José Eduardo Faria

Qual é o alcance dos direitos em tempos incertos de pandemia? Essa indagação foi suscitada por um dono de um bar da moda de Vila Madalena que, criticando o reingresso de São Paulo na fase vermelha, disse ter “o direito de trabalhar”, tendo sido secundado por sua clientela jovem e de classe média, que afirmou ter o “direito ao lazer”. Todos também disseram que a Constituição garante, no inciso XV de seu artigo 5º,  o direito de ir e vir – o chamado direito de locomoção.
Os argumentos foram refutados pelo poder público, sob a alegação de que (a) direitos fundamentais não são absolutos, (b) o direito à saúde é indisponível e (c) se a administração pública em suas diferentes instâncias tem a obrigação de não medir esforços para assegurar a “manutenção da vida”, como determinam os artigos 196, 197 e 198 da Constituição, inclusive tomando medidas restritivas drásticas de isolamento social, ela pode impor restrições sanitárias para evitar nova propagação do vírus.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>O alcance dos direitos é um tema clássico da filosofia política desde o século 17, quando os contratualistas resgataram postulados da tradição grega para desenvolver suas concepções de contrato social no âmbito da sociedade moderna.
Se para um liberal como John Locke o Estado era visto como mediador, que se propunha a centralizar um poder ou uma verdade, para Thomas Hobbes, por ser o homem egoísta e almejar seus interesses pela força, só um Estado capaz de monopolizar essa força conseguiria evitar a barbárie, assegurar um viver em paz entre os homens e garantir uma defesa comum.
Vistas à luz do bem comum, as restrições impostas pelo poder público ao funcionamento de bares, restaurantes e shoppings são justificáveis, na medida em que, ao conter a liberdade de ir e vir de jovens inconsequentes e insensatos, elas evitam a contaminação do resto da população. Vistas à luz de cada cidadão, essas restrições são abusivas, como se a responsabilidade pela saúde pública de todos nada tivesse a ver com as liberdades individuais.
Mais restrição ou menos restrição, mais Estado ou mais individualidade – o que deve prevalecer hoje, em tempos anormais, três séculos após as contribuições ao tema de Hobbes, Locke e Rousseau? Aqueles que aceitam maior intervenção do poder público afirmam que a liberdade não consiste na ausência de interferências, implicando “dominação” – isto é, o exercício legítimo do monopólio da força ou da violência pelo Estado.
Por consequência, se nos tempos de pandemia muitos jovens querem maximizar suas liberdades, aglomerando-se em bares, no caso da classe média, ou em pancadões, no caso dos jovens das periferias, o poder público não tem outra saída a não ser vedar que o comportamento inconsequente e insensato de alguns coloque em risco a vida dos demais – até porque, nesse caso, não haveria liberdade possível, mas uma mortandade.
Já os defensores da liberdade individual como princípio supremo refutam o argumento, alegando que ninguém tem autoridade para dizer o que cada um pode e não pode fazer. Também afirmam que crises, como a de saúde pública, não devem servir de justificativa para a afirmação de um poder desmedido, independentemente da gravidade da pandemia.
Curiosamente, essa discussão está presa a duas tradições histórico-geográficas. Uma, de caráter liberal, é a americana, já que os Estados Unidos, como já notara Tocqueville no começo do século 19, sempre teriam valorizado a liberdade individual muito mais do que a autoridade estatal. A outra tradição, de caráter republicano, é a europeia.
A transferência da soberania do povo para o poder público há tempos é algo normal na cultura política da Europa ocidental. De certo modo, isso explica, por exemplo, porque os americanos tendem a aceitar a liberação do uso de armas em nome da autodefesa e a reagir contrariamente à tributação progressiva, defendendo a hiper-responsabilização dos indivíduos, sob o argumento de cada um pode definir seu próprio destino e deve saber cuidar de si. Explica, igualmente, porque os europeus tendem a aceitar um sistema único de saúde, seguros médicos universais e previdência pública.
