Danielle Anne Pamplona

João Gabriel Archegas

Pode um Estado ser considerado internacionalmente responsável pela violação de direitos humanos causada por atos praticados por empresas privadas? Em decisão publicada no último dia 26 de outubro, <a href="https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf">mais uma vez</a>, o Estado brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos que considerou que a obrigação de respeitar e efetivar os direitos previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos não está restrita à relação de agentes estatais com as pessoas submetidas à jurisdição do Estado. Esse dever inclui também o de prevenir que agentes privados violem os direitos humanos protegidos pela Convenção, desde que o Estado não cumpra com seus encargos de garantia e proteção de direitos.
Nessa última decisão, o elemento principal para que fosse determinada a responsabilidade internacional do Brasil foi a falta de fiscalização de uma fábrica de fogos por agentes estatais, o que descumpriu a obrigação do país de regulamentar e fiscalizar atividades que podem colocar em risco os direitos humanos. É mais do que hora de compreender a relevância de estabelecer regras claras que indiquem às empresas quais as condutas que devem tomar para prevenir a ocorrência de impactos negativos em direitos humanos e como os mesmos, quando ocorrem, devem ser tratados.
As falhas do Estado brasileiro ficam cristalinas nesta última condenação, derivada de explosão numa fábrica de fogos de artifício na cidade de Santo Antônio de Jesus. Foram 60 vítimas fatais, sendo 40 mulheres e 20 crianças, das quais 19 eram meninas, a maioria afrodescendentes de baixa escolaridade que viviam em situação de pobreza.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
As condições de trabalho eram precárias, sendo exercido no mesmo ambiente em que os explosivos eram armazenados e sem a disponibilização de equipamentos de segurança, apesar do conhecimento dos proprietários da empresa da periculosidade da situação e da iminência da tragédia.
A Corte reconheceu que o Brasil é responsável pela violação dos direitos à vida e, especificamente, das crianças; pelo descumprimento das obrigações de garantir igualdade perante à lei e no ambiente de trabalho para as mulheres; e por violar as garantias e as proteções judiciais, bem como a integridade pessoal dos sobreviventes e dos familiares das vítimas.
No emaranhado de leis brasileiras, há um decreto que estabelece as <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/Decreto/D9571.htm">Diretrizes Nacionais para Empresas e Direitos Humanos</a>, indicando quais são as medidas que as empresas voluntariamente podem adotar. Ele deriva dos Princípios Orientadores da Nações Unidas para Empresas e Direitos Humanos, adotados pelo Conselho de Direitos Humanos em 2011. Muito já foi dito acerca da ineficácia de medidas voluntárias nesta seara, que caminham ao lado da promoção de auto-regulamentação de setores empresariais que, no mais das vezes, não alcançam prevenir os impactos da atividade em si, ou estabelecer mecanismos adequados para responder aos mesmos. Há, assim, obrigações que se referem aos Estados, e responsabilidades que são das empresas.
Ao Estado incumbe a obrigação de proteger os direitos humanos, inclusive de atos de empresas, como exatamente ocorreu no caso em comento. A proteção devida pelo Estado opera em termos de agir para prevenir a ocorrência dos impactos e em termos para remediá-los. Pois bem, para prevenir, deve adotar todas as medidas legais, administrativas ou de outra natureza. Não basta legislar ou criar políticas públicas, é essencial que o Estado adote medidas de fiscalização que assegurem o cumprimento de normas.
<blockquote class="jota-article__eye">A Corte reconheceu o esforço do Estado brasileiro para editar normas, mas apontou sua falha ao, ele mesmo, descumprir a legislação que prevê sua obrigação de fiscalizar atividades perigosas como a desenvolvida no caso, atividade essencial para que os direitos fossem garantidos.</blockquote>
A Corte já afirmava em seu <a href="https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_04_por.pdf">primeiro julgado</a>, que o dever de prevenção é de meio, ou seja, mesmo que resulte uma violação de direito, o Estado não será condenado se demonstrar que agiu diligentemente para prevenir a violação. Tudo isto decorre de fundamentação alicerçada nos Princípios Orientadores acima mencionados, utilizados pela segunda vez pela Corte, e, pela primeira vez, para estabelecer a profunda harmonia entre as obrigações dos Estados ditadas pela Convenção Americana e aquelas estabelecidas nos Princípios.
E ao que foi condenado o Brasil? Entre outras, a assegurar a fiscalização em fábricas de fogos de artifício; executar um plano de desenvolvimento socioeconômico especialmente destinado à população da localidade.
Determina ainda que o Estado apresente um relatório que demostre o que realizou para implementar as Diretrizes Nacionais mencionadas, especialmente no que diz respeito à promoção e ao apoio a medidas de inclusão e não discriminação, mediante a criação de programas de incentivo à contratação de grupos vulneráveis; à implementação, por parte das empresas, de atividades educacionais em direitos humanos, tudo isso em conformidade como próprio Decreto que editou. Ou seja, a Corte está, em ultima ratio, determinando que cumpra aquilo que transformou em legislação.
Fica claro, portanto, que de nada adianta editar o decreto mencionado, e não adotar medidas para que suas provisões sejam efetivamente aplicadas. O Estado pode demonstrar sua diligência especialmente cuidando de sua própria casa, ou seja, estabelecendo as regras pertinentes que devem ser obedecidas pelas empresas públicas. Não faz isso, que parece ser o menos, e evidentemente não faz o mais, que é fiscalizar a aplicação de leis existentes, ou criar outras que possam exigir que as empresas sejam diligentes em relação aos impactos que suas atividades podem ter em direitos humanos.
Falta vontade política para regulamentar as empresas quando é evidente que elas mesmas estão tateando no escuro, buscando um norte que lhes possa indicar o que, exatamente devem fazer. Como já demonstramos <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/devida-diligencia-em-direitos-humanos-no-brasil-empresarios-nao-podem-mais-ignorar-14072020">neste espaço</a>, a lei estabelecendo a devida diligência em direitos humanos de forma compulsória para empresas, que deve ser adotada em 2021 na Europa, é uma demanda das próprias empresas. A existência de algo análogo, aqui, viria a calhar no presente caso.
E a falha é generalizada, ainda que o direito internacional não enxergue qualquer especialização nas funções do Estado, o dever de proteger impõe ao legislativo que elabore leis e impõe ao executivo que estabeleça políticas públicas e regulamentos adequados. E despois fiscalize. Em momento que cada vez mais as fiscalizações que poderiam render benefícios imediatos à população, as estruturas domésticas que permitem essa atividade são cada vez mais reduzidas.  Para além de esperar pelo cumprimento das medidas dispostas na sentença, é importante estar atento a qual será o efeito que a sentença terá, já que se trata de um novo estândar no desenvolvimento da proteção jurídica interamericana sobre empresas e direitos humanos.
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O episódio 42 do podcast Sem Precedentes analisa as acusações de Donald Trump questionando a legalidade do pleito eleitoral nos EUA. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=xRgH-5h1gH8&feature=emb_title

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JOTA

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