Fabricio Trindade de Sousa

Com o advento dos próximos eventos esportivos no Brasil, foram editadas normas, em março de 2016 (Medida Provisória 718 e o Decreto 8.692), que tratam de diversos temas afetos aos Jogos Olímpicos, Paraolímpicos e ao desporto nacional. Neste contexto, foi criada a Justiça Desportiva Antidopagem – JAD, com competência para julgar violações a regras antidopagem e, contudo, aplicar as infrações. No entanto, na visão de diversos especialistas que atuam no ramo, a criação do órgão especializado implica em alguns equívocos amparados na legislação. É uma tentativa de intervenção do Estado no esporte, devendo ser peremptoriamente rechaçada pelo Congresso Nacional quando do exame da Medida Provisória.
Composta por um Tribunal e uma Procuradoria e dotados de autonomia e independência, a entidade tem também poder de homologar decisões proferidas por organismos internacionais, decorrentes ou relacionadas a violações às regras antidopagem, conforme se afere da redação do artigo 55-A na Lei 9.615/98, também conhecida como Lei Pelé.
No âmbito dos estudiosos do Direito Desportivo, a JAD recebeu a alcunha de Tribunal Único. Isso porque até o advento da medida provisória, a competência para julgamento dos casos de doping era dos Tribunais de Justiça Desportiva de cada modalidade, subsistindo tal competência até “entrada em funcionamento da JAD”, nos termos do artigo 55-B da Lei Pelé.
O anúncio do Tribunal Único ocorreu em reunião convocada pela Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem – ABCD, no dia 18/02/2016. Na oportunidade, diversos advogados, peritos, auditores e procuradores de Tribunais de Justiça Desportiva apontaram, amparados na legislação nacional e na normatização internacional, os equívocos no então projeto de criação da Corte Única de dopagem.
O primeiro equívoco reside na inconstitucionalidade do Tribunal Único, consubstanciado na afronta à autonomia das entidades desportivas quanto à sua organização e funcionamento, garantia do inciso I do artigo 217 da Constituição Federal. A intervenção estatal é manifesta, não apenas na criação do Tribunal em si, mas na definição da participação de representantes do Poder Executivo no Tribunal, na indicação dos representantes de entidades de administração do desporto e de entidades sindicais pelo Conselho Nacional do Esporte – CNE (órgão do Ministério do Esporte), bem como na nomeação dos membros pelo Ministro de Estado do Esporte, conforme artigo 7º do Decreto n.º 8.692/16.
No modelo vigente (os STJD’s continuarão funcionando, independente da existência do Tribunal Único e mesmo na remota hipótese de reconhecerem a incompetência para o julgamento dos casos de doping) os Tribunais são formados por nove membros, indicados pela entidade de administração do desporto, pelas entidades de prática desportiva, por atletas, árbitros ne pela OAB. A mera indicação, observados os pressupostos de notório saber jurídico e conduta ilibada, já é apta ao exercício do mandato, não sendo passível de chancela ou avaliação para posterior nomeação.
Na prática, a autoridade responsável pelo controle de dopagem, também será responsável pela denúncia e pelo julgamento do atleta. Isso porque, conforme Decreto 7.784 de 7 de Agosto de 2012, a ABCD compõe a estrutura organizacional do Ministério do Esporte. O Conselho Nacional do Esporte, responsável pela indicação dos membros do Tribunal, é, nas palavras do sítio do Ministério do Esporte, “um colegiado de assessoria ao Ministro do Esporte” e a nomeação dos membros ainda passa pelo crivo do Ministro do Esporte.  Impossível cogitar de autonomia e independência.
Denota-se, com naturalidade, que a inconstitucionalidade do Tribunal Único não se limita à afronta ao artigo 217, mas também às garantias do devido processo legal e da ampla defesa, consubstanciadas nos incisos LIV e LV do artigo 5º da Constituição Federal, sem prejuízo de outros.
O segundo equívoco reside no desprezo ao notório saber jurídico como pressuposto para participação no Tribunal. É difícil explicar o óbvio, mas me parece irrefutável admitir que a atividade de julgar pressupõe formação jurídica.  Penso que ninguém confiaria a defesa de seus interesses, perante um Tribunal, a um médico. Relevante destacar que o §4º do artigo 55 da Lei Pelé permanece vigente, disciplinando que os membros dos Tribunais de Justiça Desportiva devem ser bacharéis em Direito ou pessoas de notório saber jurídico, e de conduta ilibada.
O terceiro equívoco reside na criação do Tribunal Único sem qualquer justificativa técnica que o legitime. Sem me esquivar do relevante debate sobre a necessidade do constante aperfeiçoamento e especialização dos profissionais envolvidos com os casos de doping, não há um dado concreto que aponte a ineficácia do modelo vigente. Neste particular, ilustrativamente, chamo atenção para a carta da FIFA, enviada ao Ministério do Esporte, em março do corrente ano, em que aponta que “em 2014, o Prof. Soléra, da Confederação Brasileira de Futebol, juntamente com uma equipe de 50 Oficiais de Controle de Doping, conclui e administrou 4.842 controles de doping dentro e fora de competições, de maneira eficiente e efetiva em termos de custos.[...]Assim como acontece nos controles antidoping da FIFA, a Confederação Brasileira de Futebol somente utiliza kits de Berlinger, sendo as mostras analisadas em laboratórios com certificação WADA. Além disso, de acordo com o Prof. Soléra, a CBF testa todas as partidas da Série A e 85% das partidas da Série B – níveis que revelam um trabalho extraordinário e excepcional.”
A ABCD tem desenvolvido um relevante papel na educação dos atletas e na melhoria dos procedimentos para realização do controle de dopagem. A perenidade deste trabalho resultará, naturalmente, numa aproximação salutar com as Federações e Confederações, repercutindo, não tenho dúvida, no aperfeiçoamento e/ou especialização dos membros dos Tribunais de Justiça Desportiva.

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Direito em Jogo - Justiça Desportiva Antidopagem

Uma intervenção estatal descabida no esporte