
Recentemente surgiram múltiplos relatos dramáticos na internet e em programas de televisão de pessoas que, ao se dirigir ao posto de saúde, não conseguiram se vacinar por não possuir um simples comprovante de residência. Uma breve pesquisa apontou que 17 das 26 capitais brasileiras, ao lado de muitos municípios populosos do interior do país, situados em regiões metropolitanas, fazem a referida exigência. Esse breve texto tem o objetivo defender a inconstitucionalidade da imposição de referida exigência.
Os atos administrativos que determinam a comprovação da residência no âmbito territorial do ente municipal como condição para vacinação contra a COVID-19 desrespeitam, de forma direta e inequívoca, um conjunto significativo de preceitos constitucionais, nos quais se incluem: (i) o direito fundamental à saúde, previsto nos arts. 6º e 196, (ii) o direito fundamental à isonomia e à não-discriminação, consagrado nos arts. 3º, IV, e 5º, caput; (iii) a competência suplementar dos Municípios em matéria de direito sanitário, prevista no art. 24, XII, e (iv) o dever de não criar privilégios entre os brasileiros, imposto aos entes federativos pelo 19, III.
Em primeiro lugar, não há dúvida relevante de que a Constituição Federal reconheceu um direito subjetivo de natureza pública ao acesso às prestações materiais necessárias à manutenção da saúde, atribuindo ao Estado (em sentido genérico) o dever de fornecer tais prestações. Após longa discussão, o Supremo Tribunal Federal (STF) assentou que esse direito pode ser exercido em face de quaisquer dos entes federativos, que respondem de modo solidário. Na visão jurisprudencial, as divisões administrativas e políticas não podem servir de óbice à efetividade do direito fundamental, mas apenas ostentam caráter organizacional. A responsabilidade conjunta dos entes federados pelo fornecimento de tais prestações materiais já foi reconhecida em diversos precedentes do Eg. STF (e também de outros tribunais), inclusive em sede de repercussão geral. Essa é a orientação que se pode extrair, por exemplo, do RE nº 855.178-ED, rel. Min. Edson Fachin.
Como se pode ver, para o exercício do direito fundamental à saúde, em seu perfil constitucional e também legal, é absolutamente irrelevante o local de residência ou domicílio do indivíduo, bastante que se comprove, para tanto, a necessidade de acesso. Nesse sentido, aliás, a própria legislação infraconstitucional afirma a natureza universal, integral e igualitária no acesso ao Sistema Único de Saúde (art. 7º, I, II e IV, da Lei nº 8.080/90). E nem poderia ser diferente, já que as necessidades médicas podem surgir em qualquer ponto do território nacional. De outro lado, também é irrelevante a identidade do prestador: com o perdão pelo truísmo, o sistema é único, com financiamento triplo e articulado por meio de órgãos de deliberação conjunta nos três níveis federativos (como as comissões intergestores).
Ademais, não há motivação específica capaz de justificar a distinção de acesso aos serviços preventivos de saúde por razões territoriais. Com efeito, não se trata de uma distinção/exigência que esteja presente no Plano Nacional de Imunização.
Além disso, os municípios brasileiros não impõem tal condição para a aplicação de outras vacinas, sendo circunstância restrita à vacinação contra a COVID-19. E, mesmo nesse caso específico, o fato é que numerosos municípios tampouco exigem a comprovação de residência para a vacinação contra a COVID-19 (casos do Rio de Janeiro e Distrito Federal, por exemplo), sendo, na realidade, exigência que algumas capitais e outros municípios criaram por conta própria, sem qualquer fundamento técnico ou legal, mas apenas por vontade política.
Observe-se, ainda, que sequer seria possível afirmar que a exigência de vinculação territorial seja uma medida necessária para fins de planejamento público. A uma porque a aquisição das vacinas para a COVID-19 é centralizada pelo Ministério da Saúde, à exceção do Estado de São Paulo. A duas porque o próprio cadastro de controle de aplicação das vacinas é de caráter nacional (ConectaSUS), de modo que não há razão para o controle estritamente territorial da dispensação. A três, os cronogramas de vacinação têm sido objeto de constantes adaptações, sendo notório que consistem em uma mera previsão. Finalmente, as verbas empregadas para o programa também são de caráter federal na essência, ou mesmo estadual, de modo que nada justifica a indevida restrição no acesso às vacinas.
Em segundo lugar, além de incorrer em desrespeito ao direito fundamental à saúde, também há violação ao princípio da isonomia e a vedação constitucional à discriminação odiosa. De modo bastante evidente, a exigência de comprovante de residência como condição para a vacinação afeta as pessoas que simplesmente não dispõem de residência fixa. Segundo dados recentes do IPEA, estimava-se que, em março de 2020, 222 mil pessoas moravam nas ruas em todo o Brasil (sem tetos)[2]. O crescimento, contudo, tem sido constante, de modo que é bem provável que esse número seja muito maior em setembro de 2021, até mesmo em decorrência dos efeitos econômicos da pandemia. Um giro pelas principais cidades do país revela que os centros urbanos se tornaram verdadeiros bairros residenciais sem moradias.
