Lucas Henrici Marques de Lima

O ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal (STF), advertiu, por diversas vezes, que a modulação de efeitos em matéria tributária enfraqueceria a Constituição. Contudo, isso não impediu que algumas manipulações temporais acontecessem ao longo dos anos de forma pouco criteriosa. Com base nesses casos, os argumentos financeiros consequencialistas e as mudanças de entendimento consolidado podem ser apontados como bons indicativos da discussão.
Ocorre que o ministro parece estar certo quanto aos riscos da modulação dos efeitos pelo STF. Um excelente exemplo é o tema do DIFAL sobre o comércio eletrônico, em que as manifestações do tribunal levam à conclusão sobre a existência do paradoxal sistema inconstitucional tributário. Como será visto, o que se percebe desse exemplo é que a Constituição é o que menos importa.
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E essa conclusão decorre de uma leitura conjunta sobre normas e decisões acerca da matéria, que se inicia pelo Protocolo 21/2011 e tem seu capítulo atual no julgamento conjunto da ADI 5.469 e do RE 1.287.019, o qual conta com dois votos proferidos e com o pedido de vistas do ministro Nunes Marques. Se o julgamento se direcionar pela conclusão proposta pelo ministro Dias Toffoli, o STF terá afirmado, em diversos momentos consecutivos sobre esse mesmo tema, que as normas produzem efeitos ainda que sejam inconstitucionais.
Desse modo, o enfoque aqui proposto não é o de discutir se existe inconstitucionalidade no caso, o que parece ser entendimento pacífico do STF, mas repercutir a pouco criteriosa manipulação temporal de efeitos que fomenta o desrespeito à Constituição e esvazia o princípio da legalidade em seu grau mais básico: o da lei constitucional.
O PROTOCOLO 21/2011, SUA INCONSTITUCIONALIDADE E MODULAÇÃO
Em um primeiro momento, com base no art. 155, §2º, da Constituição anterior à EC 87/2015, entendia-se que as operações interestaduais direcionadas a consumidores finais contribuintes do ICMS se sujeitavam a uma dupla incidência: do imposto calculado pela alíquota interestadual em favor do Estado do vendedor e do imposto calculado pelo diferencial de alíquota em favor do Estado do destinatário. Por outro lado, quando as operações fossem direcionadas a consumidores finais não contribuintes do ICMS, a cobrança seria reservada ao Estado do remetente.
<blockquote class="jota-article__eye">Com o surgimento e crescimento do comércio eletrônico, notou-se um problema nessa sistemática, que levaria a um favorecimento desmedido para os Estados em que situados os maiores vendedores de mercadoria, em especial o estado de São Paulo.</blockquote>
Por conta disso, em um segundo momento, alguns estados firmaram o Protocolo ICMS 21/2011 para disciplinar a “exigência do ICMS nas operações interestaduais que destinem mercadoria ou bem a consumidor final, cuja aquisição ocorrer de forma não presencial no estabelecimento remetente”. Alegava-se uma necessidade de melhor partilha do ICMS sobre essa parcela do mercado<a href="#_edn1" name="_ednref1">[i]</a>.
Contra esse protocolo foi impetrada a ADI 4.628, bem como, em sua esteira, foi reconhecida a repercussão geral da matéria por meio do RE 680.089. Não causa surpresa que tenha sido declarada a inconstitucionalidade da norma no julgamento conjunto desses casos. A surpresa se relaciona à modulação de efeitos dessa decisão, que surgiu desacompanhada de fundamentos sólidos, apenas sendo afirmado que “a partir da liminar, a declaração de inconstitucionalidade tem sua higidez”, “porque, senão, o prejuízo é maior ainda para esses Estados”.
Observem: o prejuízo seria o de ver afastada a incidência de tributo inconstitucional por 3 anos (tempo muito curto de decisão segundo a média do STF) apenas por alguns Estados e em fomento à guerra fiscal.
Mas não é só. O Ministro Marco Aurélio mencionou em seu voto contrário à modulação que o STF teria conferido efeitos retrospectivos às liminares nas ADIs 4.705 (contra a Lei nº 9.582/2011 do Estado da Paraíba) e 4.565 (contra a lei a Lei nº 6.041/2010 do Estado do Piauí) que tratavam do mesmo tema. Quando do julgamento definitivo na ADI 4.705, em 2019, o ministro Roberto Barroso afirmou que o efeito ex-tunc da liminar afastava a necessidade/possibilidade de modulação dos efeitos no caso.
