Pandemia

Dissídio coletivo e a tutela do direito fundamental à saúde e segurança no trabalho

A necessária revisão da jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho rumo à resolutividade e à efetividade

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Metrô de São Paulo. Crédito: Flickr

A Presidência do Tribunal Superior do Trabalho (TST), em suspensões de segurança, cassou liminares deferidas no Tribunal Regional do Trabalho da 2a. Região (TRT2), que estabeleciam a quarentena de empregados da CPTM e do Metrô de São Paulo, enquadrados no grupo de risco da Covid-19, bem como o fornecimento de material de proteção a todos os empregados, para evitar contaminação.

O fundamento da decisões se baseia na inadequação da ação de dissídio coletivo de natureza jurídica para o acolhimento dos pedidos deduzidos pelos sindicatos suscitantes. A jurisprudência do TST é no sentido de que este instrumento não comporta provimento condenatório, pois se restringe a fixar uma interpretação de norma de instrumento coletivo. As decisões questionam ainda a representação de trabalhadores terceirizados pelos sindicatos suscitantes dos dissídios coletivos.

O caso coloca em evidência a interpretação restritiva do dissídio coletivo extraída das disposições da CLT e sua contradição com o sistema de tutela coletiva previsto na Constituição de 1988, cuja funcionalidade resulta de leis anteriores e posteriores à Constituição, destacando-se a Lei de Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor.

Nessa linha, TRTs vêm atribuindo alcance mais amplo ao dissídio coletivo, reconhecendo tratar-se de instrumento célere para adoção de providências no âmbito coletivo. Após um período de hesitação, o TST reafirmou a jurisprudência tradicional, mantendo os limites na utilização do dissídio coletivo, entendimento que também aplica às ações anulatórias de cláusulas de instrumentos coletivos de trabalho.

As liminares do TRT da 2a. Região, cassadas no TST, tutelam o direito fundamental de “redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (art. 7º, XXII, CF). O dissídio coletivo foi o instrumento utilizado pelos sindicatos, provavelmente por permitir decisão que alcança todo o grupo e com tramitação mais rápida, uma vez que se origina no próprio tribunal. Em matéria de higiene, saúde e segurança no trabalho, o dissídio coletivo, seja o de natureza econômica ao prever normas e obrigações, seja o de natureza jurídica ao definir interpretações, está voltado para a concretização do mandamento constitucional, no intuito de promover a tutela coletiva dos direitos ali previstos.

A solução da questão sobre ser o dissídio coletivo realmente viável para veicular demandas por medidas preventivas de saúde, higiene e segurança encontra-se no artigo 83 do CDC. Ali, estabelece-se que para a defesa dos interesses e direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, “são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela”. Da mesma forma, a legislação processual civil consagra o acesso à justiça como acesso a direitos, por meio do impulso ao exame meritório, de forma célere e com a colaboração de todos os atores (art. 4º e 6º, CPC). Ou seja, o aspecto formal cede à efetividade da tutela dos direitos; a segurança jurídica, por sua vez, só se realiza com a resolução dos problemas levados  ao Judiciário. Portanto, o dissídio coletivo é instrumento hábil para adoção de providências necessárias à tutela coletiva do direito fundamental à saúde, segurança e higiene no trabalho .

Quanto à fundamentação complementar, que questiona a representação sindical, este ponto também exige reflexão. De acordo com o sistema de tutela coletiva, a adequação da representação deve ser aferida considerando a efetividade dos direitos, que estaria comprometida caso, por exemplo, não fosse possível a aplicação isolada da medida preventiva aos trabalhadores representados pelo sindicato. Ou então, tornar-se-ia inoperante, quando observada apenas em relação a uns e não a todos os empregados.

Em suma, as demandas por proteção aos trabalhadores durante a pandemia recomendam a retomada da temática pelo TST para debater a possibilidade de revisão de sua jurisprudência. A solução desses casos depende do reconhecimento aos instrumentos coletivos de alcance capaz de viabilizar a tutela efetiva de direitos coletivos.

O momento atual é extremamente delicado. A pandemia consome vidas e recursos públicos e privados com enorme rapidez. O Brasil se depara com a crise, com deficiências históricas no sistema de proteção social, como um paciente com comorbidade, que sofre de vários males antes do surgimento da doença e necessita lutar muito mais para superá-la. Quando sair, estará debilitado e as sequelas permanecerão por muito tempo.

Haverá muitos desafios e dúvidas, especialmente sobre quando e como  agir para não exagerar na dose e matar o doente. Porém, não se pode admitir o sacrifício da saúde e da vida de alguns trabalhadores, como os que prestam serviços em atividades essenciais, para proteger e assegurar a existência dos demais e da população em geral. Demandas por medidas preventivas para proteger a saúde e a vida dos trabalhadores serão recorrentes nestes tempos de pandemia e as respostas devem ser ágeis e efetivas, independentemente do instrumento utilizado.