A fidelidade partidária foi sempre tema de intensos debates na seara política brasileira. Mesmo antes da vigência da Constituição de 1988, o assunto foi discutido com paixão e vigor, inclusive durante o Regime Militar, no qual o sistema partidário brasileiro, de modo forçado, conviveu com o bipartidarismo na maior parte do tempo. 
Exatos dois meses após o fim do Regime Militar houve a promulgação da Emenda Constitucional n. 25 (de 15/05/1985), na qual previu-se, entre outras questões, a extinção da obrigatoriedade da fidelidade partidária. Pouco depois, a Constituição de 1988 tratou do tema de forma bastante diferente daquela trazida no texto constitucional advindo do Regime Militar: diante da autonomia dos partidos políticos, cabia a eles o estabelecimento, em seus respectivos estatutos, de normas que previssem a fidelidade e a disciplina partidária (art. 17, § 1º, CRFB/1988). 
Essa liberdade concedida aos partidos, na prática, tornou-se uma espécie de “porteira aberta” para que políticos pudessem mudar de agremiação quando bem entendessem. Esta postura foi bastante criticada pela população em geral, que cobrava coerência aos trânsfugas. Afinal, é fato que a possibilidade de mudança de partido sem qualquer limite pode afetar o resultado das eleições. Este quadro normativo afetou nitidamente os partidos de oposição, pois poucos parlamentares dispuseram-se a fazer o papel escolhido por seus partidos de origem. 
Esta realidade apresenta diversas explicações. A primeira delas tem como base a origem do atual sistema partidário brasileiro. Nosso sistema partidário adveio do bipartidarismo forçado da Ditadura Militar, havendo poucos laços entre as atuais agremiações e aquelas do regime democrático brasileiro vigente entre 1946 e 1964. As organizações partidárias existentes durante a maior parte do regime (Arena – governista; MDB – oposição) nasceram nos corredores do Congresso Nacional, e não no seio do povo. Além disso, é notória a quase inexistência de identificação entre os partidos e o eleitorado, o que acarreta um maior afastamento nesta relação. 
Por fim, percebe-se que na década de 1980, principalmente a partir de 1985, que as regras para criação de partidos políticos foram bastante afrouxadas. No mais, a legislação trouxe novamente a possibilidade de coligações partidárias nas eleições proporcionais, fato que vitaminou as possibilidades de eleger ao menos um deputado federal para vários partidos considerados pela doutrina como nanicos. Na Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988), como já afirmado anteriormente, decidiu-se por delegar aos partidos políticos, internamente, o estabelecimento de regras referentes à disciplina e à fidelidade partidária. 
Tal disposição constitucional foi alvo de intensas críticas, pois o único limite à mudança de partidos para os detentores de mandato eletivo era, na verdade, a obrigação legal de que os candidatos deveriam estar filiados a um partido político há pelo menos um ano antes da eleição. Dessa forma, fora desse período, não havia qualquer restrição para atos de infidelidade partidária. 
Esta realidade foi alterada a partir de 2007. Apesar de ser alvo de inúmeros debates acadêmicos ou mesmo legislativos, foi o Poder Judiciário, mais especificamente o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o artífice da mudança. Por meio de uma Consulta, instrumento sui generis previsto no Código Eleitoral, o TSE decidiu que o político eleito pelo sistema proporcional (deputado federal, deputado estadual, deputado distrital e vereador) que mudasse de partido durante mandato eletivo sem apresentar justificativa poderia perder seu mandato. No mesmo sentido e respondendo outra Consulta, o TSE também afirmou que haveria a possibilidade de perda de mandato para os detentores de mandado eletivo do sistema majoritário (presidente da República, governador, senador e prefeito) que mudasse de partido sem justa causa. 
Estas decisões causaram rebuliço no panorama político brasileiro. Os partidos de oposição ao governo federal pediram às Mesas do Congresso Nacional a posse dos suplentes no lugar daqueles congressistas que foram para agremiações ligadas ao governo. Diante da recusa, impetraram mandados de segurança no Supremo Tribunal Federal (STF) requerendo a posse dos suplentes. 
O STF decidiu, por maioria, entendeu ser correta a resposta do TSE às Consultas realizadas sobre o tema, sob a argumentação de que a principal característica do sistema proporcional ser a “preeminência radical dos partidos políticos sobre a pessoa dos candidatos”. Na mesma decisão, restou determinado que o TSE, por meio de Resolução, tratasse do procedimento para a possível perda de mandato por infidelidade partidária. 
