Pandemia

Direito empresarial em tempos de isolamento

Por que as iniciativas adotadas no setor financeiro devem ser complementadas por reformas na legislação falimentar

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Crédito Pixabay

Já não é segredo que as medidas sanitárias rigorosas, porém necessárias, adotadas em diversos países para conter o avanço da Covid-19 terão impactos econômicos e sociais dramáticos. A queda drástica no consumo tem provocado redução generalizada de receitas em quase todos os setores.

Os próximos capítulos dessa história podem ser antecipados e não parecem promissores: muitas empresas viáveis no médio e no longo prazo vão acabar sem dinheiro em caixa para pagar fornecedores e outros credores, o que pode gerar um efeito dominó de inadimplementos e falências. As medidas já adotadas no setor financeiro no Brasil podem reduzir a extensão desses problemas. Agora, elas precisam ser complementadas por alterações na legislação falimentar.

A questão central a ser considerada é que a saída de cena de empresas em razão da atual pandemia é indesejável do ponto de vista econômico e social. Os problemas de caixa generalizados decorrem de um fato circunstancial e devem acabar em um futuro próximo. Quando isso ocorrer, os negócios que hoje estão asfixiados serão capazes de voltar a produzir bens e serviços indispensáveis para seus compradores, manter empregos, pagar tributos e quitar seus débitos.

Ainda assim, pode ser que um dos seus credores prefira a via da falência a esperar pela retomada econômica. E a legislação em vigor lhe dá o direito de exercer essa preferência quando seu devedor descumpra obrigações[1].

Obviamente, isso não interessa a mais ninguém. Trabalhadores, fornecedores, consumidores, investidores e outros credores, todos sairiam prejudicados. Não é à toa que muitos países têm se mobilizado para impedir uma onda de quebras de empresas viáveis[2].

No Brasil, os esforços nesse sentido foram iniciados pelo Banco Central (BC). Ao abrir linhas de assistência financeira de liquidez, reduzir requerimentos de capital anticíclicos, relaxar regras de provisionamento e recolhimento compulsório, entre outras medidas, o BC agiu tempestivamente para evitar que a crise contagiasse o sistema financeiro.

Em um segundo momento, reconheceu-se que aquelas medidas não seriam suficientes para que empresas não financeiras conseguissem acessar ou renegociar crédito bancário. Isso motivou a abertura de linhas de crédito extraordinárias custeadas com recursos fiscais, especialmente pelo BNDES.

Contudo, há questões ainda em aberto. O resgate público pode não alcançar volume suficiente para – ou pode não chegar a tempo de – evitar quebras indesejáveis.

As pequenas e médias empresas (PMEs) enfrentam situação especialmente preocupante. Além de ter pouco poder de barganha para aliviar suas contas por meio da renegociação de contratos com credores, elas têm menos dinheiro em caixa – estima-se que, em cenários adversos, possam resistir, em média, por pouco menos de um mês.

Além disso, têm poucos bens para oferecer em garantia e dispõem de menos informações contábeis e financeiras que permitam estimativas precisas do seu risco, o que dificulta a obtenção de crédito. Sociedades empresariais com capital pulverizado, com seus muitos credores, também são um grupo de risco, por enfrentarem obstáculos para renegociar contratos com contrapartes diversas[3].

Diante dessas circunstâncias, é preciso administrar um terceiro remédio para enfrentar a fase aguda da crise. Ele consiste na alteração da legislação falimentar e de leis que possam estar relacionadas à insolvência empresarial.

Em outros países, as respostas cogitadas ou já executadas[4] nesses campos compreendem: (i) a suspensão do dever legal de administradores de declaração de autofalência – nas jurisdições em que esse dever existe; (ii) a suspensão do direito dos credores de requerer falência do seu devedor ou de exigir a restituição de bens, a menos que sejam capazes de demonstrar que os problemas financeiros do devedor não estejam relacionados à pandemia do coronavirus; (iii) o tratamento especial de credores que resgatem empresas durante a crise (iv) a suspensão da vigência de cláusulas ipso facto, que dão a uma parte o direito de rescindir contratos diante de eventos que indiquem a insolvência da sua contraparte; e (v) a extensão de prazos de vencimento de títulos de dívida ou a imposição de moratória[5].

Como o objetivo das reformas propostas é evitar quebras em razão da Covid-19, as regras dela derivadas precisam ser limitadas temporalmente e não devem ser aplicadas quando se demonstre que as adversidades enfrentadas por determinado devedor não estão relacionadas à atual pandemia[6].

A adaptação de tais medidas à legislação brasileira será um passo importante para reduzir os impactos econômicos e sociais da Covid-19.

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[1] Ver os arts. 94 e 97 da Lei n. 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. A piora de indicadores financeiros de uma empresa, como o seu nível de endividamento, também pode ser um gatilho para pedidos de falência.

[2] Gurrea-Martínez, Aurelio. Insolvency Law in Times of COVID-19 (March 27, 2020). Ibero-American Institute for Law and Finance, Working Paper 2/2020. Disponível em SSRN: https://ssrn.com/abstract=3562685.

[3] Como observaram Luca Enriques, Kristin van Zwieten e Horst Eidenmüller, em https://www.law.ox.ac.uk/business-law-blog/blog/2020/03/covid-19-global-moratorium-corporate-bonds.

[4] Ver https://www.ceril.eu/news/ceril-statement-2020-1 e Gurrea-Martínez, Aurelio, op. cit.

[5] Na forma e pelas razões expostas por Enriques et al, op. cit.

[6] Como propõe Gurrea-Martínez, Aurelio, op. cit.