Marcelo Ribeiro de Oliveira
Sócio de Penal Empresarial do Lefosse
Diante do recente debate suscitado sobre o emprego do modelo de constatação, também conhecido como standard “para além da dúvida razoável” para a realização de condenações criminais, reputei oportuno fazer breves reflexões que, sem pretensão de exaurimento do tema, podem contribuir na análise do tema, que salvo raras, mas ótimas exceções, como ensaios dos professores Danilo Knijnik e Gustavo Badaró, não são muito tratadas no direito brasileiro.
As críticas voltadas são no sentido de que uma condenação feita “para além da dúvida razoável” violaria a garantia do in dubio pro reo, na medida em que não é revestida da certeza necessária.
Um olhar mais atento, contudo, revela justamente o contrário. Como ensina o processualista Michele Taruffo, a certeza é um estado psicológico, estritamente subjetivo, que pode existir mesmo em relação a um fato absolutamente falso. Um juiz que condena ou que absolve porque tem certeza, sem correlacionar sua conclusão com a prova nos autos, comete arbitrariedade e não permite conhecer seus fundamentos, ou permite de forma precária, o que igualmente retira a legitimidade de sua decisão.
Por outro lado, com a advertência óbvia de que ao juiz cabe julgar as alegações das partes sobre os fatos discutidos no processo (o juiz não presenciou os fatos e só acessa as versões alegadas pelas partes), tem-se nos standards uma orientação de como dar por provada essa alegação, ou, como lembra o professor Nieva Fenoll, guias para orientar a valoração da prova, comumente usadas no direito anglo-saxão, mas presente também nos modelos de matriz romano-germânica, como já se defendeu em outro ensaio.
Essas guias, por assim dizer, são compostas por expressões vagas, que, para que não se tenha o mesmo risco de arbítrio aventado pela mera invocação de certeza, ao serem empregadas pelo julgador devem ter o seu alcance esclarecido, bem como explicada a forma como tal standard foi atendido. Ao assim proceder, o juiz permite às partes compreender suas razões bem como abre espaço para diálogo das partes com o tribunal, em caso de recurso. A possibilidade de controle da motivação é necessária como fator legitimidade do ato jurisdicional.
Para esclarecer a variedade dos standards e o peso da expressão “para além da dúvida razoável”, a experiência internacional e a realidade brasileira são muito úteis. Os Estados Unidos possuem construção doutrinária e, sobretudo, jurisprudencial, com modelos, no direito penal, entre outros, como a scintilla of evidence (centelha de prova), a reasonable suspicion, a probable cause, em que se exige menos de quem alega para obter o pedido (normalmente, uma providência cautelar, como uma busca).
Há ainda, também com aplicações na área cível a preponderant evidence, em se sopesam as versões e escolhe-se, de forma fundamentada, uma mais aceitável que outra.
Todas essas guias exigem menos da parte do que a prova beyond any reasonable doubt, a exigível para as condenações criminais.
Esse é o parâmetro de maior exigência, que tem previsão legal na Itália, no art. 533, do seu Código de Processo Penal, ao estabelecer que o juiz somente proferirá sentença condenatória “se l'imputato risulta colpevole del reato contestatogli al di là di ogni ragionevole dubbio”.
No Chile, o art. 340 de sua codificação processual penal estabelece que “Nadie podrá ser condenado por delito sino cuando el tribunal que lo juzgare adquiriere, más allá de toda duda razonable, la convicción de que realmente se hubiere cometido el hecho punible objeto de la acusación y que en él, hubiere correspondido al acusado una participación culpable y penada por la ley.”
