Thiago de Mello Azevedo Guilherme

Em uma cena transbordante de inesperada ternura, o promotor Julio Strassera entrega a seu pequeno filho um papel onde este lê um trecho das alegações finais da acusação no julgamento das Juntas Militares da ditadura argentina (1976-1983), em 1985.
A criança indaga sobre o que seria o tal “gesto neroniano”, mencionado no texto. O pai explica tratar-se do infame gesto do imperador Nero, que ao apontar, de modo sumário, o polegar para baixo, condenava à morte, sendo esta imediatamente executada. O pequeno, então, pede que o pai esclareça, no texto, o significado da expressão, inserindo no documento a expressão “polegar para baixo”, para que todos possam compreender. O texto final, lido por Strassera perante os juízes da corte, ficou assim redigido<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>:
<blockquote class="jota-article__citation">Al suprimirse el juicio, se produjo una verdadeira subversión jurídica; se sustituyó la denuncia por la delación, el interrogatório por la tortura y la sentencia por el gesto neroniano del pulgar hacia abajo<a style="font-family: inherit; font-style: inherit; font-variant-ligatures: inherit; font-variant-caps: inherit;" href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.</blockquote>
O esclarecimento pedido pelo garoto é a metáfora fundamental sobre a qual se assenta a linha narrativa do thriller judicial que entrou em cartaz em 21 de outubro no Amazon Prime Video. Esclarecer é essencialmente trazer à luz, iluminar, tornar visível e perceptível algo que se encontrava oculto. A luminosidade é o elemento que desvela as teias de poder subterrâneas, e que oferece a todos a oportunidade de compreender. Esclarecer o significado do tal “gesto neroniano”, esclarecer o modus operandi das redes de poder e cadeias de comando que operam no submundo da sociedade. Enfim, esclarecer, por julgamento público, com garantias e, logo, definir quem são os culpados, quem são os inocentes. Esse processo, pelo qual os homens classificam e “etiquetam” uns aos outros, selando seus destinos, deve dar-se publicamente.
Em seus "Fragmentos póstumos", Nietszche afirma: “O que é o mal? O mal é o acaso; o mal é o desconhecido; o mal é o súbito”. Não sem razão, portanto, ao escrever sobre a experiência do Julgamento das Juntas Militares de 1985, Carlos Santiago Nino chamou seu livro de “O julgamento do mal radical”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Isso porque o comportamento dos líderes e agentes dos governos de facto daquele período mimetizava os principais atributos dos deuses malignos, com seus disfarces e metamorfoses. Como bem mostram os relatos apresentados no filme (com farto material original de arquivo), os agentes (obviamente secretos) da SIDE<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> ou de outros órgãos de Estado operavam sempre de modo espantosamente truculento, sádico, oculto e, principalmente, inesperado. Por seu ocultamento, portanto, toda a cadeia de poder e comando operava de modo algo invisível, impossibilitando ao cidadão comum saber, ainda que minimamente, se sua conduta individual era ou não admissível, suspeita ou reprovada. Nas palavras de Strassera:
<blockquote class="jota-article__citation">No existió entonces patrón de conducta al cual la víctima podía someterse para estar a cubierto de una posible injuria. El terrorismo de Estado la ponía en una situación de absoluta impotencia en lo concerniente a la determinación de su conducta y, por ende, en la decisión de su destino. El carácter arbitrario e indiscriminado de la represión sitúa el centro de la suerte de la victima fuera de ésta, pero continúa considerándola responsable de una conducta que no sólo no decide, sino que incluso no puede llegar a comprender.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a></blockquote>
Essa invisibilidade fantasmagórica, a impossibilidade até mesmo de conhecer a régua dos algozes, é o mal que o julgamento público – e a democracia, em última análise – buscam combater. Strassera sabia do perigo que advém da invisibilidade e da ocultação, principalmente quando estes são instrumentos de governos. A aposta na dissimulação e no incógnito é perigosa pois cria um tipo de "sub-ordenamento jurídico", ou seja, regras não escritas que operam nas sombras, criando posições de poder informal e, portanto, incontrolável.
