José Eduardo Faria

“Revolução” foi o nome que, em 31 de março de 1964, os militares deram à deposição do presidente da República eleito como vice pelo voto direto e alçado ao cargo pela renúncia do vencedor seis meses após sua posse. Em 1968, o Ato Institucional nº 5 (AI-5) foi o instrumento a que os militares recorreram para acabar de uma vez por todas com as liberdades fundamentais e colocar o país num período sombrio e cinzento. “Brasil grande potência” foi o nome por eles dado a uma programação econômica que se converteu em sorvete ao sol após o fracasso do II Plano Nacional de Desenvolvimento (1974-1979), o mais ambicioso do regime militar. Tendo como um de seus principais objetivos a expansão do setor petroquímico, os autores do II PNB subestimaram os choques do petróleo ocorridos entre 1972 e 1978 e o resultado foi a erosão das condições de permanência dos militares à frente do poder. 
 Quando a pretensiosa “Revolução” eclodiu, eu estava terminando o ginásio. Quando ela ruiu, em 1985, era professor de carreira na Faculdade de Direito da USP e já havia disputado concurso para professor titular. Ao longo desses 21 anos, pude não só analisá-la como cientista político e sociólogo do direito, mas, também, acompanhar em Brasília o cotidiano do regime militar como repórter especial do antigo Jornal da Tarde e articulista de O Estado de S. Paulo.
Nos primeiros anos após a derrubada do regime democrático, sob a justificativa de que estavam combatendo a subversão e o comunismo, os militares, em nome de um pretenso “poder moderador”, prometeram restaurá-lo rapidamente. Apegando-se ao cargo, porém, deixaram a promessa de lado e passaram a agir como policy makers, e a propor uma “nova legalidade” em conformidade com os “ideais revolucionários”.  
 Essa pretensão é ilustrada pelos Atos Institucionais baixados pelo regime. Os primeiros atos foram escritos por Francisco Campos, um jurista com uma vida inteira dedicada ao autoritarismo e influenciado por Carl Schmitt, o controverso constitucionalista alemão que servira a Hitler, na década de 1930. No AI-1, baixado em abril de 1964, por exemplo, o regime militar concedia-se a prerrogativa de legislar em nome de uma ordem democrática “autêntica”, o que o levou a cassar os direitos de quem considerava inimigos, e não simples adversários políticos. Desse modo, ao ignorar a divisão dos Poderes, ao rejeitar a ideia de contrariedade e ao converter a relação governo vs. oposição na relação amigo vs. inimigo, a chamada “Revolução” entreabriu sua vocação autoritária.
Esse autoritarismo seria explicitado pelo AI-5, de 1968, que fechou o Congresso, interveio no STF, suspendeu o instituto jurídico do habeas corpus para crimes políticos, impôs censura prévia à imprensa, autorizou o presidente da República a intervir em estados e municípios e excluiu de apreciação judicial decisões tomadas de acordo com a “legalidade revolucionária”. Em seu preâmbulo, esse ato afirmava que o país precisava de “meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil” e dizia que a ordem jurídica até então vigente estava “servindo para que a oposição destruísse a Revolução”. Para assegurar a concretização desses objetivos, o AI-5 determinou “a suspensão das garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade”.  
 Se no plano externo o regime militar emergiu em meio à Guerra Fria, no plano interno surgiu em decorrência da industrialização e da urbanização ocorrida entre 1950 e 1960, que haviam deflagrado um processo de expansão do populismo, do nacionalismo e de polarização ideológica. Face a um maior protagonismo de sindicatos trabalhistas e de movimentos populares na vida política, os militares, apoiados pelos setores mais conservadores da sociedade, propuseram um projeto de nação com o objetivo de assegurar crescimento econômico e reduzir as tensões sociais.
Assim, se nos primeiros anos da ditadura, os militares afirmaram que o novo regime se justificava por meio de valores negativos, como a restauração da ordem após a vitória contra o “comunismo”, nos anos seguintes passaram a invocar o que seus ideólogos chamavam de valores positivos, sob a forma de planos nacionais de desenvolvimento fundados no binômio “desenvolvimento e segurança”. Esse binômio foi apresentado como “a essência doutrinária da Revolução”.  
 Por meio da ênfase à expansão do setor petroquímico e também das áreas de produção de bens de capital e de equipamentos pesados, as Forças Armadas buscaram assim um padrão de legitimidade novo e antidemocrático que substituísse o constitucionalismo liberal até então prevalecente. A legitimidade democrática, enquanto fundamento da obediência política, é uma legitimidade a priori – ou seja, para ser válida, a ordem jurídica depende de uma prévia Assembleia Constituinte e de uma Constituição promulgada. Nesse sentido, legalidade e legitimidade se fundem com base num argumento simples: como toda violência arbitrária é ilegítima, quando a legalidade a neutraliza ela se torna legítima. Já o regime militar passou a defender uma legitimação a posteriori, atrelada à sua performance no campo econômico.  