Esse standard é também empregado pela Corte Europeia dos Direitos Humanos, bem como pela Jurisprudência Portuguesa. Ilustrativamente: “Na doutrina, um significativo número de autores tem acolhido e densificado o critério prático de origem anglo-saxónica, decorrente do princípio constitucionalmente consagrado da presunção de inocência e com base no qual o convencimento do tribunal quanto à verdade dos factos se há-de situar para além de toda a dúvida razoável” (Relação de Guimarães 443/12.7JABRG.G1, JOÃO LEE FERREIRA, 17/02/2014). No mesmo sentido: RCb 482/09.5TBTMR.C1, TELES PEREIRA, 11/07/2012, RCb 211/09.3TBCLB.C1, TELES PEREIRA, 27/03/2012, RCb 693/09.3TBVNO.C1, TELES PEREIRA, 18/02/2014, 1994/09.6TBVIS.C1,, TELES PEREIRA, 06/03/2012; RPt 1773/06.2TBVNG.P1, JOSÉ AMARAL, 28/02/2013 e RLx 26/10.6TTBRR.L1-4, ALDA MARTINS, 12/02/2014.'
Essa também é a posição adotada no Supremo Tribunal Federal, como se vê, de forma não exaustiva, nos seguintes julgados: AP 521, Rel. Min. ROSA WEBER, Dje-025, pub. 06-02-2015; AP 595, Rel. Min. LUIZ FUX, Dje-027. pub. 10-02-2015; HC 83947, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Dje-018, pub. 01-02-2008 HC 95003, Rel. Min. CEZAR PELUSO,, Dje-211, pub. 07- 11-2008.
O mais importante para essas brevíssimas reflexões é, no entanto, observar que as figuras dos standards, com acerto, permitem que se examinem a qualidade dos argumentos e a dúvida que eles podem suscitar.
Em outras palavras, a ciência processual moderna deixa de buscar uma certeza inatingível e solipsista, tanto quanto a infeliz e imprecisa expressão “verdade real” (existiria verdade irreal?).
As críticas feitas centram-se no vocábulo “dúvida” e o standard “para além da dúvida razoável” é garantia ao acusado justamente por ter de superar todos os pontos apresentados pela defesa.
Caberá ao julgador mostrar, para eventual condenação, que uma dúvida concreta (por exemplo, um álibi sustentado em defesa) está superada, ou de que se trata de uma dúvida abstrata, teórica ou desalinhada com o fato julgado.
Como forma a demonstrar a diferença e a garantia geradas pela exigência de um prova “para além da dúvida razoável”, lembra-se, com apoio no professor Frederik Vars, do famoso caso O.J Simpson, em que o julgamento criminal entendo não estar provada a culpa para além da dúvida razoável, mas o julgamento criminal entendeu ser o cometimento do crime mais provável do que não. Pela presunção de não culpabilidade, reforçada pelo standard, o ex-jogador foi absolvido da acusação criminal, mas, pela versão de sua participação da morte ser mais crível do que sua não participação, ele foi responsabilizado civilmente.
Em síntese, é possível afirmar, para além da dúvida razoável, que esse modelo probatório é uma (devida) proteção ao acusado em processo criminal sendo o parâmetro, largamente aceito, o mais rigoroso para se produzir uma condenação.
Referências:
BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Prisão em flagrante delito e liberdade provisória no
Código de Processo Penal: origens, mudanças e futuro de um complicado relacionamento.
http://badaroadvogados.com.br/prisao-em-flagrante-delito-e-liberdade-provisoria-no-codigo-de-
processo-penal-origens-mudancas-e-futuro-de-um-complicado-relacionamento.html
KNIJNIK, Danilo. Os standards do convencimento judicial: paradigmas para o seu possível
controle. Revista Forense, Rio de Janeiro, n. 353, jan.-fev. 2001
NIEVA FENOLL, Jordi. La Valoración da la Prueba. Madrid, Marcial Pons, 2010.
OLIVEIRA, Marcelo Ribeiro. Standards probatórios: presença e aplicação nos países de civil law. In
Temas atuais do Ministério Público Federal (MPF) – 2016, 4a edição: Revista, ampliada e atualizada.
Salvador : Juspodium, 2016
TARUFFO, Michele. Verità nel processo. Revista de Processo | vol. 228/2014 | p. 63 | Fev / 2014
VARS, Frederik. E, Toward a General Theory of Standards of Proof, 60 Cath. U. L. Rev. 1, 2011.