidadosamente, de relativização de comandos constitucionais em nome de uma alegada governabilidade, as discussões sobre as regras eleitorais parece perder um pouco de sentido. Ainda assim, temos uma democracia formal, baseada em princípios constitucionais (olha o apego à Constituição aí, tão démodé) e que, portanto, deveria garantir uma competição eleitoral com igualdade de oportunidades. Então vamos lá.
Estamos em um período de campanha eleitoral. Não parece, mas estamos. Há dez dias, em uma sexta-feira ao final da tarde, andei com um grupo de alunos da disciplina de Direito Eleitoral pelas seis quadras do calçadão da Rua XV que separam a Praça Santos Andrade da Praça Osório, um dos locais mais movimentados da cidade de Curitiba. Nos 850 metros de ida e mais 850 metros de volta encontramos uma mesa com propaganda eleitoral, uma barraca de um partido político e uma pessoa entregando santinhos. Só. Contando com as que achamos pelo chão, chegamos a dez propagandas eleitorais, em uma cidade de quase um milhão e trezentos mil eleitores, 9 candidatos à prefeitura e 1111 candidatos à Câmara de Vereadores.
A campanha está sob sigilo. O mesmo acontece com o horário eleitoral gratuito, absolutamente diminuído, além de distribuído de maneira cada vez mais iníqua. Tem candidato a prefeito com nove segundos na propaganda de bloco. Nove. Mais pra Usain Bolt que pra Enéas Carneiro. Outra tem onze; outro, dezessete. Sem tempo na televisão, sem direito a participar dos debates, sem dinheiro pra campanha, como apresentar novas propostas? As constantes reformas na legislação diminuíram o período e os meios de propaganda e acabaram por dar uma grande vantagem para quem já é político, tem parente na política ou é celebridade. Nada mais incoerente para um sistema que, alegadamente, busca ser democrático e igualitário. O legislador a cada reforma eleitoral nos brinda com um novo 7 x 1.
Mas não é só o Poder Legislativo que mete a colher para entornar o caldo das regras eleitorais. O Poder Judiciário, mesmo carente de legitimidade democrática, gosta demais de redesenhar o sistema. E o faz sem muita preocupação com as decisões judiciais anteriores, com a segurança jurídica e com a previsibilidade. É sempre (ou quase sempre, para aumentar o suspense) uma surpresa. Foi assim com a Consulta nº1398 inventando a fidelidade partidária e em tantas outras. Pode ser assim na análise de prestação de contas da campanha presidencial de 2014. Mas também pode não ser.
O Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, não costuma enfrentar suas decisões anteriores ao encarar o sistema político-eleitoral. No caso da ação direta de inconstitucionalidade quanto à doação de pessoas jurídicas para campanhas e partidos, reconheceu a inexistência de modelo de financiamento da política na Constituição mas julgou inconstitucional o previsto pelo legislador, em face de ofensa ao princípio da igualdade. Já no caso das ações de inconstitucionalidade sobre a regulamentação da propaganda eleitoral, que praticamente aniquila a vida dos partidos pequenos como apontado por Daniel Falcão, reconheceu a inexistência de modelo de campanha eleitoral na Constituição mas não a inconstitucionalidade do previsto pelo legislador, mesmo em face do princípio da igualdade. Todo dia um Gore vs Bush.
Mas ainda temos que nos preocupar com as questões constitucionais. Não sabemos bem porquê, pois a Constituição se mostra cada vez mais irrelevante. Ainda assim, temos ótimos debates sobre a decisão do Senado que decide pela perda de mandato da Presidenta no processo de impeachment sem lhe sancionar com a inabilitação para o exercício de função pública por oito anos. Pode isso, Arnaldo? E isso afeta seus direitos políticos? Não se sabe, até porque vai depender da leitura – sempre surpreendente – que o STF fará de seu próprio papel e da Constituição. Bradar que a decisão do Senado rasga a Constituição me parece, no entanto, preocupar-se se as flores do jardim foram pisadas pelo latrocida que invadiu a casa da vítima.
Finalmente há o debate sobre a antecipação da eleição para a Presidência da República, para que o povo decida quem deve governar o país. Fernando Neisser diz que não, que é constitucionalmente inviável. Concordo com ele na conclusão e no fundamento. Mas não sei se ainda é um argumento válido. Com a flexibilização do Estado de Direito e a suspensão das regras constitucionais, tudo passa a ser possível. A política nunca foi totalmente domesticada pelo Direito, mas agora acabou o constrangimento, nem se disfarça. Melhor trocar a Constituição e a teoria constitucional pelas runas e as cartas. Teremos mais chance de acertarmos os rumos do país. Ou não.

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Mais um 7 x 1, ou o Gore vs Bush da vez

Campanha eleitoral sob sigilo