Thiago Bottino

Marcelo Toledo Silva foi condenado pelo crime do art. 16 da lei 6.368/76 (posse de substância entorpecente para uso próprio) pelo juiz da Comarca de Varginha/MG. Foi condenado a pena de 1 ano de prisão e multa. O juiz de primeiro grau concedeu a Marcelo o sursis, ou seja, a pena seria suspensa por dois anos, e, caso Marcelo não fosse acusado de nenhum outro crime nesse período, sua pena seria extinta. O juiz autorizou que Marcelo prestasse fiança e aguardasse em liberdade até a decisão definitiva (trânsito em julgado). Marcelo não recorreu da sentença.
No entanto, o Ministério Público recorreu. Pedia que Marcelo fosse condenado por tráfico de drogas ao invés de posse para uso próprio. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais deu provimento ao recurso do MP. A pena de Marcelo aumentou para 3 anos, que deveria ser cumprida em regime integralmente fechado. Novamente, Marcelo teve reconhecido seu direito de aguardar em liberdade o trânsito em julgado do processo.
Em novembro de 2000, a defesa recorreu ao Supremo Tribunal Federal. O julgamento, contudo, somente ocorreu em setembro de 2003, quase três anos depois de interposto o recurso. O Supremo entendeu que a decisão do TJ/MG estava errada e reconheceu o acerto da decisão do juiz de Varginha. Assim, anulou a condenação por tráfico (Recurso Extraordinário nº 287.658).
Em junho de 1996, Mansur José Mansur foi denunciado pelo crime de maus tratos, um caso de grande repercussão que ficou conhecido como “Caso Santa Genoveva”. O processo demorou quase 10 anos e Mansur foi condenado, em novembro de 2005, a uma pena de 7 anos e 6 meses de prisão, em regime semiaberto. Defesa e Ministério Público apelaram. Em julho de 2008, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro reduziu a pena para 6 anos e 3 meses de prisão.
Ocorre que Mansur José Mansur completara 70 anos antes do julgamento pelo TJ/RJ. Pela lei, o prazo de prescrição é contado pela metadePortanto, a pena de Mansur estaria prescrita, devido ao longo tempo que o juiz demorou para julgar o caso.
O Tribunal do Rio de Janeiro, contudo, não reconheceu a prescrição. Diversos recursos foram interpostos pela defesa com a finalidade de que a lei fosse aplicada. Somente em outubro de 2014, seis anos depois da decisão do TJ/RJ, o Supremo Tribunal Federal julgou o recurso extraordinário de Mansur José Mansur. O STF declarou, com base em jurisprudência já consolidada, que havia ocorrido a prescrição (Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo, nº 778.042).
Se esses fatos tivessem ocorrido hoje, Marcelo teria ficado preso por quase três anos para que, ao final desse tempo, fosse reconhecido que jamais deveria ter ficado sequer um dia atrás das grades. Da mesma forma, Mansur José Mansur teria cumprido 6 anos de uma pena que já estava prescrita.
Em fevereiro de 2016 o STF mudou sua jurisprudência, permitindo a execução de condenações pelos tribunais de segunda instância, mesmo antes dessa decisão se tornar definitiva.
Naquele momento, muitos comentaristas afirmaram que essa medida combateria o sentimento de impunidade. Mas esqueceram de contar que isso aumentaria a chance de pessoas serem presas de forma injusta e ilegal. Por anos!
A verdade é que nosso sistema penal não funciona como deveria. O alto número de recursos faz com que os tribunais superiores demorem a julgar. Mas isso não se deve aos processos penais... Entre 2010 e 2015, foram interpostos 399.540 recursos especiais no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Menos de 10% eram de matéria penal (38.547).
Desses mais de 38 mil processos, 40% foram interpostos pelo Ministério Público e 60% pela defesa. Logo, fica evidente que não se tratam de recursos com finalidade protelatória, já que a proporção entre acusação e defesa é muito próxima.
Além disso, tanto o Ministério Público quanto a defesa obtém sucesso em seus recursos (taxas de 59% e 46%, respectivamente), o que mostra que o STJ reverte as decisões dos tribunais de segunda instância.
Essa não é uma afirmação retórica. Mas, sim, uma constatação com base em dados empíricos. Pesquisa financiada pelo Ministério da Justiça e pelo IPEA comprovou que o STJ reverte quase 30% de todas as decisões dos tribunais de segunda instância, quando julga habeas corpus (dados referentes ao período 2008-2012) (<a href="http://direitorio.fgv.br/projetos/habeas-corpus-nos-tribunais-superiores">http://direitorio.fgv.br/projetos/habeas-corpus-nos-tribunais-superiores</a>). Na grande maioria dos casos, os tribunais de segunda instância decidem deliberadamente contra um entendimento já pacificado pelo STJ e pelo STF.
Nosso sistema judiciário penal está cheio de “Marcelos” e “Mansurs”... Pessoas que correm riscos concretos de serem encarceradas em presídios que o próprio Supremo já declarou que estão em condições desumanas. Daí a importância de que o STF reveja sua decisão de permitir a execução de condenações que não são definitivas.
A espera para impor uma pena pode até gerar na sociedade um sentimento de impunidade. Mas os números mostram que os recursos penais são uma parte muito pequena do problema.
Por outro lado, como justificar que pessoas sejam presas, por anos, fora das hipóteses da lei? Como reparar o dano que essas pessoas e suas famílias irão sofrer?
A resposta para a sensação de impunidade não é aumentar o risco de injustiças.
Essa semana o Supremo voltará a discutir o tema. Com sorte, o Tribunal será sensível aos argumentos que mais de 10 organizações da sociedade civil apresentaram, dentre elas as Defensorias Públicas da União, de São Paulo e do Rio de Janeiro, responsáveis pela defesa dos inúmeros “Marcelos” desconhecidos cuja dor não sai no jornal.

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Dois casos que mostram o erro da execução provisória

STF rediscutirá assunto na quarta-feira