Víctor Gabriel Rodríguez

Tempos de mudanças muito rápidas, mas não se pode desistir de compreendê-las. A pandemia da Covid-19, pelas tantas vidas que ainda sacrifica, impulsiona dor e transformação moral, mas os elementos mais importantes para nosso breve estudo são seus efeitos colaterais: a digitalização, as redes e o isolamento sociais. Essa é nossa humilde contribuição inaugural para 2022: um processo de síntese para pontuar as principais tendências desta contemporaneidade digitalizada, dentro do que importa ao direito penal.
Fragmentamos essas mudanças em cinco aspectos <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, apenas, como alguma vez se dizia, para fins analíticos.
<h3>1) Produção doutrinária massiva: textos feitos para não serem lidos</h3>
Este primeiro aspecto começa com uma figuratividade, quer dizer, envolve uma ilustração. Um pequeno relato sobre o que talvez não seja da vivência de boa parte dos leitores, mas que, garanto, representa a pedra angular das transformações destes tempos.
A cena começa comigo, como professor universitário, recebendo, pelo celular, um artigo publicado em revista de doutrina; quanto ao remetente, o texto era-me enviado por sua autora, uma professora amiga e bastante competente. Em relação ao suporte, definir se o artigo se encontrava ou não publicado em uma "revista científica" demandaria discutir se o direito é ciência, mas isso não cabe aqui. Tratava-se de revista jurídica.
Agora, quanto ao conteúdo. Sobre ele, é necessário dizer que, assim que o recebi, fiz algo surpreendente nos dias atuais: interessado pelo tema, pelo título e pela autora, eu li o artigo. Repito: eu o li integralmente. E aí começam minhas observações sobre o que nos importa, porque a partir do seu layout já fazia notar a prioridade dos novos tempos: na primeira página, em maior destaque que até que o título do tal artigo, está seu número identificador, um código para marcá-lo para as agências científicas. O layout então me sinalizava que alguém como eu, leitor do texto, era interlocutor totalmente secundário para tal publicação. O texto era escrito e direcionado para uma inteligência eletrônica ou para uma rede social, não para um estudioso que quer refletir e aprender com a leitura. Mas essa realidade vai piorar, porque este relato segue.
Passados poucos dias de tal leitura, encontro a autora para uma conversa pessoal. Por internet, claro. Faço comentários para que ela note que eu li o artigo que me houvera enviado, e aproveitar para dizer que discordava de muitos pontos, já que a dialética é parte de nossa profissão. Pois bem. Ela então me mira com olhar bastante perdido e dá uma resposta como "não me recordo de nada do que está escrito nesse artigo que mencionas. Desculpe". Ela não soube me dizer, sequer em linhas gerais, o que escrevera, publicara e divulgara nas redes sociais. Mas a culpa não é dela.
Em meus tempos de juventude era vinculante um ditado algo nebuloso que versava sobre a pena a ser imposta a quem "escreveu e não leu", mas evidentemente essa é, hoje, uma norma social revogada. O ritmo de produção "cientifica" que se demanda à academia transforma a doutrina jurídica no produto final de uma ininterrupta e acelerada linha de produção, ausente qualquer pausa para sedimentação de ideias, para leitura aprofundada. Isso sem mencionar fraudes de coautoria ou plágio, tudo encaixado em uma série de templates que buscam adaptar-se aos algoritmos dos buscadores computacionais. Sim, o que se pretendia com aquele artigo, como com tantos outros, era alcançar maior número de citações em outros artigos, que tampouco serão lidos. Nada muito diferente de caçar "likes" automaticamente com um post divertido do TikTok, porém com uma aura mais acadêmica.
Esse fenômeno não passa sem efeitos ao direito penal: a oferta de doutrina é imensa, mas, como em um processo econômico inflacionário, o valor que cada artigo assume é mínimo. Com um bom uso de software, o computador minera todos os textos que apontam para o mesmo tema, porém eles são, salvo poucas exceções, inférteis para mudar a realidade: afinal, não foram redigidos para serem lidos. Bom, na minha ilustração, sequer a criadora lera sua própria cria, mas esse é um caso extremo.
A base do direito penal está minada pela falta de material de apoio de qualidade, que possa ver a "big picture", que tenha poder de ser discutido na comunidade que o aplica. É desnecessário dizer como isso pode prejudicar a produção do raciocínio jurídico como um todo, alcançando, no fim da linha, as sentenças penais, a liberdade de um indivíduo específico.
