Paulo Antonio Papini

Já falamos neste espaço, em <a href="https://www.jota.info/artigos/direito-processual-civil-inimigo-04122016" target="_blank">artigo cujo título era Direito Processual Civil do Inimigo</a>, onde procuramos expor como o sentimento de frustração para com o mau cumprimento da lei (o qual se dá por inúmeros motivos, dentre eles o gigantesco número de processos que abarrota o Judiciário) fez com que uma grande quantidade de advogados e juristas (muitos mais preocupados com likes do que com o respeito à Constituição) abraçasse a ideia da possibilidade de apreensão de passaporte de um devedor, ou a suspensão da CNH do mesmo.
Todo esse movimento tem origem com o Direito Penal do Inimigo (o qual ganha força e corpo com os ataques às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2.001). Para os defensores da linha de pensamento jurídico, o inimigo da sociedade, o criminoso, perde seu status de pessoa e cidadão e passa a ser visto como coisa. É claro que os defensores dessas teses pensam assim até que o inimigo passa a ser um familiar seu. Nos meus mais de 25 anos de atividade jurídica ininterrupta, já vi, mais de uma vez, alguns clientes extremamente reacionários, daqueles que fazem o Bolsonaro parecer um ativista do PSTU, mudarem radicalmente suas visões de mundo quando os réus, quer dizer, os inimigos eram seus filhos e/ou familiares.
Pois bem: nos últimos tempos, em que o Brasil ufana a Operação Lava Jato a qual, sistematicamente, tem violado direitos constitucionais elementares dos acusados e clama pela aprovação do pacote das 10 Medidas Contra a Corrupção, é óbvio que o Direito Penal do Inimigo não se contentaria apenas em invadir o processo civil. Ele tem vida própria, e agora (somado ao ativismo judicial) caminha para outras searas do Direito. Trataremos de algumas delas:
 Caso 1): Adriana Ancelmo é suspensa provisoriamente dos quadros da OAB/RJ – O Direito Administrativo Disciplinar do Inimigo 

A esposa do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral (PMDB), a advogada Adriana Ancelmo, fora presa na Operação Calicute da Polícia Federal.  Ocorre que afrontando totalmente o princípio constitucional da presunção de inocência, a Ordem dos Advogados do Rio de Janeiro (OAB-RJ) houve por bem decretar a suspensão (em procedimento sumário) dos seus quadros pelo prazo de 90 dias.
O mais estranho disso tudo é que a mesma OAB-RJ já decidira anteriormente pela licitude das atividades advocatícias da ex-primeira dama.
Pior que isso, o caso fora amplamente divulgado à imprensa. Ocorre que a Lei 8906/1.994 é expressa ao determinar que esse tipo de processo deva tramitar em segredo de justiça. Resta evidente, com efeito, que a decisão tem muito mais a função de atender ao clamor público por sangue (e quiçá gerar alguns likes no Facebook) do que primar pela correta aplicação da Lei.
É exatamente esse o conceito com o qual o Direito Penal do Inimigo, neste caso transposto para o Direito Administrativo Disciplinar, trabalha: a realização de um conceito particular de Justiça (melhor seria falarmos em justiçamento) pouco importando, ao caso concreto, o que a lei determina.
Noutras palavras, ainda que com um certo refinamento intelectual, e cumprindo-se (ainda que seja apenas e tão-somente um embuste) determinado rito procedimental, o julgamento em tempo recorde da advogada em questão tem um único e simples nome: realização da Justiça pelas próprias mãos.
Caso 2): Pau que bate em Ancelmo bate em Sartori – O Direito Administrativo Disciplinar do Inimigo 

O julgamento do massacre do Carandiru, no qual o relator votou pela absolvição dos policiais envolvidos (até mesmo pela impossibilidade de individualização das condutas) foi bastante polêmico; até mesmo pelo fato (inusitado) de o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ter entrado no mérito da decisão proferida pelo Júri Popular.
Contudo, o que mais chama a atenção mesmo é o fato de o desembargador relator do polêmico acórdão ser investigado no CNJ (que cada vez mais demonstra a sua vocação para a bipolaridade) pelo voto proferido. No caso concreto, o princípio do livre convencimento do juiz (ainda que o artigo 93, IX da CF e 489 do CPC exijam decisões motivadas) foi mandado às favas em nome da Justiça.
É isso mesmo. O Direito do Inimigo também é usado com frequência por progressistas e grupos de esquerda.
O irônico desse caso é que a 4ª Câmara Criminal do TJSP é carinhosamente conhecida pelos advogados criminalistas como “câmara de gás”. Noutras palavras, o desembargador em questão não é um magistrado garantista e, apesar de não sê-lo, precisará em sua defesa de um advogado que seja profundo conhecedor de direitos e garantias fundamentais.
Caso 3) Ativismo Judicial – A polêmica sobre a velocidade nas vias Marginais na Cidade de São Paulo 