Neste último julgamento, ainda foram citadas outras duas ADIs: 4.596 e 4.712 (contra normas do Estado do Ceará), de relatoria do ministro Dias Toffoli. Nelas, acrescentou-se que a EC 87/2015 não teria convalidado a normatização anterior à sua vigência. Contudo, foi determinada a modulação para o mês seguinte ao do julgamento, ocorrido em 2018, por não ter sido deferida liminar nessas Ações Diretas.
O que se percebe, portanto, é que existiram alguns sistemas tributários inconstitucionais diferentes sobre a matéria, pois a “norma geral” do Protocolo valeu até fevereiro de 2014 por conta da liminar na ADI 4.628, as normas da Paraíba e do Piauí não valeram por conta da eficácia ex-tunc das liminares, e as normas do Ceará valeram até 2018 por não ter sido deferida liminar.
A EC 87/2015, O CONVÊNIO 93/2015 E A MODULAÇÃO PROPOSTA
O próximo passo do tema se deu pelo caminho correto: emendou-se à Constituição. Foi, então, alterado o art. 155 da Constituição, afastando-se o requisito relacionado à condição de contribuinte do ICMS para atrair a aplicação do DIFAL.
No entanto, não houve uma regulamentação da matéria por meio de Lei Complementar nos termos do art. 146 da Constituição. O que existiu, em seu lugar, foi nova manifestação no âmbito do CONFAZ por meio do Convênio 93/2015.
Por conta da ausência de Lei Complementar no caso, há quem entenda que a inconstitucionalidade na hipótese está absolutamente anunciada<a href="#_edn2" name="_ednref2">[ii]</a> e, até o momento do fechamento do presente texto, os dois votos existentes na ADI 5.469 e no RE 1.287.019 (Marco Aurélio e Dias Toffoli) seguiam essa mesma direção.
Mas o grande destaque é, de novo, a modulação de efeitos. Nesse caso, o Ministro Dias Toffoli entende que os efeitos da inconstitucionalidade somente deveriam ocorrer a partir de 2021, salvo para micro e pequenas empresas optantes do Simples Nacional, cujos efeitos teriam início em 2016 por conta da liminar na ADI 5464<a href="#_edn3" name="_ednref3">[iii]</a>.
É verdade que, com base na recente jurisprudência do STF, não guarda grandes surpresas a validação dos efeitos de normas que violem o art. 146 da Constituição e interrompam o fluxo de positivação constitucionalmente previsto. No RE 1.221.330, por exemplo, validou-se a cobrança, determinada por Lei estadual anterior à Lei Complementar 114/2002, sobre operações de importação efetuadas por pessoa, física ou jurídica, que não se dedica habitualmente ao comércio ou à prestação de serviço.
A diferença, que torna o presente caso ainda mais absurdo, é que a modulação de efeitos foi proposta ainda que não tenha surgido a Lei Complementar prevista pela Constituição, enquanto no RE 1.221.330, a cobrança tenha sido restrita ao momento posterior à edição da Lei Complementar, superando-se apenas a interrupção do fluxo de positivação, mas não a necessidade de Lei Complementar para a cobrança do tributo.
Por fim, também não é novidade que os Estados estejam apresentado o argumento financeiro consequencialista pela modulação de efeitos, como já foi anunciado pelo Comsefaz, reportando prejuízo na casa dos 9 bilhões de reais<a href="#_edn4" name="_ednref4">[iv]</a>.
Percebe-se, pelo exposto, que a Constituição foi posta em segundo plano nas diversas ocasiões em que o STF tratou desse mesmo assunto. Além disso, ainda que tenha sido observado um mesmo critério (concessão da liminar) para a modulação nos casos já encerrados, o fundamento desse critério não chegou a ser apresentado, sendo certo que sua aplicação gerou uma situação caótica de profunda desigualdade entre os estados e de insegurança para os contribuintes.