<h3>2) Os novos direitos</h3>
Tempos em que o mundo melhorou, não há dúvida. Estamos mais plurais e, mesmo que alguns sustentem o contrário, muito mais democráticos. Com razão esse despertar nos conduz a uma moral mais rígida: o maior espaço das mulheres na sociedade, a percepção das formas de violência, de racismo, de preconceitos em geral tem como caminho obrigatório, ainda que não único, a censura a comportamentos anacrônicos e abusivos. Censura social, entenda-se.
Essa nova censura se potencializou com a internet, que se fez jovial e progressista. Mas, para nosso percurso, é essencial notar que o caráter de vanguarda da internet nasce de uma inversão da atividade produtiva da mídia. Basta notar que os meios de comunicação tradicionalmente foram dominados pelas gerações mais antigas. Proprietários de jornais, de cadeias de rádio e televisão, geralmente são grupos de pessoas de vida acomodada e vinculados a algum entramado de poder político. Invertendo totalmente essa lógica, na web, são os jovens que sabem e se dispõem a produzir conteúdo. Daí, não nos enganemos: é apenas por questão de sobrevivência econômica que a mídia ordinária simula haver-se curvado aos posicionamentos progressistas das novas redes sociais. Isso é excelente em termos de transformação, mas há o risco de que essa moral aparentemente nova não seja mais que o retrocesso a valores muito mais reacionários que os vigentes. No direito penal isso é notório.
Neste, o progresso referente à conscientização sobre algumas facetas dos direitos fundamentais foi exponencial. Entretanto, um efeito reverso começa a minar garantias que nossos antepassados conquistaram com grandes esforços, para não dizer com muito sangue. A "síndrome de Adão" que acomete todos os iniciantes, de imaginar-se como os primeiros a apontar contradições e conflitos, faz com que alguns direitos liberais, apenas pelo fato de serem os mais antigos na escalada das Constituições, releguem-se a segundo plano.
Com o perdão de dizer o que parece óbvio, há que se notar que a proteção do indivíduo contra a ação opressora do Estado, apesar de ser um direito nominalmente bem antigo, está longe de ser aplicado a toda a orbe. Tentar relativizá-lo ou, como veremos, vinculá-lo a posições político-partidárias é um erro que estaríamos proibidos de cometer, mas que 2022 parece ainda inflacionar.
<h3>3) O progressismo punitivista e a cultura da denúncia seletiva</h3>
Outra ilustração, que será útil usar. Uma placa no metrô de São Paulo, no intuito de proteger crianças de ataques por pedófilos – portanto, um fim mais do que justo – diz simplesmente: "onde há fumaça há fogo: denuncie". Típico destes tempos, e imprescindível para a interpretação do direito penal, o fim justifica os meios <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
A publicidade que pede por denúncia simplesmente porque "onde há fumaça, há fogo" é um tipo de propaganda que, a nós, soaria exagerada até mesmo para um Reich de Hitler ou algum expurgo stalinista. O fato de que tenha como prioridade combater pedófilos, com todo respeito às reais vítimas desses facínoras, não muda a natureza do encorajamento à cultura da denúncia vazia. O fogo da condenação é inseparável da fumaça da suspeita, portanto qualquer investigação é dispensável.
Surpreende que as posições que se avocam como progressistas para o direito penal acompanhem essa doutrina, para regressar ao clamor pela ampliação penal, mas principalmente pela mitigação dos direitos de defesa. Algo que era monopólio da direita reacionária hoje assumiu a vanguarda das transformações, a partir de uma receita simples: soma-se a ânsia de mudar, na velocidade da internet, os comportamentos coletivos, ao encurtamento da experiência, a qual ensinaria que o direito penal não é o instrumento correto para impor padrões morais. Infelizmente, nosso Judiciário, em grande medida buscando aprovação social desde sua cúpula, é um dos atores na quebra de garantias basilares do direito penal <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, a alinhar-se ao punitivismo seletivo.
