Sergio André Rocha

Após mais de trinta anos de vigência, há finalmente indícios de que a Constituição Federal de 1988 começa a irradiar seus efeitos sobre a tributação, para além da proteção negativa dos contribuintes herdada dos períodos de formação do Direito Tributário nas décadas de 50, 60 e 70 do século passado, materializada no princípio da segurança jurídica e em suas diversas regras concretizadoras (legalidade, anterioridade, irretroatividade, etc.).
O formalismo jurídico deu ao Direito Tributário uma feição burocrática, resumindo-o  à compreensão de sua linguagem, à definição de conceitos e à análise da inter-relação entre normas hierarquicamente superiores e inferiores. O caráter humano da tributação foi legado a segundo plano.
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Um Direito Tributário reduzido a formas e conceitos é incapaz de ser instrumento de transformação social. Contudo, os tempos estão mudando e um dos maiores sinais de modificação é o debate corrente sobre o papel da tributação na superação das desigualdades de gênero<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> que prejudicam as mulheres em diversos campos da vida em sociedade.
É importante destacar que a análise das inter-relações entre tributação e desigualdades de gênero prejudiciais às mulheres não significa, de maneira alguma, uma preeminência deste tipo de discriminação sobre outras que se encontram presentes na sociedade brasileira. Pelo contrário. Sendo o Brasil um país incrivelmente desigual, são muitas as áreas que requerem especial atenção do Poder Público e da iniciativa privada para que tenhamos uma sociedade livre, justa e solidária, como estabelece o artigo 3º, I, da Constituição Federal. Entretanto, a existência de outros campos onde a desigualdade se faz presente não invalida a pesquisa sobre o papel da tributação como instrumento de superação das desigualdades de gênero prejudiciais às mulheres.
Por mais que este tema venha sendo objeto de estudos recentes, ele ainda carece de aprofundamentos. Certamente teremos, em breve, dissertações e teses que ajudarão a desenvolver a pesquisa sobre esta matéria. A finalidade deste breve artigo, todavia, é modesta. Pretendemos sistematizar, sem pretensões exaustivas as diversas áreas onde a questão da inter-relação entre desigualdade de gênero e tributação vem se apresentando.
Esta abordagem é relevante, uma vez que, sendo um tema novo, é importante separar questões que não se confundem, embora tenham raiz comum no Direito Tributário. Nesse sentido, nossos comentários serão apresentados segregados nos seguintes tópicos: (i) diferenciações explícitas de gênero prejudiciais às mulheres; (ii) diferenciações implícitas de gênero prejudiciais às mulheres; (iii) tributação do consumo e seletividade; (iv) superação das diferenciações de gênero prejudiciais às mulheres e extrafiscalidade; e (v) tributação e o chamado “pink tax”.
 Diferenciações Explícitas de Gênero Prejudiciais às Mulheres
Para os fins deste texto, estamos considerando diferenciações explícitas regras que estabeleçam tratamentos diferenciados, mais vantajosos ou mais prejudiciais, tendo como critério de discriminação o gênero binário masculino/feminino. Segundo vemos, a legislação tributária brasileira não tem este tipo de diferenciação entre homens e mulheres. Não temos conhecimento de qualquer dispositivo em vigor que explicitamente estabeleça um tratamento favorecido para pessoas do gênero masculino ou que preveja um tratamento prejudicial para pessoas do gênero feminino, ou vice versa.
 Diferenciações Implícitas de Gênero Prejudiciais às Mulheres
A teoria tributária brasileira se desenvolveu tendo como referência uma lógica formal-causal. Esta abordagem resulta em um Direito Tributário sem alma, e com grande dificuldade de se orientar por finalidades e de se adaptar às mudanças verificadas na sociedade. Com isso, nota-se uma preocupação muito limitada com as consequências concretas das regras fiscais. Na verdade, as próprias pesquisas em Direito têm um instrumental muito restrito para lidar com as consequências empíricas da tributação.
Neste segundo grupo, incluímos situações onde se verifica distinções de gênero prejudiciais às mulheres que não se encontram explícitas na legislação. Elas decorrem de consequências da aplicação das regras existentes, as quais geram diferenciações em decorrência de sua materialização sobre relações sociais marcadas por diferenças que impactam negativamente as mulheres.
Temos neste grupo, por exemplo, o caso do pagamento da pensão alimentícia, que é dedutível para o(a) pagador(a) e tributável pelo(a) recebedor(a). Aponta-se que esta regra gera uma diferenciação inconstitucional, uma vez que a maioria dos pagadores são homens enquanto as mulheres usualmente são as recebedoras.
Obviamente, tendo sido observado empiricamente este efeito negativo anti-isonômico, justifica-se a mudança da regra – até porque os valores alimentares recebidos como pensão não parecem ser renda ou proventos de qualquer natureza. Este debate, segundo vemos, guarda relação com a discussão sobre a tributação do salário-maternidade, julgado pelo STF no Recurso Extraordinário nº 576.967.
