Lucas Pestana Macedo

Escrevo este breve artigo para compartilhar um pouco da experiência obtida atuando ao longo de quase dois anos como Diretor Jurídico voluntário da Associação Um Litro de Luz Brasil [1]. Pretendo explicar brevemente, através do que vivi neste período, o papel de um advogado/diretor nos primeiros passos de uma entidade do terceiro setor, com o intuito de incentivar e demonstrar a outro juristas que tenham o desejo de trabalhar com causas sociais, que há muito mais oportunidades do que somente ajudarmos com nossos “braços” ou doações.
Em fevereiro de 2016 fui convidado para participar da reunião da ONG que iria se estabelecer em São Paulo após algumas atuações importantes, mas pontuais, em outros estados. A ideia era estabelecer a organização administrativa no formato de Presidência e Diretorias para estruturar e viabilizar o crescimento da entidade no país.
A partir desta reunião, assumi o que iria se tornar a Diretoria Jurídica, contando inicialmente, apenas com uma advogada em minha equipe. O início foi de muita pesquisa e descoberta [2], pois até então nenhum de nós havia trabalhado com uma entidade do terceiro setor, desconhecendo toda sua imensa complexidade e especificidades.
Talvez por já atuar como advogado corporativo, enxerguei algumas semelhanças com a nova função e comecei meu caminho pelo suporte à administração da entidade. Isto significou especialmente naquele primeiro momento exercitar internamente um papel didático começando desde a explicação de que o conceito de “ONG” não existe no mundo jurídico.
Após algumas semanas de pesquisa e discussão, definimos que nosso primeiro norte seria obter a certificação OSCIP, uma qualificação jurídica outorgada pelo Ministério da Justiça que além de permitir a realização de parcerias com o poder público, atesta o cumprimento de critérios de governança e transparência, bem como o interesse público da atividade da organização. Estes critérios estavam em linha com o que queríamos construir para a entidade e ajudariam em seu crescimento e amadurecimento.
Como até então éramos apenas dois advogados na equipe, busquei apoio externo e com expertise [3] para nos auxiliar na reformulação completa do Estatuto Social da entidade [4]. Naquele momento, em suma, demos continuidade aos trâmites societários, com todos os registros e burocracia (e dor de cabeça) que isso significa, incluído aí a transferência da entidade, de Santa Catarina para São Paulo.
Nos meses seguintes, fomos evoluindo nesse e outros projetos, assim como a organização como um todo. Logo precisamos recrutar mais advogados para fazer parte da equipe para as novas atividades que íamos desenhando e desbravando.
Em benefício do propósito deste artigo, de explicar efetivamente um pouco do que faz (ou pode fazer) um advogado no terceiro setor, paro aqui a narração cronológica para tratar brevemente de algumas das principais frentes de trabalho no nosso cotidiano, a saber: Direito Societário, Contratos, Propriedade Industrial, Compliance, Direito Ambiental, Segurança, Direito Tributário, Análise de Editais e outros.
Começando pelo Direito Societário, como já mencionado, a atividade envolve toda elaboração/adequação dos instrumentos societários, organização das assembleias ordinárias e extraordinárias com o registro perante os órgãos responsáveis. 
O Estatuto Social, além de determinar todos os aspectos de funcionamento formal e interno da instituição, também é de extrema importância no seu dia a dia, frequentemente solicitado e examinado por possíveis parceiros que consideram estabelecer relações com a entidade. Todo o trabalho societário envolve atenção minuciosa nos detalhes que constarão nos documentos a serem registrados, tanto do ponto de vista de adequação jurídica quanto formal, pois os cartórios costumam ser rígidos no arquivamento.
A seara dos Contratos guarda semelhança com a realidade de empresas privadas, mas com algumas especificidades do terceiro setor, como quando uma parte realiza doação à entidade, é comum que esta tenha certa vantagem na negociação das cláusulas, o que requer certa flexibilidade do advogado da ONG, sempre em contato com outras áreas, considerando o que é ou não exequível, por exemplo, do ponto de vista operacional [5]. Além disso, muitas vezes, o Litro de Luz contrata a compra de materiais e prestação de serviços como de fotografia, filmagem, consultoria e até de transporte fluvial! 
