Gabriel de Sá Balbi Cerviño

Nas primeiras duas décadas do século XXI, desapareceram das ruas algumas espécies de estabelecimentos físicos, como as locadoras de vídeo, e surgiram cada vez mais opções de compras pela internet. Talvez o maior avanço tecnológico dos últimos tempos seja a digitalização em massa de serviços que antes poderiam ser feitos somente de forma física, a tal ponto que por vezes a legislação de diversos países não é capaz de acompanhá-la. A este descompasso entre Lei e realidade dá-se o nome de “pacing problem” que dificulta as tentativas de regularizar a economia digital<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Em 2020, a pandemia de coronavírus acelerou o processo de digitalização de serviços, ao obrigar o governo a transformar em digitais serviços essenciais à população, como a realização de consultas médicas<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Com a previsão de grave recessão para este ano, com perda de empregos e redução do número de transações comerciais tributáveis, cresce o clamor jurídico pela realização de uma reforma capaz de adaptar o Sistema Tributário brasileiro a esta nova realidade, mitigando as perdas econômicas projetadas.
Apesar das discussões, ainda não há no Brasil um imposto especificamente digital, que cobre tributos das grandes empresas internacionais de comércio digital e streaming, que atuam e captam seus clientes em qualquer lugar do mundo. Atualmente, os serviços informatizados destas empresas são tributadas pelos tributos que incidem sobre o consumo, o ICMS Estadual e o ISS Municipal. Entretanto, estes impostos são frequentemente repassados no valor dos produtos transferidos ao consumidor, situação que agrava o fato de, por serem impostos sobre consumo, possuírem caráter regressivo.
<a href="http://conteudo.jota.info/jota-pro-tributos" target="_blank" rel="noopener noreferrer"><img class="aligncenter wp-image-259015 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/07/cta-jota-pro-tributos.jpeg" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Há um Projeto de Lei, que atualmente tramita no Congresso Nacional, que busca instituir um tributo sobre o uso de plataformas digitais: trata-se do PL 2358/2020, movido pelo deputado Federal João Maia (PL-RN), que tributa serviços que utilizam plataforma digital através de uma CIDE. (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico) O produto da arrecadação será destinado, de forma integral, ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), que visa financiar projetos científicos e tecnológicos.
As alíquotas deste novo tributo terão caráter progressivo, com base na receita bruta das atividades tributadas: os grupos econômicos sujeitos ao novo imposto deverão apresentar receita bruta mínima de valor mínimo de R$3 bilhões em todo o mundo, e de R$100 milhões no Brasil. Estes limites financeiros são controversos, pois empresas que realizam atividades digitais, sobretudo internacionalmente, tem uma Receita Bruta mais difícil de ser mensurada.
A Justificativa do Projeto de Lei busca seguir os padrões estabelecidos pelo projeto da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Economico) de nome BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), que desde 2013 estabeleceu quinze linhas de ação para evitar que empresas multinacionais, capazes de movimentar seus lucros para jurisdições de menor taxação e de atuar sem manter presença física em determinado país, não possam concentrar seus lucros nos chamados “paraísos fiscais. O BEPS recomenda a tributação na fonte do faturamento empresarial, de forma compatível com as regras internacionais. No entanto, o PL 2358/2020 não apresenta uma justificativa específica para que a imposição do tributo ocorra mediante o uso de CIDE, e não por meio de um imposto comum.
A possibilidade de se tributar empresas que utilizam serviços digitais vem gerando uma controvérsia no exterior: o presidente norte americano Donald Trump, que nos últimos anos incentiva uma política fiscal proteccionista em relação a produtos chineses e europeus, abriu em junho de 2020 uma investigação as nações que planejam tributar, por impostos ou tarifas alfandegárias, empresas norte americanas que forneçam bens e serviços para todo o mundo.
Entre estas empresas estão gigantes como Google, Amazon e Facebook, que possuem enorme influência na internet e armazenam dados de internautas diariamente<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Seria a tributação das mesmas, em seus países de destino, um exemplo de discriminação por sua origem norte americana? No Brasil, a investigação se faz ainda mais urgente, pois apesar de ter nos Estados Unidos seu principal parceiro comercial, o país não assinou, com o governo norte americano, um tratado de bitributação. E por fim, o Brasil também foi incluído no rol de países sujeitos a investigação, em virtude da possibilidade de aprovação do PL 2358/2020
<blockquote class="jota-article__eye">Enquanto a investigação estrangeira se desenrola, a CIDE Digital não é isenta de críticas pelos próprios brasileiros. Surge a discussão de qual deverá ser o ente da Federação competente para arrecadar o montante tributado, visto que a CIDE é um tributo arrecadado exclusivamente pela União, segundo o Artigo 149 da Constituição Federal.</blockquote>
