Carolina Ribeiro Santana

Em treze de maio de 2020 escrevi o texto intitulado <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/as-contradicoes-da-tese-do-marco-temporal-elaborada-pelo-stf-13052020">“As contradições da tese do marco temporal elaborada pelo STF”.</a> Na ocasião, expus argumentos de ordem técnica capazes de demonstrar que a tese do marco temporal, além de ser construída sobre premissas equivocadas, possui condições de afastabilidade admitidas pelo STF que são praticamente inexequíveis.
Em vinte e um de maio, Rodrigo de Oliveira Kaufmann escreveu o texto intitulado “<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/os-brasileiros-invisiveis-na-questao-indigena-21052020">Os brasileiros invisíveis na questão indígena</a>”, no qual defende a tese que julgo não encontrar amparo ou fundamento na Constituição Federal. Com o devido respeito, gostaria de responder ao texto de Kaufmann para explicar porque seus argumentos são, assim como a tese do marco temporal, edificados sobre premissas equivocadas.
Kaufmann define a referida tese como o direito que as comunidades indígenas têm de "verem demarcadas as áreas as quais ocupam e ocuparam em 05.10.1988". E assevera afirmando que "tanto é assim que a própria Constituição fixou o prazo de 5 anos (art. 67 do ADCT) para que se declarassem tais áreas como indígenas".
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico" target="_blank" rel="noopener noreferrer"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Inicialmente, é preciso retificar a definição apresentada. A tese do marco temporal preceitua que somente os povos indígenas que estavam em posse de suas terras tradicionais (e não qualquer área) em 05.10.1988 têm direito de vê-las demarcadas.  O art. 67 do ADCT, por seu turno não estipula prazo decadencial. Trata-se, tão somente, de prazo destinado a impulsionar o cumprimento pela União do dever constitucionalmente imposto pelo artigo 231. Se assim não o fosse, não teria o art. 231 sido regulamentado oito anos após a promulgação da Constituição pelo então Ministro da Justiça Nelson Jobim, que também fora constituinte. O também constituinte Alceni Guerra, responsável por mediar o debate e facilitar o consenso em torno do prazo de cinco anos, é categórico ao afirmar que tal prazo nada tem de peremptório<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Kaufmann afirma ainda que "O “marco temporal” veio (...) para trazer balizas claras para a discussão, (...) resguardar a segurança jurídica e garantir a paz no campo."
As balizas que norteiam o artigo 231 já são suficientemente claras e o texto constitucional encontra-se regulamentado pelo Decreto n. 1.775/96 e pela Portaria/Funai n. 14/96. Como mencionei em meu artigo anterior, a Constituição exige que sejam comprovados quatro requisitos para que a terra possa ser reconhecida como tradicionalmente ocupada por indígenas. Sem isso não há demarcação. Os requisitos devem ser comprovados por um Grupo de Trabalho multidisciplinar, sob a coordenação de um antropólogo.
Não há, no dispositivo constitucional em comento, qualquer cláusula indeterminada capaz de ensejar a criação de mais um critério para a comprovação da posse indígena. Prova disso, são as inúmeras terras já demarcadas sem que houvesse qualquer questionamento acerca de um marco temporal. Aliás, é preciso que se diga que tal questionamento jamais foi feito ao STF.
O “marco temporal” nasce no Poder Legislativo, elaborado por parlamentares ligados aos interesses dos proprietários de imóveis rurais, que a disputam em inúmeros Projetos de Lei e Propostas de Emenda à Constituição que visam a alterar o artigo 231<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Perdendo força no Parlamento (local onde, por natureza, a tese deveria ser debatida e disputada) ela adentra ao STF sem nunca a Corte ter sido indagada a esse respeito. Nem mesmo a petição inicial da Petição n. 3.388, trouxe a temática da suposta existência de um marco temporal.
Poder-se-ia afirmar que o termo "tradicionalmente ocupadas” seria a razão a ensejar superveniência dessa discussão. Entretanto, há muito o STF assentou entendimento de que "tradicionalidade" refere-se ao “modo” e não ao “tempo” de ocupação. E esse “modo” deve ser explicitado pela equipe multidisciplinar do Grupo de Trabalho responsável por elaborar o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação de Terras Indígenas, em conjunto com o povo indígena interessado. Trata-se de técnica antropológica sobre a qual os ministros do STF não possuem expertise. Resta-lhes indagar aos técnicos como chegaram aos resultados obtidos e, eventualmente esmiuçarem as conclusões e premissas de análise, mas não se substituírem às autoridades técnicas anulando laudos antropológicos e declarando nulas as demarcações.
Os indígenas não abandonarão as suas terras tradicionais por conta de um exercício hermenêutico que não encontra amparo ou fundamento no texto constitucional que os próprios indígenas ajudaram a escrever. Um exemplo disso é a anulação da Terra Indígena Guyra Roka, no Mato Grosso do Sul. Há seis anos a Segunda Turma do STF declarou nulidade da demarcação. Nem o fazendeiro nem os indígenas tiveram seus direitos resguardados. A situação segue a mesma de antes da enunciação jurídica. Teses jurídicas não fazem mágica. Esse é um fetiche que nós, juristas, devemos urgentemente abandonar.
Kaufmann também afirma que "desde 2009, os conflitos fundiários em questões indígenas se arrefeceram e o contexto de verdadeira conflagração no campo praticamente desapareceu".  Tal afirmação não condiz com a realidade, a começar pelo fato de que somente em 2014 a tese passou gerar efeitos concretos. Tenho entrevistado inúmeros juízes federais e analisado estatísticas a respeito da conflagração de violência no campo relacionada ao tema e, seguramente, não é possível afirmar que os números regrediram.