A consequência para o defensor criminal é a perda de seu posto de baluarte das liberdades <a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Regressamos assim aos tempos mais obscuros, em que o defensor era, como é hoje, identificado com o delinquente. Órgãos de classe, que deveriam ser os primeiros a zelar pela presunção de inocência, impedem inscrição em seus quadros daqueles contra os quais há indícios de cometimento de alguns delitos, não de todos. Para aqueles delitos aos quais se impõe que o direito de defesa seja mitigado, a simples acusação contra o indivíduo, "independente de instância criminal" <a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> é tida como prova de verdade, a impedir o delinquente (indefeso) de advogar pela presunção de inocência alheia. Por consequência, o direito perde seu sentido kantiano de que qualquer violação a um direito individual é uma quebra do direito mesmo, e, logo, à toda a coletividade.
Em outras palavras, a cultura da denúncia, o "speak up culture", estaria bem se destinada a todos os delitos, para todos os indivíduos. Infelizmente, não o é. Não vemos cartazes no metrô, ou nas entidades de classe, que alardeiem um "denuncie o narcotraficante do seu bairro", "denuncie o magistrado que aceita propina", "denuncie o delegado que vive com bens incompatíveis a seu salário". Ou, pior: "denuncie o político corrupto, de qualquer partido", porque, "onde há fumaça, há fogo".
A criminalidade, aos olhos do novo progressismo, está seleta e relativizada. Este é o ponto seguinte.
<h3>4) O fim do discurso anticorrupção</h3>
Os criminalistas éramos todos férreos combatentes da corrupção. Ainda que alguns poucos de nós todos – como em todas as profissões – fôssemos agentes do sistema corrupto, funcionando como elo entre o indivíduo corruptor e as autoridades venais, em nossa maioria esbravejávamos contra qualquer tipo de propina. A polarização política contaminou todo esse posicionamento, então aquela retumbante frase de que os políticos seriam "quinhentos picaretas com anel de doutor", como dizia a canção, hoje é herética no próprio meio jurídico.
O fato de que não se possa generalizar a corrupção moral dos nossos representantes na política estaria excelente se fosse motivado por uma diminuição nos escândalos de propinas e, então, pela crescente confiança nos mandatários. Infelizmente, a motivação nasce de situação diametralmente oposta: quando a mancha do suborno atingiu a grupos partidários que, por décadas, se autodeclaravam incorruptíveis, a reação do meio jurídico não foi a de expurgar os condenados, mas de relativizar o conceito.
Claro que há que se levar em conta, para isso, o gigantismo da Lava-Jato. Com um público tão amplo, quase não há operador do direito penal que não esteja vinculado a um braço dela, o que me parece excelente. Porém, nós demonstramos não saber separar, de um lado, o vínculo de interesses pessoais do, de outro, o compromisso doutrinário e a honestidade com as posições éticas que cultivamos por toda a vida. O resultado é que o debate sobre a eficácia do direito penal no combate à corrupção se transformou em uma guerra de siglas partidárias. Nestas, sabemos, ideias e conceitos jurídicos não têm lugar.
<h3>5) O Estado de coisas: classe alta e classe baixa</h3>
Foi o direito penal atingir a classe política e empresarial e então, rapidamente, as garantias de liberdade individual foram reforçadas pelas altas Cortes, ao menos no campo específico da corrupção. Se da criminalidade dos poderosos surgisse uma aplicação dos direitos humanos à classe baixa, pouco haveria para queixar-se. É processo natural das estruturas de poder, mesmo na democracia, que as transformações surjam de interesses de mais poderosos. Mas, nesta contemporaneidade, sequer isso ocorreu. Vejamos poucos aspectos:
a) A própria presunção de inocência é o direito que mais evidentemente não se estende a todos. Um escandaloso caso da cassação, pelo STF, da liminar que permitia que um músico desfrutasse dessa mesma presunção que atinge aos políticos é o exemplo mais sonante desta virada do ano <a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
b) A tortura também continua corriqueira: 2022 já nasce com várias imagens de agressões policiais que são regra na periferia, sem nenhum movimento que a aplaque; sequer a jurisprudência colabora: até onde se saiba, o Poder Judiciário mantém a posição de que o suplício para obter confissão e outras provas não é, por si, causa de nulidade. Das duas, uma: ou a anulação dos atos posteriores à ilegalidade é privilégio dos membros da classe alta, ou a tortura não significa, para o juiz, um ilícito grave <a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. Apenas um vício de procedimento, sanável, a ser apurado em autos próprios. Nenhuma das hipóteses é minimamente aceitável no Estado de Direito, mas é assentado na jurisprudência nacional.
c) Os delitos das pessoas jurídicas tampouco avançam. As empresas seguem agredindo, causando danos, até torturando, mas seus programas de compliance, que se anunciam como um instrumento de cumprimento das leis, não fazem mais do que funcionar como gestores de crise: estão preparados para pedir desculpas ao público por algum malfeito, apresentar apoucadas medidas paliativas e economicamente insignificantes e logo seguir em frente, à espera do próximo desastre <a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>. Mas com um belo discurso de paz, amor, preservação da natureza e inclusão social, quando não um selo certificador de "empresa amiga da natureza". O direito penal passa ao longe das "big companies".