Quando esta contribuição é instituída, as receitas acolhidas não são posteriormente repassadas a Estados e Municípios, agravando o já grave desequilíbrio orçamentário entre os entes da Federação. Portanto, se é necessário criar um tributo específico para serviços digitais, é mais desejável que o formato adotado seja outro que não o de uma CIDE, a fim de que sejam desenvolvidas todas as regiões do Brasil. Estratégias como a CIDE e o ISS, que depende do nível de atividade econômica dos municípios onde ele é cobrado, tendem a concentrar os benefícios da tributação em poucos locais, onde há maior produtividade.
É necessário avaliar, também, se é eficiente destinar o montante arrecadado pelo possível tributo ao FNDCT. O Fundo já é atualmente financiado por uma outra CIDE, a CIDE-Remessas, criada pela Lei 10.168/00. Tal contribuição já existente incide sobre remessas financeiras destinadas ao exterior, em contrapartida ao uso por brasileiros de conhecimentos tecnológicos importados.
Portanto, como o PL 2358/2020 também busca evitar a evasão fiscal ao tributar somente empresas internacionais, ele possui um fato gerador já muito semelhante ao da CIDE-Remessas, podendo-se constituir uma bitributação indevida, de acordo com a interpretação judicial adotada. Cabe investigar, também, se o FNDCT irá de fato absorver os recursos arrecadados pela contribuição, visto que tais volumes devem ser repassados ao Fundo pela União após o recolhimento da CIDE, o que pode não vir a ocorrer em volume suficiente, caso não haja uma fiscalização adequada.
O Artigo 149 da Constituição Federal também expressa que as Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico devem ser instituídas pela União apenas com o seguinte objetivo: a atuação direta do governo federal brasileiro em um setor da economia, por meio, por exemplo, do uso de empresas públicas ou de sociedades de economia mista.
No caso da CIDE-Digital, não é prevista uma atuação econômica da União, tratando-se de um mero tributo que incide genericamente sobre empresas que comercializam produtos digitalmente, como livros, jogos, músicas, etc. Assim, não há uma característica capaz de enquadrar o tributo digital como uma CIDE, e ainda por cima, é violado o princípio constitucional da isonomia, previsto no Artigo 150 inciso II. Tributos não podem ser instituídos de forma discriminatória em relação à função exercida pelo contribuinte, cobrados simplesmente devido a atividade econômica  exercida por ele.
Por fim, cabe efetuar uma análise econômica e consequencialista dos efeitos na sociedade brasileira caso esta nova contribuição entre em vigor. Assumindo-se que isto ocorrerá em breve, ainda durante a pandemia de coronavírus que provocou a falência de diversas empresas, é a opinião de muitos tributaristas que a inclusão de um novo tributo, onerando empresas que vem convertendo seus serviços para a plataforma digital de modo a reduzir prejuízos, irá apenas aprofundar a recessão já prevista para 2020.
O governo federal deve, ainda que temporariamente, aumentar sua despesa pública para gerar novos empregos, estimular pequenos negócios e manter os já existentes, mediante um projeto coordenado para recuperar a economia. Embora de fato se faça necessária uma reforma tributária no Brasil, esta reforma se dá pela reformulação das alíquotas e das bases de cálculo dos tributos já existentes, e não pela instituição de novos tributos sobre atividades econômicas já tributadas, como pelo ICMS e ISS. Por que não pode o Estado, ao invés de instituir uma CIDE-Digital para suprir as perdas na arrecadação, tributar dividendos distribuídos a acionistas, isentos de impostos no Brasil desde a década de 1990?
Conclui-se, portanto, que a proposta de criação de uma nova CIDE é inconveniente no momento atual, ineficaz para financiar o desenvolvimento tecnológico brasileiro, e inconstitucional em relação a Carta Magna. Deve-se adotar uma nova forma de se atender aos desejos da OCDE, entidade na qual o Brasil deseja ingressar, que respeite os ditames constitucionais.
Não é necessária pressa: conforme argumentado acima, não se deve priorizar a criação de um novo tributo em meio a uma pandemia mundial que no Brasil, infelizmente, encontrou um terreno fértil para ceifar vidas e empresas. Primeiro, deve o governo e a sociedade civil preocuparem-se em restabelecer a economia e em conter a disseminação do coronavírus, para posteriormente empregarem seus esforços em outras questões.
------------------------------
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://www.mercatus.org/bridge/commentary/pacing-problem-and-future-technology-regulation">https://www.mercatus.org/bridge/commentary/pacing-problem-and-future-technology-regulation</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> <a href="https://www.capitalnews.com.br/colunistas/tecnologia/governo-digitaliza-mais-de-150-servicos-digitais-durante-pandemia-de-covid-19/343766">https://www.capitalnews.com.br/colunistas/tecnologia/governo-digitaliza-mais-de-150-servicos-digitais-durante-pandemia-de-covid-19/343766</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> <a href="https://teletime.com.br/04/06/2020/trump-ameaca-paises-parceiros-comerciais-que-tributarem-plataformas-digitais/">https://teletime.com.br/04/06/2020/trump-ameaca-paises-parceiros-comerciais-que-tributarem-plataformas-digitais/</a>

economia digital

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Não é necessária pressa: não se deve priorizar a criação de um novo tributo em meio a uma pandemia mundial

É coerente a criação de uma CIDE-Digital?

Não é necessária pressa: não se deve priorizar a criação de um novo tributo em meio a uma pandemia mundial