Filipe Natal De Gaspari

Acalentar olhar cuidadoso sobre o passado brasileiro é estratégia crucial para a compreensão e preservação de nossas instituições constitucionais. Nesse sentido, “STF na Ditadura Militar Brasileira: um Tribunal Adaptável?”, <a href="https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/48195/R%20-%20T%20-%20HELOISA%20FERNANDES%20CAMARA.pdf">tese de doutorado de Heloisa Fernandes Câmara (UFPR, 2017)</a>, oferece panorama original e instrutivo sobre a realidade jurídica do país durante a ditadura militar de 1964 – e, em especial, sobre o papel do Supremo em contexto marcado pelo autoritarismo.
Desde logo na abordagem de Heloisa Câmara, chamam a atenção a esmerada consulta a fontes primárias e a problematização eficiente dos referenciais teóricos internacionais da literatura sobre direito e autoritarismo – problematização essa, como veremos, que surge da devida atenção conferida, pela autora, às características e peculiaridades da história constitucional brasileira. A autora procura demonstrar que a história do direito constitucional brasileiro merece atenção redobrada por ter sido permeada por importantes “disputas” às voltas do “sentido de constituição”.
Heloisa Câmara lembra que, à época, tais “disputas de sentido” iriam desaguar na definição das atribuições do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/STF">STF</a>. Principal instância de interpretação da legalidade do país, a corte seria colocada no meio do furacão político. Por um lado, a Corte seria destinatária das ações cerceadoras da ditadura, que procurou neutralizá-la, por exemplo, via modificações em sua composição – em especial, com o AI2 e AI5. Por outro, no contexto político, houve suposto aumento de suas competências com a criação da “representação de inconstitucionalidade abstrata” (<a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc16-65.htm">EC 16/65</a>).
<h3>Autoritarismo e direito: complexidades</h3>
Direito, instituições e autoritarismo não são noções necessariamente excludentes – o que pode causar perplexidade à primeira mirada (<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/regimes-autoritarios-reposicionamento-discussao-fundamental-03102020">aqui no JOTA procurei desenvolver esse tema</a> à vista das tensões institucionais verificáveis na Era Vargas). De acordo com Heloisa Câmara, a ditadura militar brasileira não prescindiu de uma esfera de “legalidade”. Não se tratou, em outras palavras, de uma realidade “sem direito” e “sem instituições”. Na verdade, tudo leva a crer que a ditadura, instaurada pelo golpe civil e militar de 1964, procurou, por diferentes vias, controlar o sentido dessa legalidade particular – autoritária.
Como se sabe, com o golpe de 1964, a ditadura não aboliu a Constituição de 1946, que passou, em contrapartida, a conviver com espécies normativas autoritárias, em especial os Atos Institucionais, que se destinavam a influir diretamente sobre o sentido de constituição e de poder constituinte. No fundo, dessa maneira, procurava determinar os limites da soi-disant “ação revolucionária”. Como dirá Heloisa Câmara, trata-se de momento “em que o excepcional e o normal se uniam e mutuamente (de)formaram-se”.
O cenário, portanto, como observa a autora, era de profunda complexidade na construção, no plano da solução de conflitos, de uma hierarquia normativa capaz de trazer segurança jurídica às pretensões do regime ditatorial. Ao navegar por um modelo em que a legalidade (ainda que autoritária) não poderia ser, de um todo, excluída, a ditadura acabava por franquear a interpretação das suas leis a disputas nada irrelevantes.
Com a Constituição de 1967, como nunca, a ditadura enfrentaria o problema entre a “permanência” e “continuidade” dos atos exarados sob a Constituição de 1946, inclusive de seus próprios Atos Institucionais.
<h3>O STF e as representações de inconstitucionalidade abstratas</h3>
Em última instância, a argumentação de Heloisa Câmara desemboca na análise do tema da representação de inconstitucionalidade abstrata, inserida no ordenamento jurídico brasileiro por meio da EC16/1965 – e plasmada na Constituição de 1967.