Houve, ademais, um aumento significativo de ações judiciais impulsionadas pela aplicação equivocada da tese pela Segunda Turma do STF a realidades absolutamente diferentes daquela da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. O desentendimento no interior do Judiciário chegou a tal ponto que houve reconhecimento de Repercussão Geral no RE 1017365. Não deixa de ser curioso que o STF tenha suscitado Repercussão Geral em uma contradição que ele mesmo criou.
Outro equívoco de Kaufmann é afirmar que o marco temporal "é claramente um excelente ponto de início para se construir melhor convivência entre indígenas e não indígenas, criando integração social e econômica entre eles de forma a assegurar, especialmente aos índios, progresso e desenvolvimento”.
<blockquote class="jota-article__eye">O "marco temporal" é só uma tese restritiva de direitos, não uma política pública de incentivo aos programas que os indígenas já vem, com muito custo, desenvolvendo. </blockquote>
Aliás, os locais de conflito territorial não podem ser parâmetro para se avaliar "progresso" e "desenvolvimento". Não obstante, até mesmo nesses locais existe interação. Indígenas prestam serviços nas grandes lavouras, não indígenas compram produtos cultivados pelos indígenas.
O autor aqui parece cair no maniqueísmo que denuncia. No chão da vida, aquele conflito que se conhece apenas pela TV se rearranja, pois as pessoas precisam sobreviver. Mas vamos lá. Se pressupusermos lucro como parâmetro para progresso, que se tome, então, como exemplos o sucesso das iniciativas do manejo sustentável do pirarucu entre o povo Paumari ou a exploração do turismo no Monte Paschoal pelo povo Pataxó, ou tantos outros que não caberiam neste espaço. A respeito da expressão "integração social" me abstenho de comentar pelo absoluto anacronismo do termo.
Engana-se, ainda, o autor ao afirmar que "a política indigenista é unidirecional e dirigida exclusivamente às demarcações" e que se deve a isso a "miséria e a marginalização dessas comunidades indígenas". 
A demarcação territorial é apenas um aspecto da política indigenista. Para além disso, há políticas voltadas para a gestão e a proteção dos territórios, para a defesa e promoção dos direitos especialíssimos dos povos indígenas isolados e de recente contato, para implementação e funcionamento de territórios socioeducacionais, voltadas a ações de gênero e geracionais; e inúmeras outras que podem ser observadas nos planos plurianuais dos órgãos que trabalham com o indigenismo.
<blockquote class="jota-article__eye">A política indigenista é uma política de Estado e, portanto, encontra-se não apenas na Fundação Nacional do Índio, mas também no Ministério da Educação, no Ministério da Saúde, e nas políticas de estados e municípios. Se há falhas na efetivação dessas políticas é porque faltam verbas e planejamento para a sua execução.</blockquote>
Para o autor “o marco temporal beneficiaria os produtores rurais(...) sem direito de defesa (...) pequenos e médios produtores rurais e assentados rurais dos programas de reforma agrária, brasileiros que precisam da terra para sobreviver e sustentar suas famílias.”
O autor volta a recair sobre discurso que tenta combater, de oprimidos e opressores, de vitimização e busca de culpados. Atenhamo-nos à técnica e tomemos o artigos  2°, § 8° e 4°  do Decreto 1775/96. Este preleciona que, verificada a presença de ocupantes não índios na área sob demarcação, o órgão fundiário federal dará prioridade ao respectivo reassentamento, segundo o levantamento efetuado pelo grupo técnico, observada a legislação pertinente e, aquele, prevê o contraditório administrativo. Logo, ninguém será "empurrado para a pobreza" ou ficará sem direito à defesa administrativa ou jurídica.
Quero, por fim, concordar com Kaufmann. É importante pautar a discussão sobre a indenização da terra aos proprietários de boa-fé. Isso, porém, é debate para o Parlamento. O tema é objeto da PEC 71/2011 que altera o § 6º do art. 231 da Constituição Federal para permitir a indenização de possuidores de títulos dominiais relativos a terras reconhecidas como indígenas que tenham sido expedidos até o dia 5 de outubro de 1988.
A enunciação de uma tese restritiva de direitos territoriais aos indígenas não é um caminho para a paz no campo. Se há problemas com a efetivação de políticas públicas aos indígenas, que se invista nelas. Se alguém crê que não há "progresso" nas terras indígenas, discuta-se com os representantes legítimos dos indígenas para ver se há concordância. Se há quem considere injusto o pagamento apenas pelas benfeitorias aos proprietários de boa fé, debata-se no Parlamento.
Substituir demarcação de terras indígenas tradicionais pela criação de reservas, como sugere Kaufmann é desconsiderar todo o debate ocorrido na Assembleia Nacional Constituinte. As reservas são figuras administrativas para serem acessadas quando não for comprovada a tradicionalidade e não a posse em 05.10.1988. Respeitemos o texto constitucional, as atribuições de cada poder constituído e, mais do que nunca, as técnicas jurídica e antropológica.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Entrevista concedida em 28 de maio de 2020.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> A esse respeito ver a tese de doutorado de AMADO, Luís Henrique Eloy. Vukápanavo. O despertar do povo Terena para os seus direitos: movimento indígena e confronto político.
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JOTA

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