 Processos de legitimação a posteriori validam um ato qualquer, seja um sistema de crença ou de ideologia, seja um projeto de desenvolvimento, seja uma determinada gestão econômica, seja a implementação de uma doutrina de segurança nacional, procurando torná-lo consensual no âmbito de numa sociedade. Em outras palavras, os militares governantes impõem normas cujo cumprimento é obrigatório pela sociedade, mas não por eles, que podiam alterá-las a qualquer momento, com base em argumentos de necessidade contra o “inimigo comum”. Assim, governos autoritários legislam conforme suas conveniências políticas conjunturais e os imperativos de seus programas econômicos. Sua pretensão é legitimar-se à medida que suas políticas e seus programas vão tendo sucesso, atendendo às expectativas da sociedade.  
 Desde a queda de Getúlio Vargas, em 1945, a democracia brasileira se baseava numa legitimidade a priori – ou seja, na Constituição promulgada em 1946, que restabeleceu a democracia. Após o AI-5, quase duas décadas e meia depois, os militares assumiram que o regime por eles imposto era autoritário, motivo pelo qual não respeitava o império da lei, afrontando assim a legitimidade a priori assegurada por uma ordem jurídico-política erguida sob a égide da Carta de 1946. 
Juridicamente, a premissa do AI-5 era que, por ser uma "Revolução" vitoriosa, a ditadura se autoinvestia com um poder constituinte permanente. No plano político, o mesmo Ato reafirmava o conceito de legitimação a posteriori, que reforçava os mecanismos de poder. À medida que o país crescesse, gerando riquezas e empregos, o autoritarismo militar iria se legitimando progressivamente por seus resultados – essa era a ideia.  
 O problema é que este tipo de legitimação estava condicionado a uma percepção favorável da eficiência de gestão dos militares pela sociedade. Todavia, em momento algum assegurava o restabelecimento das liberdades públicas e das garantias individuais. Como tanto essas liberdades quanto essas garantias são fundamentais para uma plena democracia, o que então se viu foi um choque entre, de um lado, os valores democráticos (que valorizam a politização das diferenças, a discordância e a mediação dos partidos) e, de outro, os valores estamentais das <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/forcas-armadas">Forças Armadas</a> (que enfatizam a hierarquia, a autoridade e o cumprimento não questionado de qualquer ordem superior).  
 Assim, enquanto houve crescimento econômico, geração de emprego e algum controle da inflação, como ocorreu no início da década de 1970, ano em que o Brasil ganhou a Copa do Mundo no México, fato explorado pelo regime para mostrar seu sucesso, a ideia de legitimação a posteriori — isto é, pelos resultados — teve algum êxito. Mas, a partir do fracasso do II PND, que jogou quase todas suas fichas no setor petroquímico sem avaliar a explosão dos preços do petróleo no mercado mundial, as coisas mudaram. Ficou claro, em primeiro lugar, que a economia apresentava problemas que os militares não conseguiam enfrentar. Também ficou claro, em segundo lugar, que a ideia de legitimação pelos resultados fracassara, desnudando o regime e revelando o que efetivamente era – uma ditadura que censurava, perseguia, prendia, torturava, matava e exilava.  
 Quanto mais isso foi sendo evidenciado, mais os segmentos intransigentes e despreparados dos quartéis — a chamada “tigrada” – defendiam a repressão como instrumento de manutenção da ordem e se excediam no uso da força bruta. Com apoio de áulicos, oportunistas, populistas de extrema direita e cortesãos do regime, esse pessoal exagerava o alcance das “ameaças subversivas” como pretexto para justificar mais violência. Com isso, a ditadura militar passou a viver uma contradição: na aparência, ela se sentia mais forte, quando, na realidade, sua fragilidade política aumentava em razão dos conflitos internos nas Forças Armadas e de suas crescentes dificuldades no âmbito da economia. Desse modo, sua queda, em 1985, tornou-se inexorável.  
 Cerca de 37 anos após a redemocratização do país, foram justamente esses segmentos toscos, rudes e despreparados do regime militar que, como um ovo de serpente, estariam por trás da ascensão acidental do bolsonarismo ao poder. Militar disfuncional e ignaro e deputado do baixo clero parlamentar por 28 anos, Jair Bolsonaro nunca liderou esses segmentos. Pelo contrário, não passou de simples instrumento da soldadesca curta de estatura e vergonha que perdera espaço e poder com a redemocratização e a promulgação da Constituição de 1988. Isso explica por que Bolsonaro começou o governo agredindo o Judiciário, prosseguiu afrontando as instituições de direito e terminou com a frustrada tentativa de golpe oito dias após o término de seu mandato.  
 Se nos anos da ditadura bem ou mal houve um projeto de nação ambicioso e implementado por vias ilegítimas, o que houve entre 2019 e 2022 não passou de uma rasa narrativa de combate a uma pretensa revolução cultural e de recuperação de valores morais. Invocando um lugar comum na filosofia política, se os 21 anos da ditadura militar foram uma tragédia, os quatro anos de <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/bolsonarismo">bolsonarismo</a> foram uma farsa abjeta.

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JOTA

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