O acervo de pesquisa de Heloisa Câmara conta com 65 representações (1965-1968). Cumpre notar que, à época, o STF não distinguia, em seus procedimentos internos, as já existentes “representações interventivas” das então recém-criadas “representações abstratas” propriamente ditas. Essa cena relativamente confusa revela, por si só, como as modificações no ordenamento jurídico brasileiro, mesmo durante a ditadura, se inseriam numa dinâmica complexa de integração e desintegração, “continuidade” e “descontinuidade” de práticas.
Mais poder para um tribunal cerceado? Sobre as hipóteses que rondam a criação do mecanismo, a autora lembra que a literatura costuma destacar que o instituto visava a centralizar as decisões mais importantes para a ditadura em esfera federal, sendo o controle de constitucionalidade via STF “mais um” instrumento à sua disposição no controle da narrativa sobre a constituição. Supostamente, o STF estaria mais às mãos da ditadura do que os juízes locais e o Congresso.
Heloisa Câmara lança hipótese adicional a esse panorama, segundo a qual a inserção do instituto no ordenamento jurídico brasileiro teria sido uma maneira de agradar os “juristas civis”, possivelmente incomodados com os efeitos do AI2 na estrutura judiciária do país.
Além disso, mediante análise das fontes históricas, Câmara indica que essa solução da ditadura parece ir ao encontro das iniciativas do próprio tribunal para reorganizar as suas funções. Ora, se as pretensões do governo eram usar da representação de inconstitucionalidade para controlar o Congresso, a hipótese parece perder força se considerarmos o fato de os casos envolvendo lei federal só terem desaguado no STF, efetivamente, algum tempo depois da EC16/65.
Vale lembrar que a corte enfrentava sensíveis questões sobre o juízo de constitucionalidade das leis nesta quadra histórica. E a representação adicionava mais elementos para disputa de sentido a essa teia complexa. O tema sobre a possibilidade de o presidente não aplicar a lei que lhe parecesse inconstitucional dá provas disso. É que, para um ministro como Victor Nunes Leal, a representação permitiria “ampliar a harmonia” entre os poderes, criando uma via processual específica para o presidente questionar a constitucionalidade das leis. Tendo essa alternativa à sua disposição via PGR, o Presidente não poderia deixar de submeter o juízo sobre a constitucionalidade das leis ao STF.
No acervo empírico da autora, destacam-se tão somente quatro representações que visavam à impugnação de leis federais. Na contramão de suas hipóteses iniciais, se Câmara estiver certa, as fontes consultadas indicam que o mecanismo criado pela EC16/65 provavelmente não foi considerado estratégico pela ditadura. Na prática, os usos das representações acabaram em grande medida se inserindo em quadro mais amplo da jurisprudência da corte, havendo primazia das discussões federativas em detrimento dos conflitos envolvendo o Executivo federal.
De todo modo, Heloisa Câmara demonstra que, em momento politicamente conturbado para a atuação da corte, o STF colocou-se numa trilha turbulenta de definição de suas competências. No período histórico, as “funções do próprio tribunal” entraram em xeque, pois encontravam-se no limite entre “direito” e “política”. Assim, é significativa a citação direta da autora a considerações de Aliomar Baleeiro, no AgR da Rp 700/SP, no ano de 1967, em que o ministro explicitamente problematizava a natureza da representação, considerando-a, com efeito, “instituição de caráter político”.
<h3>Lutar contra os inimigos da democracia</h3>
Em suma, a tese de Heloisa Câmara permite alertar para o fato de que simplificações caricatas sobre a relação entre “autoritarismo” e “constituição” muitas vezes não auxiliam na compreensão das dinâmicas políticas reais de regimes ditatoriais.
Não há dúvida – cumpre considerar e conhecer toda a dimensão e as veredas da arena de disputas políticas e constitucionais para ganhar vantagem sobre os inimigos da democracia. A tese de Câmara aponta para muitos desses caminhos.

constituicao federal

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JOTA

Historiadora do direito Heloisa Câmara demonstra que relação entre autoritarismo e instituições merece atenção dos estudiosos

Disputas sobre o sentido de Constituição durante a ditadura militar

Tese de Heloisa Câmara demonstra que a relação entre autoritarismo e instituições merece a atenção dos estudiosos do constitucionalismo