Poucos dias após a decisão do STF, o TSE exarou a fatídica Resolução n. 22.610, que continha dois procedimentos: (i) procedimento administrativo de decretação da perda de cargo eletivo por desfiliação partidária sem justa causa; e (ii) procedimento administrativo de justificação de abandono de sigla. A mesma Resolução previu as quatro hipóteses de justa causa para aqueles que migraram de partido, quais sejam: (i) incorporação ou fusão de partido; (ii) criação de um novo partido político; (iii) mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário; (iv) grave discriminação pessoal. 
A Resolução n. 22.610/2007, no entanto, foi alvo do Partido Social Cristão (PSC) por meio de uma ação direta de inconstitucionalidade. Por maioria, o STF entendeu ser constitucional referida norma, sendo que o Min. Relator Joaquim Barbosa ressaltou a excepcionalidade da questão, diante da “carência de meio para garantia de um direito constitucional, marcado pela transitoriedade”. 
O novo quadro da fidelidade partidária fez com que as mudanças indiscriminadas de legenda diminuíssem sensivelmente. No entanto, criou outro problema: o inchamento do quadro partidário brasileiro. Enquanto na primeira década do século XXI apenas dois partidos foram criados no Brasil (PSOL e PRB), desde esta série de decisões do TSE e do STF oito novos partidos conseguiram seus registros no TSE (PSD, PPL, PEN, PROS, Solidariedade, Partido Novo, Rede Sustentabilidade e PMB), dando ao eleitor a opção de 35 (trinta e cinco) partidos nas eleições de 2016. 
Este crescimento se deve principalmente ao fato de a Resolução n. 22.610/2007 prever a possibilidade de a participação na criação de um novo partido político ser considerada justa causa para uma mudança de partido sem perda de mandato. Além disso, o STF entendeu em junho de 2015, numa nova ação direta de inconstitucionalidade, que “a perda do mandato em razão da mudança de partido não se aplica aos candidatos eleitos pelo sistema majoritário, sob pena de violação da soberania popular e das escolhas feitas pelo eleitor”. 
Apesar de o novo regime da fidelidade partidária ter apresentado sinais de frouxidão, houve mudanças na legislação eleitoral realizadas em 2015, no bojo da minirreforma política, que vieram no sentido de dificultar a criação de novos partidos. Destaca-se a Lei n. 13.107/2015, que exige, para a criação de legendas, o apoio de pessoas não filiadas a um partido, bem como determina o prazo de cinco anos para que uma agremiação partidária possa fundir-se ou ser incorporada por outra legenda. 
Esse novo e aparente enrijecimento durou pouco tempo: o Congresso Nacional, de modo aparentemente incoerente, criou a notória “janela” da infidelidade partidária. Em 18 de fevereiro deste ano foi promulgada a Emenda Constitucional n. 91, que prevê, em seu art. 1º, a possibilidade do detentor de mandato eletivo desfiliar-se do partido pelo qual foi eleito sem perder o mandato, se a mudança ocorrer os trinta dias seguintes à promulgação desta Emenda. 
É forçoso ressaltar que se trata de uma Emenda absolutamente sui generis, por várias razões. A primeira delas reside no fato de ser uma norma constitucional “solta”, já que não houve qualquer acréscimo, retirada ou alteração do texto constitucional, e nem mesmo altera ou modifica qualquer dispositivo do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). 
Ademais, não há qualquer motivo aparente do ponto de vista social, econômico ou jurídico que justifique a criação dessa “janela”. Politicamente, a Emenda n. 91 pode ser justificada apenas pela proximidade das eleições de 2016, somada ao fato de a legislação eleitoral prever desde setembro de 2015 que a regra geral de tempo mínimo de filiação para candidaturas ser agora de seis meses, e não mais de um ano. Ademais, nada impede que o Congresso Nacional, ao seu bel prazer, redija, aprove e promulgue emendas com o mesmo teor a cada dois anos, fato que consistiria na negação ao novo regime de fidelidade partidária construídos desde as decisões do TSE e do STF em 2007 e 2008. 
Na verdade, fica nítido que o Congresso Nacional adotou um novo caminho para desviar de decisões dos referidos tribunais quando estas não as convêm. O TSE, em 2002, criou a verticalização das coligações partidárias, em decisão posteriormente referendada pelo STF. Somente a promulgação de uma Emenda Constitucional (n. 52, de 08 de março de 2006) retirou a verticalização do ordenamento jurídico brasileiro. Na fidelidade partidária, o Congresso sentiu-se de mãos atadas, diante do aprovação popular e de boa parte da classe política às respostas das Consultas e ao teor da Resolução n. 22.610/2007. 
Diante disso, o Poder Legislativo decidiu por caminhos mais curtos, com aparência de transitoriedade, para flagrantemente escapar da interpretação que o TSE e o STF deram a dispositivos da Constituição e do Código Eleitoral quanto à fidelidade partidária: no sistema proporcional, os candidatos dependem por várias matizes de seus partidos para serem eleitos e, por isso, o mandato pertence à legenda, e não ao candidato.

Plenário do Senado

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A janela indiscreta para a infidelidade partidária

A Emenda Constitucional 91