O terror narrado pelas vítimas e o medo relatado pelas testemunhas comprovam que, mesmo após o fim dos governos das Juntas Militares, essa rede de poder oculto continuava existindo e operando<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Ainda durante o julgamento de Buenos Aires muitas pessoas se negaram a testemunhar pois eram vizinhas ou socialmente próximas de torturadores e membros das forças de inteligência. Uma vez que se tolera, ainda que por curto período, a existência de poderes oficiosos, em pouco tempo não há como retroceder. Desconstruir as teias de comunicação que jazem e perduram no submundo equivale a tentar recolocar o aroma dentro da carne putrefata. Só o tempo dá conta.
O filme apresenta, ainda, ao espectador o papel fundamental que a voz das vítimas e testemunhas desempenha no processo de desvelamento dos fatos e de restauração das emoções coletivas. A memória que surge a partir do julgamento torna-se um patrimônio do grupo e cria as condições para a punição justa dos ex-governantes, com base nos precedentes de Direito Internacional dos crimes contra a humanidade, e nas regras de direito penal internas da Argentina. Nas palavras de Strassera:
<blockquote class="jota-article__citation">Hemos tratado de buscar la paz por la vía de la violencia y el exterminio del adversario, y fracasamos: me remito al periodo que acabamos de describir. A partir de este juicio y de la condena que propugno, nos cabe la responsabilidad de fundar una paz basada no en el olvido sino en la memoria; no en la violencia sino en la justicia. Esta es nuestra oportunidad: quizá sea la última<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.</blockquote>
Essas são as razões maiores da importância de “Argentina, 1985” no contexto global e, principalmente, latino-americano, num momento em que o neopopulismo e a tolerância com a violência como método parecem ressurgir. Um filme que nasce imprescindível para a compreensão do papel da claridade dos processos e do ritual judiciário, bem como da independência deste. É a cerimônia do julgamento, e só ela, que nos permite ver quais foram as condutas, quais são as dores, quem foram os agentes. Somente o ritual permite-nos, mediante a luz lançada, a separação dos justos dos culpados, e dos terroristas (de Estado ou de guerrilha) do homem comum. Tudo o que se der no submundo, baseado em meros murmúrios, rumores e sussurros, não atende aos reclamos da civilização. O oculto, quando deliberadamente eleito método de Estado, somente serve ao terror.
Oxalá muitos vejam o filme. E que compreendam que, na democracia, quem defende as sombras, jamais carrega consigo a essência da Justiça.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> O texto integral das alegações finais do promotor Julio Strassera no julgamento das Juntas Militares pode ser acessado no seguinte endereço: <a href="https://t.co/mGN8wjsSdm?ssr=true">https://t.co/mGN8wjsSdm?ssr=true</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Em tradução livre: “Ao suprimir-se o julgamento, se produziu uma verdadeira subversão jurídica; se substituiu a denúncia pela delação, o interrogatório pela tortura e a sentença pelo gesto neroniano do polegar para baixo”
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> NINO, Carlos Santiago. Radical Evil on Trial. Yale University Press, 1996.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Secretaria de inteligencia del Estado.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Em tradução livre: “Não havia, então, um padrão de conduta ao qual a vítima pudesse se submeter para ser protegida de possíveis lesões. O terrorismo de Estado a colocou em uma situação de absoluta impotência no que diz respeito à determinação de sua conduta e, portanto, na decisão de seu destino. O caráter arbitrário e indiscriminado da repressão coloca fora dela o centro do destino da vítima, mas continua a considerá-la responsável por um comportamento que não só não decide, como também não consegue compreender”.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Ainda sobre essas redes subterrâneas de poder informal que operaram na Argentina após 1983, recomendamos o filme “O clã”, de 2015, dirigido por Pablo Trapero.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Em tradução livre: “Tentamos buscar a paz através da violência e do extermínio do adversário, e falhamos: refiro-me ao período que acabamos de descrever. A partir deste julgamento e da condenação que defendo, temos a responsabilidade de fundar uma paz baseada não no esquecimento, mas na memória; não na violência, mas na justiça. Esta é a nossa chance: pode ser a nossa última”.

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JOTA

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