Tributação do Consumo e Seletividade
Este é provavelmente o campo onde os debates sobre tributação e gênero mais claramente se inter-relacionam. Sabemos que tanto o ICMS quanto o IPI, por exemplo, orientam-se pelo princípio da seletividade, de modo que consumos mais essenciais devem ter uma tributação mais baixa do que consumos menos essenciais. É nesta área que se inserem debates, por exemplo, sobre o caráter essencial dos absorventes femininos e similares e a necessidade de sua consideração como integrantes da cesta básica.
Note-se que não parece haver evidências de que estamos diante de uma tentativa explícita de discriminação fiscal das mulheres. Afinal, distorções da seletividade não são incomuns. Contudo, uma vez identificado este efeito, ele deve ser corrigido.
Ao contrário dos aspectos mencionados no item anterior, que têm dificuldade de controle judicial baseado exclusivamente na violação do princípio da isonomia, neste caso parece que a possibilidade de controle judicial é mais clara, embora o ideal seja a ação dos agentes políticos para a superação deste estado de coisas.
Diferenças de Gênero Prejudiciais às Mulheres e Extrafiscalidade
Uma questão diferente das anteriores é se a legislação tributária pode ser utilizada com finalidade extrafiscal, de modo a estabelecer induções sociais e econômicas que busquem eliminar diferenças de gênero que não são em si fiscais.
Neste caso, o exemplo mais claro seria a previsão de benefícios fiscais para empresas que atinjam metas de igualdade, de acesso e de ascensão entre homens e mulheres no ambiente de trabalho.
A questão central é se a diferença de gênero pode ser utilizada como critério de discriminação entre contribuintes – ou para induzir o comportamento de contribuintes – e a resposta é dada pela própria Constituição que, no inciso XX de seu artigo 7º, estabelece que “são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social” a “proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei”.
<blockquote class="jota-article__eye">Portanto, parece inquestionável que é possível a previsão de tratamentos diferenciados que tenham por fim a superação das diferenças de gênero no ambiente de trabalho.</blockquote>
Assim, a questão passa a ser se a concessão de benefícios fiscais é o instrumentos mais adequado para se alcançar este fim, ou se a questão seria melhor abordada por meio de outras iniciativas do Poder Público e do setor privado.
Tributação e o Chamado “Pink Tax”
A expressão “pink tax” é muito utilizada neste debate sobre tributação e gênero. Tratando-se de um anglicismo polissêmico, ela causa mais dúvida do que esclarecimento, segundo vemos.
É usual que nas análises sobre o tema do “pink tax” fale-se das diferenças de preço entre produtos destinados a homens e a mulheres. Por mais que esta diferenciação entre preços venha sendo empiricamente confirmada, cremos que ela não guarda relação direta com temas afeitos ao Direito Tributário. A tributação não é causa da diferença de preços e dificilmente poderia ser utilizada como instrumento para a sua superação. Portanto, vemos que a palavra “tax” na expressão em inglês foi utilizada de forma não técnica. Ela quer dizer algo como “sobrepreço rosa”, de maneira que esta questão me parece estranha à tributação.
Podemos até ter aqui um efeito tributário indireto, principalmente no Brasil, onde a alta carga tributária alocada em tributos regressivos sobre o consumo transfere custos fiscais significativos para o consumidor final. Entretanto, não cremos que seja, em si, uma questão de origem tributária, ou que possa ser objeto de intervenção da legislação fiscal.
Este breve texto teve uma pretensão singela: tentar dar contornos mais claros sobre o que seriam diferenças de gênero prejudiciais às mulheres decorrentes da legislação tributária e quais são as maneiras pelas quais a tributação pode ser utilizada para induzir comportamentos direcionados à superação de tais desigualdades. Esta reflexão nos parece relevante para que se evite pensar que o Direito Tributário seria panaceia para a solução das graves discriminações sofridas pelas mulheres nos diversos campos da vida em sociedade e, ao mesmo tempo, para que se concentrem esforços nas áreas onde tal uso é possível.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Este texto está assumindo uma perspectiva, simplista e simplificadora da realidade, que parte de uma classificação binária de gênero. O autor não desconsidera o equívoco desta opção de uma perspectiva sociológica. Contudo, para os fins limitados deste artigo, este reducionismo se faz necessário, já que se especula apenas das diferenças de gênero entre homens e mulheres e sua relação com a tributação.

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JOTA

Diferenças de gênero prejudiciais às mulheres decorrentes da legislação tributária

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