Daí voltamos a nosso início: sem a experiência e a visão suficiente de mundo, os movimentos de direitos das redes sociais não se dão conta de que se agrava o hiato entre direito de classe alta e de classe baixa; tampouco notam que aprofundar esse abismo não é o mesmo que dizer que o direito penal não atinge aos ricos: é afirmar que as garantias individuais somente são concedidas a membros da oligarquia de sempre. Em minha opinião, isso soa muito pior que a antiga impunidade.
<h3>Consequências</h3>
Os bons efeitos do giro virtual dos últimos anos não se podem ocultar: construímos um mundo mais plural e moralmente inclusivo, ou ao menos estamos trilhando esse caminho. Isso é perfeito, e a educação (não o direito penal) deve ser instrumento para alçar socialmente as chamadas minorias, dando-lhes lugar e voz. Apenas, dizemos nós, há que cuidar para não infantilizar o processo. Afinal, qualquer movimento social está sob risco de ser incorporado pelas tradicionais esferas de poder, que jogam com a dinâmica social em um tabuleiro muito mais ampliado.
Mudar tudo para que nada mude, como antiga máxima da literatura italiana, é a técnica vigente para manter o direito penal a serviço dos que sempre lucrarão com a desigualdade. É nossa breve leitura das novidades que se expõem, também como dizia a canção, no museu de 2022, que acaba de abrir-nos suas portas.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> O penalista reconhecerá que o título deste texto é alusão a um trabalho de Polaino Navarrete.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Não há aqui como aprofundar no corpo do texto, mas vale notar que essa é a mesma lógica utilitarista da delação premiada. Todo o desequilíbrio dos valores da sociedade e do direito penal contam pouco, se o fim é aumentar a eficácia investigativa do Estado. A esse respeito, veja-se RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel, Delación Premiada: limites éticos al Estado, Bogotá: Temis, 2019, especialmente capítulo 03.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> O maior exemplo é a ADO 26, que judicialmente criminalizou a homofobia e transfobia. Por mais relevante que seja a causa e por mais que o acórdão supremo o negue, a decisão da maioria foi pela aplicação analógica do direito penal, em desfavor do réu. Uma conquista de séculos minada em nome do cumprimento de um mandado de criminalização, efetuado pelo Judiciário.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> O advogado criminalista defende o indivíduo contra a sociedade, então seu múnus é essencialmente liberal. Faz-se a ressalva porque, em tempos em que qualquer palavra é interpretada de modo político-partidário, não é difícil que surja a crítica de que há defensores "não liberais".
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5] </a>Súmula n.º 09/2019 pelo Conselho Pleno do CFOAB, no dia 18 de março de 2019
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Veja-se notícia em <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/fux-determina-a-prisao-dos-condenados-pelo-caso-boate-kiss-14122021">https://www.jota.info/stf/do-supremo/fux-determina-a-prisao-dos-condenados-pelo-caso-boate-kiss-14122021</a>
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Refiro-me ao Habeas Corpus STJ Número 701719 – RJ (2021/0339462-4), que diz que: "Além disso, eventual ocorrência de tortura deve ser apurada em procedimento próprio para a possível responsabilização criminal e administrativa dos agentes envolvidos, não ensejando, por si só, a nulidade do feito, pois, ainda que comprovada, não seria capaz de elidir o delito em tela. Registre-se aqui que a Magistrada determinou a extração de peças à Central de Inquéritos do MP e à Corregedoria da Polícia Civil, conforme requerido pelas defesas, para fins de apuração das supostas irregularidades". De nossa parte, frisamos que não temos vínculo profissional com qualquer caso mencionado neste texto, nem mesmo a Lava-Jato.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Refiro-me ao pedido de "desculpas" da empresa Carrefour no caso do homicídio de João Alberto, que completa um ano. Sobre o tema, há texto publicado, de nossa autoria.

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JOTA

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