E mais: há as pessoas que moram em condições precárias e informais (denominadas aglomerados subnormais pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)[3], e que exatamente por isso não possuem meios idôneos de comprovar a própria residência. Segundo o Censo 2010 do IBGE, o Brasil tinha cerca de 11,4 milhões de pessoas morando em favelas, a maior parte delas nas capitais. Belém era a capital brasileira com a maior proporção de pessoas residindo em ocupações desordenadas: 54,5%, ou mais da metade da população. Salvador (33,1%), São Luís (23,0%) Recife (22,9%) e o Rio de Janeiro (22,2%) vinham a seguir. Como se pode ver, das cinco capitais mais desordenadas do país, quatro exigem o comprovante de residência para que seja possível a vacinação.
Vale pontuar que essas pessoas – que compõem um grupo populacional relevante – não se enquadram no conceito de “situação de rua” e, ao mesmo tempo, não conseguem preencher os requisitos impostos pelos Municípios para que possam se vacinar. Às vezes, elas são recusadas porque o comprovante de residência não está impresso, ou porque não se trata do mês corrente, ou porque está em nome de terceiros. A liberdade atribuída para que as burocracias municipais definam o que consideram “comprovação idônea de residência”, no contexto da COVID-19, tem o condão de criar uma barreira relevante para o acesso à vacinação.
Finalmente, por características particulares do processo de urbanização brasileiro, as metrópoles brasileiras se organizam em torno de um Município polo, que ocupa posição central, normalmente mais rico e estruturado, ao passo que há diversos Municípios satélites no entorno, altamente adensados e estruturalmente deficientes. Por conta dessa configuração, forma-se um movimento diário de migração pendular: uma massa de pessoas se desloca ao Município central pela manhã e retorna à noite, para dormir. O fenômeno é fartamente documentado na literatura especializada[4].
Em tal cenário, os trabalhadores sujeitos à migração pendular não conseguem comparecer aos postos de trabalho e saúde simultaneamente, já que estes se situam em municípios diversos. Os horários da vacinação coincidem com as horas de trabalho, de modo que as pessoas acabam impedidas de se vacinar. Tudo isso num contexto geral de janelas curtas de vacinação (um dia por idade), disponibilidade escassa do produto, e presunção geral de que os ausentes não querem tomar a vacina.
Mesmo que se leve a sério o argumento de que a comprovação de residência é necessária para evitar que alguém se antecipe à data própria da vacinação, também aqui a política afeta desproporcionalmente as pessoas mais pobres. Isso porque aqueles que dispõem de recursos econômicos poderão se deslocar para cidades que não exigem o respectivo comprovante de residência, e lá se submeter à vacinação. Na realidade, os mais ricos podem até mesmo ir a outro país para conseguir se antecipar ao calendário, como muitos já fizeram.
Portanto, não restam dúvidas de que a política pública consistente na exigência de comprovante de residência como condição para a vacinação contra a COVID-19, além de completamente aleatória, viola o princípio da isonomia, pois discrimina desproporcionalmente as pessoas em posição de maior vulnerabilidade social.
Por fim, sob o ponto de vista federativo, impor um novo requisito para administração da vacina não é exercer competência municipal, mas sim invadir as atribuições constitucionais e legais da União, a quem cabe estabelecer normas gerais sobre saúde. E não há qualquer regra federal sobre vinculação territorial para acesso à vacinação. A bem da verdade, não só não há qualquer particularidade local que justifique a imposição do requisito discutido, como este ainda esbarra no art. 19, III, da Constituição Federal de 1988. É evidente que os entes locais não podem se valer de sua competência para disciplinar as suas especificidades para estabelecer uma preferência na vacinação para seus próprios habitantes. Trata-se de conduta que, a par de exorbitar da lógica de suplementação legislativa, ainda viola a regra expressa do art. 19, III, da Constituição.
[2] Marco Natalino, “Estimativa da população em situação de rua no Brasil (setembro de 2012 a março de 2020)”. Disponível em: https://bit.ly/3iqSCgL, acesso em 5.ago.2021.
[3] Agência IBGE, “Dia Nacional da Habitação: Brasil tem 11,4 milhões de pessoas vivendo em favelas”. Disponível em: https://bit.ly/3Ad8IR0, acesso em 5.ago.2021.
[4] A propósito, v. Verônica de Castro Lameira, “Mobilidade urbana na Grande São Paulo: deslocamento pendular para trabalho, tipologia socioeconômica, migração e diferenciais de rendimento”, Tese de doutorado apresentada à UFMG, 2018, p. 36.