Com isso, fica difícil dizer qual foi o direito vigente sobre esse tema em cada estado, bem como na situação de cada tipo de sujeito passivo, visto que as manipulações temporais foram diferentes. Também parece que os 9 bilhões de prejuízo significam pouco perto do preço pago pela Constituição. Uma alíquota majorada, respeitando os parâmetros constitucionais para sua instituição, cobriria facilmente esse prejuízo.
Percebe-se, ainda, que o STF caiu em uma armadilha de suas próprias decisões, porque a Constituição sairá enfraquecida, modulando-se ou não os efeitos de eventual inconstitucionalidade declarada na ADI 5.469 e no RE 1.287.019. Isso porque se o Protocolo do CONFAZ criado no interesse de alguns Estados pôde produzir efeitos, sem Lei Complementar ou norma constitucional, como não produzirá efeitos a sistemática prevista em norma constitucional introduzida por Emenda? A constituição vale menos que o entendimento do CONFAZ?
Desse modo, a solução do problema não parece se relacionar com esse caso concreto, mas, sim, com a postura institucional do STF de se conter no assunto da modulação de efeitos, reservando sua aplicação, tanto quanto possível, apenas para quando ocorrerem mudanças de entendimento consolidado.
No caso atual, respeitado esse critério desde o início, não teríamos modulação no primeiro momento e não precisaríamos de modulação no segundo, sendo possível valorizar a Constituição.
Ainda no caso atual, com o primeiro erro já cometido, parece restar apenas a alternativa de errar uma última vez, mantendo o primeiro entendimento firmado, mas sinalizando-se que o STF não errará de novo nessa matéria. Ou seja, marcando a posição de que: ou se respeita a constituição na instituição de tributos ou eles não serão cobrados. De certa maneira, seria dizer, com eficácia ex-nunc, que é inconstitucional violar a constituição.
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O episódio 46 do podcast Sem Precedentes discute se o contrato de trabalho intermitente é ou não constitucional. Ouça:
https://youtu.be/o8E3sXtx7j0
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<a href="#_ednref1" name="_edn1">[i]</a> Questionando o argumento sobre a melhor partilha do ICMS, veja-se: PUCCIONI, Felipe Galvão. A injustificável mudança do ICMS sobre o e-commerce. Disponível em: &lt;<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-injustificavel-mudanca-do-icms-sobre-o-e-commerce-19122018">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-injustificavel-mudanca-do-icms-sobre-o-e-commerce-19122018</a>&gt; Acesso em 20.11.2020 às 13:09.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[ii]</a> Sobre os indicativos da inconstitucionalidade, veja-se: BORGES, Eduardo; HORBACH, Carlos Bastide; GOLDSCHMIDT, Fabio Brun. O DIFAL no STF: crônica de uma inconstitucionalidade anunciada. Disponível em: &lt;<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/difal-no-stf-cronica-de-uma-inconstitucionalidade-anunciada-28102020">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/difal-no-stf-cronica-de-uma-inconstitucionalidade-anunciada-28102020</a>&gt; Acesso em 20.11.2020 às 13:09.
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[iii]</a> Sobre a situação do julgamento até o fechamento do presente texto, veja-se: MAIA, Flavia; POMPEU, Ana. STF tem dois votos contra convênio que regulamenta diferencial de alíquota de ICMS. Disponível em: &lt;<a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/stf-tem-dois-votos-contra-convenio-que-regulamenta-diferencial-de-aliquota-de-icms-11112020">https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/stf-tem-dois-votos-contra-convenio-que-regulamenta-diferencial-de-aliquota-de-icms-11112020</a>&gt; Acesso em 20.11.2020 às 13:17.
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[iv]</a> Sobre a notícia do argumento financeiro consequencialista, veja-se: MAIA, Flavia. Comsefaz estima perda de R$ 9 bi se STF barrar diferença de alíquota de ICMS. Disponível em: &lt;<a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/comsefaz-estima-perda-de-r-9-bi-se-stf-barrar-diferenca-de-aliquota-de-icms-11112020">https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/comsefaz-estima-perda-de-r-9-bi-se-stf-barrar-diferenca-de-aliquota-de-icms-11112020</a>&gt; Acesso em 20.11.2020 às 13:15.

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