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Direito e psicanálise nos bastidores da crise

A negação da verdade e os mecanismos de defesa

Sigmund Freud, 1926. Crédito: Pixabay

A psicanálise pode ter muito a ensinar aos profissionais do Direito. Afinal, “toda a trama jurídica e judicial gira em torno de desejos, que são determinados muitas vezes pelo inconsciente”, como bem apontou Rodrigo da Cunha Pereira. Não que todos precisem mergulhar nas águas turvas da investigação do inconsciente (ou mesmo do subconsciente)[1], mas se permitir molhar os pés pode se revelar uma experiência transformadora.

O próprio pai da psicanálise, Sigmund Freud, desde cedo se embrenhou pelas matas densas do Direito quando, em 1906, proferiu a conferência A Psicanálise e a Determinação dos Fatos nos Processos Jurídicos, na qual sugeria a possível eficácia do método conhecido como Experiência de Associação.

“Estamos cada vez mais convictos da falta de fidedignidade das declarações feitas por testemunhas, sobre as quais, entretanto, se apoiam tantas condenações nos tribunais”, argumenta o médico vienense. “Esse fato levou-os, futuros juízes e defensores, a se interessar por um novo método de investigação, que se propõe a induzir o próprio réu a estabelecer sua culpa ou inocência por meio de sinais objetivos.”

Posteriormente, escritos como Totem e Tabu (1913) e Moisés e o Monoteísmo (1939) comprovaram o interesse de Freud pelas regras da lei. Só muito tempo depois é que Lacan irá, no livro 20 do seu Seminário, discutir ainda mais à fundo os laços entre as duas áreas.

Da mesma forma que aconteceu com Freud e Lacan, juristas também foram atraídos pelo universo psicanalítico a ponto de darem suas opiniões. É o caso de Albert Ehrenzweig, autor do clássico Psychoanalytic Jurisprudence (1971) e Hans Kelsen, que faz referências às teorias freudianas em livros como O Conceito de Estado e a Psicologia Social (1922) e Teoria Geral das Normas (1979).

Nessa intersecção, merece relevo o estudo dos Mecanismos de Defesa: ações por meio das quais a nossa mente busca diminuir manifestações que possam colocar em risco a integridade do nosso “ego” (nos fragilizar a ponto de não conseguir lidar com situações consideradas desconfortantes ou mesmo ameaçadoras). São operações de proteção para assegurar conforto e segurança ao indivíduo.

Introversão, projeção, sublimação, compensação e até mesmo o humor, são exemplos de mecanismos de defesa comumente utilizados. Mas entre eles, um nos chama a atenção neste momento de crise humanitária: que é a negação (Die Verneinung).

Em A Negação[2] (1925), Freud discorre sobre o assunto de modo pioneiro: “Na interpretação tomamos a liberdade de desconsiderar a negação, extraindo o puro conteúdo da ideia. É como se o paciente tivesse dito: ‘Na verdade foi minha mãe que me ocorreu com relação a essa pessoa, mas não tenho a menor vontade de admitir essa ideia.” No entanto foi Anna Freud, sua filha e sucessora, quem melhor explicou como os mecanismos de negação operam.

No livro O Ego e os mecanismos de Defesa, publicado em 1946, Anna divide a negação em “negação por palavras e atos” e “negação por fantasia. Pai e filha destacam que a negação é um dos mais primitivos mecanismos de defesa (e um dos mais ineficazes), ao mesmo tempo em que é imprescindível para a sobrevivência emocional de alguns.

Negar a realidade é buscar o caminho mais fácil para se proteger contra situações que podem gerar dor, constrangimento ou sofrimento. A negação dos fatos consolidados e empiricamente comprovados (dados da realidade), a esquiva de enfrentamentos desagradáveis e a criação de falsas situações para evitar o real, são fatores presentes neste mecanismo. No entanto, fugir à realidade é tentar caminhar em areia movediça.

Dito isso, é possível concluir que aqueles que negam a ocorrência do holocausto durante a Segunda Guerra Mundial, que negam a vigência de ditaduras ocorridas nos países da América Latina, que afirmam que a terra é plana, ou que determinadas patologias – classificadas como graves pela OMS – “são meros resfriados”, estão apenas exercendo o seu mais primitivo mecanismo de defesa, especialmente porque possuem alguma carência ou dificuldade de lidar com a rejeição e com suas próprias emoções.

Ainda que separadas por um vasto campo diferencial, o diálogo entre Direito e Psicanálise pode nos ajudar a entender a importância do compromisso com a realidade e nos ensinar sobre as responsabilidades e atitudes dos líderes e de pessoas comuns em tempos tão incertos; além de dar insights e indícios sobre os caminhos a trilhar e, principalmente, por quais deles não devemos seguir.

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[1] Na psicanálise ortodoxa, é muito comum fazer distinção entre “consciente”, “subconsciente” e “inconsciente” (há autores que não fazem, de fato, esta distinção, e trabalham apenas em dois campos: consciente x inconsciente).

[2] Ainda hoje há certa discussão sobre as traduções dos conceitos freudianos pelo mundo. “Die Verneinung”, na tradução literal seria “a negação”; no francês também foi traduzido na mesma linha: “La négation”. Mas, no português, o título foi originariamente traduzido por “A negativa” (Freud, 1925/1969); somente mais adiante é que passaram a usar “A negação” (Freud, 1925/2011); este mesmo problema de tradução ocorreu na língua inglesa (que traz a distinção entre “to negate” e “to deny” (que é uma forma de diferenciar o termo Verleugnen).