Paloma Gomes

Rafael Modesto

Incluído, pela terceira vez neste ano, na pauta de julgamento do Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), o caso sobre a terra indígena Ibirama La-Klãnõ, localizada em Santa Catarina (RE 1.017.365 - Tema 1031/STF), está previsto para ser julgado no próximo dia 25. Trata-se de caso de extrema relevância não só para o povo Xokleng, que violentamente desde 1926 vem sendo alijado de suas terras tradicionais, mas também para os demais povos indígenas no país. Ao contrário do que tentam alegar os que se voltam contra os direitos indígenas, o tema não se confunde com o caso Raposa Serra do Sol pelos motivos que serão expostos abaixo.
Considerado de “importância singular” pelo presidente da Corte, o caso foi incluído na pauta de agosto após o ministro Luiz Fux assegurar, na última sessão do primeiro semestre, que daria a “prioridade que o tema merece”. A inclusão referendou o pedido de preferência feito pelo relator, ministro Edson Fachin.
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A proximidade do julgamento reacende a discussão acerca das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena à luz da do artigo 231 da Constituição Federal, matéria com repercussão geral reconhecida em decisão unânime proferida em 2019 pelo tribunal – o que demonstra inexistir pacificação para matéria.
Embora a Corte expressamente tenha considerado a imprescindibilidade de se fixar interpretação constitucionalmente adequada ao estatuto da posse indígena de terras no Brasil, em todos os seus desdobramentos, ainda há quem defenda que a matéria já tenha sido pacificada quando do julgamento do caso emblemático da terra indígena Raposa Serra do Sol, encerrado em 2009.
Argumentam que ao reconhecer a repercussão geral do caso Ibirama La-Klãnõ, previsto para julgamento na próxima quarta-feira, estaria sendo colocada em risco a segurança jurídica das decisões emanadas pela própria Corte. Este argumento considera que o acórdão da PET 3.388/RR (caso Raposa) teria fixado salvaguardas institucionais que decorrem da interpretação da Constituição e, portanto, devem ser observadas no que diz respeito a todas as demarcações de terras indígenas.
Ao contrário do que alegam os que defendem este ponto de vista, o risco à segurança jurídica decorre justamente dessa conclusão enviesada que pretendem de forma seletiva impor em sua interpretação do julgado, ao extrair excertos e sem levar em consideração o contexto em que foi proferida a decisão no caso Raposa Terra do Sol e nem a totalidade do acórdão.
Naquele caso, o objeto da ação popular era muito bem definido. Por um lado, os setores, grupos e pessoas não índias que tinham interesse nas terras indígenas defendiam que a demarcação deveria se dar em ilhas. Os indígenas e aliados, por seu turno, defendiam a demarcação de forma contínua e prevaleceu esse entendimento, anulando-se todas as posses e ocupações não indígenas. Caso ali fosse aplicado o marco temporal, aquela demarcação teria se dado em ilhas, o que de fato não ocorreu.
Vale destacar que o Pleno do Supremo, ao apreciar os declaratórios no caso Raposa, foi taxativo no esclarecimento de que a decisão proferida no caso não possuí força vinculante:
“4. A decisão proferida em ação popular é desprovida de força vinculante, em sentido técnico. Nesses termos, os fundamentos adotados pela Corte não se estendem, de forma automática, a outros processos em que se discuta matéria similar.” (Pet 3388 ED, Relator: Min. Roberto Barroso)
Contudo, mesmo que o acórdão tomado na Pet. 3388/RR vinculasse outros casos, nenhum prejuízo haveria, não fosse a perigosa ressignificação do julgado, quando da extração de apenas um conceito isolado e periférico, gerando insegurança e instabilidade jurídica.
No mesmo sentido, é elucidativa a decisão proferida pela eminente Min. Rosa Weber:
“[...]Há que se tomar com reservas, em um exame preliminar do tema, a pretensão de destacar uma dessas ‘condicionantes’ do contexto maior em que formulada, para pretendê-la incidente de forma imediata e suficiente em outra relação jurídica diversa daquela em que originariamente inserida. Se a própria inicial assume que o auxílio ao leading case é necessário, cumpre então tomá-lo na integralidade, sem olvidar sua premissa maior, explicitada no voto vencedor proferido pelo Ministro Relator antes mesmo da adição de qualquer salvaguarda”. (MS 31901 MC, Relatora: Min. Rosa Weber)