Na esfera da Propriedade Industrial, protocolamos pedido de registro da marca da associação perante o INPI a fim de proteger a identidade visual da instituição, além de analisarmos a possibilidade de registro de patente das soluções de iluminação desenvolvidas pela Diretoria de Tecnologia.
Na área tributária, estudamos e emitimos pareceres quanto à incidência e recolhimento de tributos, especialmente em virtude da imunidade constitucional. Esta é uma área muito profícua e singular para atuação do advogado no terceiro setor, com efervescente discussão na doutrina e nos tribunais, sendo possível pleitear judicialmente o reconhecimento da não incidência de determinados tributos.
Ainda neste campo, em alguns casos, é possível viabilizar o recebimento de recursos em destinação de imposto de renda de empresas ou até mesmo participar de programas como a nota fiscal paulista, o que pode se revelar uma importante fonte de receita para a entidade.
Também iniciamos o programa de Compliance buscando garantir a transparência e observância não só do ordenamento jurídico, mas também dos valores da ONG, considerando tanto a atuação da Diretoria e seus voluntários como também a escolha e relação com seus stakeholders. Algumas iniciativas importantes foram a edição de guideline de parcerias, canal de ombusdsman para denúncias anônimas e código de ética e conduta. Na atualidade, dispensa comentários o quão importante um programa de Compliance efetivo é para qualquer instituição.
A depender do objeto social e forma de administração de cada organização, a participação em editais também pode ser uma boa fonte de rendimento e divulgação. Como o Litro de Luz trabalha com iniciativa social ligada à tecnologia (energia solar), a miríade de certames disponíveis é imensa, desde programas e concursos governamentais [6] até projetos de aceleração de startups. É função do jurídico avaliar a pertinência e riscos jurídicos envolvidos previamente à inscrição pretendida, garantindo atuação mais assertiva nas competições.
Existem ainda muitos outros aspectos jurídicos como ambientais, regulatórios, trabalhistas, direito de imagem... ou seja, há extenso campo para atuação do advogado em uma ONG. Tenho a oportunidade de fazê-lo de forma voluntária, mas é igualmente possível, inclusive necessário a partir de certo ponto, a atuação full time do profissional, mostrando-se uma excelente área para a construção de carreira.
Outros dois aspectos que valem ser mencionados a quem almeja uma atuação similar, são o trabalho executivo na Diretoria e de gestão da equipe. É um privilégio, aos 26 anos de idade, poder integrar o board executivo de uma entidade, principalmente uma com o potencial e impacto do Litro de Luz, que apenas no Brasil conta com quase 200 voluntários e já impactou a vida de milhares de pessoas. Participar das reuniões de Diretoria, trazendo pautas e participando de discussões e tomada de decisão sobre os rumos da instituição são experiências muito enriquecedoras e que trazem significativo amadurecimento.
Outra oportunidade que o Litro de Luz me proporcionou foi a de montar e gerir uma equipe [7] muitíssimo qualificada de jovens advogados motivados a trabalhar em prol da mesma causa.
Delegar e acompanhar a execução das tarefas por advogados voluntários que já possuem uma agenda cheia por seus outros compromissos profissionais, mantendo-os engajados e motivados foi um contínuo processo de aprendizado. Ao final de 2017, conseguimos consolidar uma equipe presente em todas regiões do país (e até fora dele), hoje composta por dez juristas [8]! As reuniões da área são possibilitadas por videoconferência, com produtivas discussões.
Sem pretensão de exaurir o tema, espero ter apresentado algumas das vantagens do trabalho jurídico em uma entidade do terceiro setor. É claro que tudo isso envolve dedicação de muitas horas, frequentemente após o expediente regular de nossos trabalhos, aos finais de semana, feriados, férias, etc, mas garanto que vale absolutamente à pena todo o crescimento pessoal e profissional que se obtém, além, é claro, da satisfação de poder contribuir com uma causa social em que se acredite.
