Murilo Meneghetti Nassif

Estima-se que no mundo existam de 6 a 8 mil <a href="https://www.eurordis.org/about-rare-diseases" target="_blank" rel="noopener noreferrer">doenças raras</a>, que são aquelas que afetam 65 pessoas em 100 mil, sendo que 30% dos pacientes morrem antes dos cinco anos de idade; 75% delas afetam crianças e 80% têm origem genética. Dados da <a href="https://www.interfarma.org.br/app/uploads/2021/04/doencas-raras-a-urgencia-do-acesso-a-saude-interfarma.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Interfarma</a> relatam que aproximadamente 13 milhões de pessoas acometidas por alguma doença rara vivem no Brasil.
<a href="https://www.jota.info/produtos/saude?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Saude_materias"><img class="aligncenter wp-image-292716 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-saude.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Doenças raras é tema que afeta o direito das minorias e, a despeito dos recentes debates públicos sobre tais doenças, a nossa sociedade ainda tem muito a fazer para gerar resultados práticos satisfatórios nas vidas dos pacientes, seus familiares e no sistema de saúde brasileiro.
<blockquote class="jota-article__eye">Quando discorremos sobre doenças raras falamos de grandes desafios de acesso ao diagnóstico e tratamento adequado. É comum pacientes levarem anos antes de obterem o diagnóstico correto, circulando na rede de serviços do SUS e realizando terapias equivocadas. Comum, também, que o tratamento somente seja obtido através da <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/saude-no-stf-a-tese-do-tema-6-da-repercussao-geral-04122020">judicialização</a>.</blockquote>
São desafios que geram impactos negativos aos pacientes, seus familiares, ao sistema de saúde e a sociedade como um todo. Realidade que precisa ser encarada com respeito pela sociedade brasileira e que transcende as normas constitucionais e infraconstitucionais, adentrando ao campo da bioética.
A bioética, como diz Potter, é “a ciência da sobrevivência humana”<a href="applewebdata://A6447F4F-CE3D-4B16-A4E6-E23D821A32BA#_edn1" name="_ednref1">[1]</a> e a combinação do progresso da ciência com a herança humanista, que visa beneficiar o indivíduo e a sociedade como um todo. É área de conhecimento transdisciplinar conectada ao desenvolvimento do pensamento crítico e que está alicerçada no <a href="https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Historia&amp;esc=3" target="_blank" rel="noopener noreferrer">juramento de Hipócrates</a>: “Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém”.
O trecho do juramento acima transcrito encerra o que o filósofo norte americano, Ronald Dworkin, descreveu como Princípio do Resgate, pelo qual “a vida e a saúde são, como definiu René Descartes, os bens mais importantes: todo o resto teria menor importância e deveria ser sacrificado em favor desses dois bens”, como bem explana o prof. Saul Tourinho Leal, em artigo intitulado “<a href="https://jus.com.br/artigos/19389/o-principio-da-busca-da-felicidade-e-o-direito-a-saude" target="_blank" rel="noopener noreferrer">O princípio da busca da felicidade e o direito à saúde</a>”.
Quando fala do Princípio do Resgate, Dworkin fala de bioética. Inicialmente pensada para questões clínicas e locais, a bioética vem sendo revisada para abarcar uma nova realidade mais abrangente, refletindo a realidade de que nem todos tem acesso a uma sociedade igual e uma vida considerada digna<a href="applewebdata://A6447F4F-CE3D-4B16-A4E6-E23D821A32BA#_edn2" name="_ednref2">[2]</a>, como ocorre frequentemente com pacientes de doenças raras.
Estruturada em quatro grandes princípios (não-maleficência, beneficência, autonomia da vontade e justiça), a bioética age de forma benéfica para o melhor interesse da dignidade e vida do paciente, sem o prejudicar. Para tratar cada pessoa conforme o que é considerado moralmente correto, adequado e imparcial, sem interferências estranhas à prática clínica e não técnicas (ex.: sociais, culturais, religiosas, econômicas, ideológicas ou políticas).
Contudo, não parece que a bioética está sendo observada de forma adequada pelo nosso Estado em temas que envolvem doenças raras. Talvez porque a <a href="https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2014/prt0199_30_01_2014.html" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Política de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras no SUS</a> ainda seja recente no país.
Sendo a saúde um dever do Estado (<a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm" target="_blank" rel="noopener noreferrer">art. 196 CF</a>) e a derivação imediata da dignidade da pessoa humana (<a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm" target="_blank" rel="noopener noreferrer">art. 1º, III CF</a>) e do direito a uma vida que há de gozar de qualidade<a href="applewebdata://A6447F4F-CE3D-4B16-A4E6-E23D821A32BA#_edn3" name="_ednref3">[3]</a>, o Estado assume papel de destaque no desempenho das ações voltadas à realização de tal direito.