<blockquote class="jota-article__eye">Essa reinterpretação do acórdão proferido em 2009, defendida por setores que possuem interesses econômicos sobre as terras indígenas, e replicada sem maiores reflexões, ignora o conteúdo integral do próprio julgado e de outros precedentes emanados pela Corte.</blockquote>
Para estes, no julgamento de Raposa Serra do Sol, o STF teria fixado um marco temporal para demarcação de terras indígenas, no qual o direito territorial dos povos indígenas estaria atrelado à comprovação da ocupação física – e não tradicional – da terra pela comunidade na data da promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1988, o que não é o caso, já que a Corte anulou todas as posses e ocupações, tituladas ou não, existentes em muito tempo antes da promulgação da nossa Carta Política vigente.
Para o relator dos declaratórios da Pet. 3388/RR, o artigo 231 da Constituição de 1988 “reconhece um direito insuscetível de prescrição aquisitiva”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Vale ressaltar que este foi o entendimento confirmado pelo colegiado.
Ademais, no conjunto do julgado e na explicação do relator dos Embargos de Declaração, em consequência do julgamento da ACO 312/BA e das ACOs 362/MT e 366/MT, a perda do território de ocupação tradicional, nos termos do §1º do artigo 231 da Constituição, não acontece se houve retirada forçada dos povos indígenas, mesmo que a remoção tenha se dado em passado distante.
No MS nº 32.709, de relatoria do ministro Dias Toffoli, o conceito de terras tradicionais indígenas se destaca, vejamos:
“A dinâmica relacional desse grupo indígena com o Morro dos Cavalos [Guarani de Santa Catarina] não se dá apenas pela sua efetiva presença no local quando do advento da Constituição, mas sobretudo pela sua relação simbólica com a terra, da qual o grupo indígena muitas vezes se afastou pela presença dos colonizadores, sem contudo perder o vínculo com o que chama de mundo original” (MS 32.709, Rel. Dias Toffoli).
Como se vê, há precedentes no sentido de que a perda da posse só poderia ocorrer se a comunidade indígena tivesse abandonado suas terras voluntariamente e sem o desejo de retorno. No mesmo sentido, em qualquer caso, para a aferição da posse, assim como do esbulho ou do abandono do território, é imprescindível a sua demonstração por meio da ciência antropológica, como expresso pelo ministro Ricardo Lewandowski em seu voto na ACO 366/MT.
Não rara em nosso país tem sido a propagação de informações distorcidas e sem lastro de veracidade. Diferentemente do que é alegado como a principal tese defendida por setores contrários ao Recurso Extraordinário em pauta, a Suprema Corte ainda não pacificou a matéria sobre a posse das áreas de tradicional ocupação indígena.
As instituições, apesar de todos as ameaças e achaques, se mantêm fortes e o judiciário é o grande responsável pela sua manutenção e estabilidade. Por isso mesmo que, apesar da tentativa de imposição de uma tese para sustentar um setor economicamente privilegiado, em detrimento dos direitos originários dos povos indígenas, a Corte tem como fonte principal não os excertos extraídos de contexto e ressignificados a partir do julgado na Pet. 3388/RR, mas o texto da Constituição e a vontade do constituinte originário, que abrigou os povos indígenas, sua pluralidade e diferenças.
Em tempos sombrios, a segurança jurídica se materializa com respeito à Constituição Federal e à democracia, sobretudo com instituições fortalecidas e um judiciário independente.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Acórdão dos Embargos de Declaração na Pet. 3388/RR, fls. 24-26.

Direito indígena no STF: a segurança jurídica de que carecem os povos

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JOTA

Povo Xokleng vem sendo violentamente alijado de suas terras tradicionais desde 1926

Em pauta na Corte no dia 25 de agosto, tema deve ser analisado à luz da Constituição e da vontade do constituinte originário