Na visão liberal mais radical ou extrema, a sociedade corresponderia a um conjunto de indivíduos autossuficientes, motivo pelo qual suas respectivas trajetórias de vida dependeriam basicamente de seus méritos, de seus esforços, de seus defeitos, e não de fatores socioeconômicos.
Nesta visão, ainda, a ideia de bem comum envolveria a agregação de interesses por meio do mercado. Já na segunda visão, a republicana, a vontade geral vai muito além da mera das vontades individuais, exigindo, por exemplo, intervenção de braços do Estado, seja para neutralizar eventuais impasses decorrentes da colisão entre princípios constitucionais, seja para reduzir desigualdades econômicas e sociais causadas pelo mercado.
Nesta perspectiva, se por um lado existe a liberdade de sair de casa e flanar pelos espaços públicos, por outro isso não implica a liberdade para infectar, para contaminar. Ou seja, há um sentido de responsabilidade maior que limita a própria liberdade de locomoção, como forma de defender o interesse geral – no caso, deter o avanço da pandemia.
Retomando o que disse o dono do bar de Vila Madalena no sentido de que tem o “direito de trabalhar”, e o que afirmaram seus clientes, no sentido de que têm “direito ao lazer”, todos pecam num ponto.
<blockquote class="jota-article__eye">Não percebem, por limitações reflexivas, ou não querem perceber, por egoísmo e egocentrismo, que a simples imposição da vontade de uns sobre a vontade de outros pode levar à postura arbitrária de reivindicar como liberdade a realização de atividades que põem em risco a vida coletiva.</blockquote>
A tradição republicana não se limita a restringir a interferência dos outros sobre a própria liberdade. Ela vai além, procurando viabilizar o equilíbrio entre a liberdade de cada indivíduo e a liberdade de outros.
Se para os liberais extremados os homens são livres quando não existem restrições, para os republicanos não se pode falar em liberdade enquanto as condições substantivas mínimas para seu exercício estiverem minadas por desigualdades sociais e econômicas cuja superação só pode ser obtida por meio de ações do poder público com o objetivo de criar fontes compensatórias de emprego, de corrigir, por meios fiscais, formas abusivas de consumo e de adotar programas eficientes de educação e imunização.
Essas são as fragilidades dos liberais extremados. De um lado, não conseguem aceitar que, do ponto de vista de sua condição socioeconômica, os homens não são iguais.
De outro, não conseguem perceber o alto custo social das políticas econômicas liberais que, submetendo-se à disciplina da acumulação ilimitada de riqueza abstrata, há muitos anos vêm diminuindo a capacidade do Estado de intervir na correção das distorções estruturais da sociedade, entreabrindo, no limite, a justificativa de um certo darwinismo social.
Por isso, se o poder público tem a obrigação de justificar eventuais restrições de liberdades apontando sua utilidade como medida sanitária, os cidadãos que defendem o “direito de trabalhar” e o “direito ao lazer” também têm de demonstrar que suas aspirações são compatíveis com o objetivo geral de conter a pandemia.
Para estes, não há liberdade, mas mero arbítrio, se o exercício de suas vontades reduzir os demais à impotência de estarem submetidos a uma ampliação do contágio, exponenciando o risco sanitário que a todos afeta, ainda que em diferentes graus.
Se esses cuidados mínimos forem desprezados, o termo liberdade correrá o risco de perder sentido, na medida em que será aplicável a qualquer coisa – inclusive como pretexto para governantes genocidas que a invocam para justificar o direito que a população tem de não se vacinar.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE

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JOTA

Se cuidados mínimos forem desprezados, o termo liberdade correrá risco de perder sentido, sendo aplicável a tudo

Direitos e princípios constitucionais na fase vermelha

Se cuidados mínimos forem desprezados, o termo liberdade correrá risco de perder sentido, sendo aplicável a tudo