Evidentemente, o comprometimento de horas semanais de um Diretor será diferente de um voluntário que integra sua equipe, sendo possível contribuir com cargas de trabalho mais ou menos intensas, a depender do momento de vida e das necessidades da entidade. Isto deve ser levado em consideração quando se inicia o vínculo, a fim de alinhar as realidades e expectativas de ambas as partes.
Observe-se que nem mencionei toda a atividade junto às comunidades em si, ou seja, participar da execução final do objeto da entidade, no caso do Litro de Luz, as ações de instalação e montagem de soluções de energia solar nas comunidades urbanas, ribeirinhas e até quilombolas.
Considero essa parte da atuação um verdadeiro bônus e uma felicidade tão incríveis que deixo abaixo apenas uma foto dessa que é (obviamente) a melhor parte!
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[caption id="attachment_111664" align="aligncenter" width="512"]<a href="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2018/01/captura-de-tela-de-2018-01-29-14-15-15-e1517242674276.png"><img class="wp-image-111664 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2018/01/captura-de-tela-de-2018-01-29-14-15-15-e1517242674276.png" alt="" width="512" height="408" /></a> Com a professora Dorama, da Comunidade Quilombola Kalunga, na entrega do certificado de treinamento e do lampião solar que construiu. Arquivo Pessoal[/caption]
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[1] Para saber mais sobre a atividade do Litro de Luz Brasil, acesse www.litrodeluz.com ou siga “Litro de Luz Brasil” nas redes sociais. 
[2] Aqui um agradecimento especial ao amigo Christian Menin, Diretor Jurídico da ONG Teto Brasil, que me foi um verdadeiro professor nesta introdução ao terceiro setor e até hoje benchmark para nosso trabalho. 
[3] Agradeço também aos amigos Lucas Rezende e Gabriel Zemuner, à época, advogados no escritório Bichara, fundamental nesta etapa do Jurídico do Litro de Luz. 
[4] Cabe dizer aqui que formalmente, ao final de 2014, já havia sido dado um “pontapé inicial” do ponto de vista societário em Florianópolis, com a elaboração e registro de um primeiro estatuto social da entidade. Portanto, legalmente a Associação Um Litro de Luz já existia quando ingressamos. 
[5] Celebramos, nestes dois anos, contratos, convênios e termos com grandes parceiros como Saint-Gobain Initiatives, Linhas Aéreas Azul, Instituto AES e Eletropaulo, Na Praia Produções, Bancorbrás, Engeselt, Museu do Amanhã, Associação Atados, Agência de Habitação de Goiás, FAU Social, entre outros. 
[6] Vale a menção ao caso do Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologias Sociais, no qual sagramo-nos vencedores: <a href="http://tecnologiasocial.fbb.org.br/tecnologiasocial/banco-de-tecnologias-sociais/pesquisar-tecnologias/poste-de-luz-solar-litro-de-luz-brasil.htm" target="_blank" rel="noopener">http://tecnologiasocial.fbb.org.br/tecnologiasocial/banco-de-tecnologias-</a><a href="http://tecnologiasocial.fbb.org.br/tecnologiasocial/banco-de-tecnologias-sociais/pesquisar-tecnologias/poste-de-luz-solar-litro-de-luz-brasil.htm">sociais/pesquisar-tecnologias/poste-de-luz-solar-litro-de-luz-brasil.htm</a> 
[7] Com fundamental auxílio da diretoria de Gente e Gestão que organiza e conduz os processos seletivos de voluntários. 
[8] Um último agradecimento especial e fundamental a todos que integram ou já integraram esta equipe: Luis Al-Contar (atual Diretor Jurídico), Beatriz Colozzi (aquela primeira voluntária que mencionei anteriormente e me acompanhou ao longo dessa jornada), Leiziane Oliveira (atual líder da célula de São Paulo), Gisela Provasi, Camila Tomimatsu, Marcelo Marques, Mayra Futema, Rafael Nara, Michel Gomes,Ana Eliza Brandt, Letícia Dantas e Raquel Bitu. Nada teria sido possível sem o fenomenal trabalho destes profissionais.

posta

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JOTA

Dois anos atuando como diretor jurídico voluntário da Associação Um Litro de Luz Brasil 

Diretoria jurídica no terceiro setor: relato de uma experiência

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