A gestão do anterior prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT) foi bastante polêmica por haver reduzido abruptamente a velocidade nas Marginais dos Rios Pinheiros e Tietê (e o objeto desse artigo não é o de discutirmos o mérito dessa decisão).
O atual prefeito João Dória (PSDB) elegeu-se, dentre outros fatores, com a proposta de revogar a norma da gestão Haddad.
Assim, inconformada com a medida, a Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo ajuizou a Ação Civil Pública número 1001965-41.2017.8.26.0053 na qual se requeria, via tutela antecedente, a revogação in limine do ato. A tutela antecedente foi concedida e o magistrado de primeira instância invocou, dentre outros, o princípio da vedação ao retrocesso (espécie de carta Super-Trunfo para quem prega qualquer violação à norma jurídica em nome de um suposto bem maior), simplesmente jogando por terra o princípio da discricionariedade do ato administrativo, estimulando uma desaconselhável invasão do Judiciário na gestão de municípios (e posteriormente dos estados e da União).
Em sede de Agravo de Instrumento (2006999-42.2017.8.26.0000), o TJSP concedeu efeito suspensivo revogando a revogação. Até aí tudo bem. O curioso é que, no trecho final da liminar de segunda instância, o TJSP determina expressamente que: “o efeito suspensivo é concedido até o Reexame do Tema por esta Relatora ou da Turma Julgadora.” Traduzindo, o que a 13ª Câmara de Direito Público disse foi o seguinte: ainda que o juiz julgue procedente a Ação Civil Pública (e a liminar, ainda que em agravo de instrumento, não vincula o julgamento de primeiro grau – aliás, o próprio julgamento do recurso não tem o condão de balizar a sentença.) e conceda a tutela antecedente na sentença, a liminar somente poderá ser revogada pelo Tribunal de Justiça. Noutras palavras, os efeitos da sentença futura já foram antecipados em caráter de cognição sumária pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Sinceramente, tenho lido quase todos os artigos a que tenho acesso sobre o Novo CPC, e não sei qual o fundamento legal de tamanho disparate.
Caso 4) Poder Judiciário, com o aval do STJ, usurpa a competência do Tribunal de Ética da OAB 

Recentemente, em sede de Habeas Corpus (384.679), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça da Paraíba que proibia um advogado que supostamente enganava seus clientes de angariar novas causas.
Ainda que a norma que permita a suspensão de atividade tenha sido inserida em 2.011 no Código de Processo Penal, ela não pode ser utilizada para o caso em questão. Ocorre que o estatuto da OAB prevê [em seu artigo 70] que as punições disciplinares que imponham sanções são de competência exclusiva da própria Seccional onde fora praticada a conduta.
Neste tipo de conflito de Normas Jurídicas, o critério da Especialidade sobrepõe-se ao cronológico. Bem, não foi exatamente isso que decidira o STJ e, mais uma vez, atropelando disposição expressa do Estatuto da OAB (Lei Ordinária, cuja proteção é a função precípua daquela Corte, autointitulada: “O Tribunal da Cidadania”), no afã de fazer o correto, apenas faz aumentar a insegurança jurídica que hoje (a par de termos mais de 100.000 normas jurídicas em vigor) impera no país.
Ativismo Judicial e Direito Penal do Inimigo – Esses [não tão] adoráveis irmãos siameses
De tudo o quanto exposto, podemos inferir que Ativismo Judicial e Direito Penal do Inimigo (e suas variantes) são dois lados de uma mesma moeda. Um não existe sem o outro.
A necessidade de fazer Justiça (e quiçá ganhar likes) a qualquer custo, não importando quais normas jurídicas ou princípios constitucionais serão violados (aliás, vários ministros do STF em seus votos abertamente definem o Direito como “aquilo que os Tribunais dizem que é”), é indubitavelmente um risco ao Estado Democrático de Direito. Não nos esqueçamos da máxima de Ronald Reagan: “a Democracia está sempre a um passo da extinção.” Este estado de coisas compromete não apenas a higidez do sistema como, ao criar um padrão anômico, atenta contra a segurança jurídica, algo extremamente grave quando o país passa pela sua pior crise financeira no Século XXI.
Em suma, se o preço para livrarmos o país da corrupção e de sentenças e acórdãos – em tese – violadores da lei for rasgarmos a Constituição e utilizarmos o CNJ como um cão raivoso para amedrontar magistrados, é preferível continuarmos, por mais triste que possa parecer esta afirmação, a aceitar que eventualmente um ou outro corrupto será indevidamente absolvido por tecnicidades jurídicas e também convivermos com sentenças e acórdãos mal formulados. O que não se pode é amedrontar um magistrado, coagindo-o a sentenciar de acordo com as verdades estabelecidas por grupos de pressão, sejam eles quais forem. A democracia é o império da lei: se a lei não é respeitada, a democracia também não o é. Como já disse Sir Winston Churchill: “A democracia é a pior forma de governo que há, infelizmente não há nada melhor para por em seu lugar”.

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Direito Penal do Inimigo e ativismo judicial

Análise de quatro casos recentes