Mas, quando o Estado se omite ou age sem observar as normas<a href="applewebdata://A6447F4F-CE3D-4B16-A4E6-E23D821A32BA#_edn4" name="_ednref4">[4]</a> da Política de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras no SUS, obrigando o paciente a se socorrer do Poder Judiciário para garantir o acesso ao diagnóstico e tratamento, o Estado coloca em risco à segurança e a saúde dos pacientes e, ao mesmo tempo, infringe os princípios da bioética.
Viola o princípio da não-maleficência ao colocar à vida e segurança do paciente em risco, por uma ação ou omissão puramente administrativa, muitas vezes ignorando a ciência e prescrição médica ao melhor tratamento que é defeso ao paciente, causando-lhe dor e/ou sofrimento desnecessário.
Desobedece ao princípio da beneficência impondo ao paciente um tratamento (ou ausência de tratamento) que não é o do melhor interesse para a vida, saúde e segurança do paciente.
Afronta o princípio da justiça ao interferir no tratamento do paciente, alegando questões externas diversas (na maioria das vezes orçamentária e ideológica), desconsiderando o ideal liberal clássico afirmado pelo filósofo prussiano Immanuel Kant, de que cada homem é um fim em si mesmo, não podendo ser mero instrumento de outros homens<a href="applewebdata://A6447F4F-CE3D-4B16-A4E6-E23D821A32BA#_edn5" name="_ednref5">[5]</a>.
Quando tais princípios são descumpridos – pela não observância do regramento normativo posto – a ética é descumprida. Ou seja, o Estado (representado pelos agentes públicos), ignora o “dever ser” e mostra que a dignidade da pessoa humana é passível de ser violada, já que a saúde e segurança do paciente não seria relevante para os tomadores de decisão ou seria menos relevante quando comparada a outros objetivos.
Repensar a atuação do SUS em relação às doenças raras é fundamental.
O investimento nas terapias alvo, começando na atenção primária com o profissional de saúde para fazer o diagnóstico assertivo é essencial para não deixar o paciente anos na fila do atendimento.
A melhora qualitativa do processo de incorporação de terapias e medicamentos no SUS (ainda muito politizada e pouco técnica), além do <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/compartilhamento-riscos-compra-medicamentos-31052021">risco compartilhado</a> no processo de incorporação de produtos, também são caminhos para que o paciente não tenha de pedir socorro ao Poder Judiciário.
É passada a hora da sociedade ter um olhar diferente sobre o tema, compreender a importância de trabalhar de uma maneia combinada, somando esforços entre cientistas, médicos, associações, indústria, governo e órgãos de controle para vencermos as doenças e seguirmos as diretrizes da bioética segundo o que dispõe a <a href="https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos</a>.<a name="_Toc42773018"></a>
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<a href="applewebdata://A6447F4F-CE3D-4B16-A4E6-E23D821A32BA#_ednref1" name="_edn1">[1]</a> POTTER, V.R., Bioethics, Bridge to the future, Englewood Cliffs, N.J., Prentice-Hall, Inc., 1971, 1, em Bioética: ponte para o future / Van Rensselaer Potter; tradução de Diego Carlos Zanella. São Paulo: Edições Loyola, 2016. p. 17.
<a href="applewebdata://A6447F4F-CE3D-4B16-A4E6-E23D821A32BA#_ednref2" name="_edn2">[2]</a> PESSINI, Leo. Bioética na américa latina: algumas questões desafiantes para o presente e futuro. Centro Universitário São Camilo – 2008; 2(1):42-49.
<a href="applewebdata://A6447F4F-CE3D-4B16-A4E6-E23D821A32BA#_ednref3" name="_edn3">[3]</a> SANDEL, Michael J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. 24ª Ed. Tradução de Heloísa Martins e Maria Alice Máximo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, cap. 8. p. 229-256.
<a href="applewebdata://A6447F4F-CE3D-4B16-A4E6-E23D821A32BA#_ednref4" name="_edn4">[4]</a> O conceito de legalidade – e sua consequência tanto para os poderes públicos quanto para os particulares –, vem sendo profundamente revisitado nos últimos anos. Busca-se abranger uma nova realidade regulatória, pautada em um conceito de ordenamento jurídico ampliado, em que se compreende a atividade regulatória como um todo. Inclusive aquela exercida por órgãos da administração pública que tenham competência sobre a matéria em questão. Sobre o tema: BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2ª edição. São Paulo: Renovar, 2008, p. 141. MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. A bipolaridade do direito administrativo e sua superação. In: Contratos públicos e direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2015.
<a href="applewebdata://A6447F4F-CE3D-4B16-A4E6-E23D821A32BA#_ednref5" name="_edn5">[5]</a> KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Martin Claret, 2008.

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JOTA

Quando a realidade mostra que a sociedade precisa olhar para as minorias

Doenças raras, bioética, o SUS e a sociedade

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