“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” Esse é um dos ensinamentos contidos no “Livro dos conselhos de El-Rei Dom Duarte”, que reúne cartas escritas na primeira metade do século 15, endereçadas a um dos monarcas da dinastia de Avis.
A frase, posteriormente, tornou-se ainda mais célebre, por ter sido reproduzida pelo escritor português José Saramago na epígrafe da obra “Ensaio sobre a cegueira”.
O aludido conselho, embora tenha sido originalmente dirigido à monarquia, é, de igual modo, propício para as manifestações de poder, em tempos republicanos.
Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal (STF), no exercício do seu poder jurisdicional, terá oportunidade de o concretizar, reparando em uma relevante questão jurídica que ainda não foi percebida pela Corte.
O tribunal apreciará a ADI 2325 e julgará se é constitucional a restrição estabelecida pela Lei Complementar 102/2000, ao vedar o aproveitamento de crédito de ICMS na aquisição de energia elétrica, apenas permitindo esse direito a quem a revende; utiliza em operação de exportação; e consome no processo de industrialização.
O direito de crédito na entrada de bens tributados pelo ICMS está consagrado no artigo 155, § 2º, inciso 2º, da Constituição, que estabeleceu que o imposto será não cumulativo, garantindo-se ao contribuinte o direito de compensar o ICMS devido nas saídas que promove com o crédito referente ao imposto que incidiu sobre os produtos e serviços que adquiriu.
A não cumulatividade, ao permitir a dedução do imposto exigido na etapa anterior, tem a finalidade de evitar o acúmulo das exações tributárias que incidiram nos sucessivos estágios da cadeia econômica.
O STF já decidiu, em alguns precedentes[1], que a lei complementar pode restringir a não cumulatividade do ICMS, havendo, dessa forma, uma equivocada sinalização, por parte do tribunal, de que é uma opção do legislador escolher se dará ou não direito amplo de crédito na aquisição de energia elétrica.
No entanto, considerando que o julgamento da ADI 2325 terá natureza vinculante e efeito erga omnes, é tempo de lançar luz sobre uma situação que jamais foi analisada pelo STF: a inconstitucionalidade do critério do consumo na industrialização para determinar o direito ao crédito de ICMS na aquisição de energia elétrica.
Pelo menos três razões comprometem a constitucionalidade desse parâmetro escolhido pela LC 102/2000.
O primeiro motivo é a incompatibilidade entre o critério utilizado pela aludida lei complementar e a materialidade do ICMS. A Constituição prevê como medida de diferenciação, para pagamento do imposto, a venda de mercadoria e a prestação de serviços de comunicação e de transporte intermunicipal. De igual modo, assegura ao contribuinte o direito de compensar o ICMS que incidiu nas operações e prestações anteriores.
É vedado ao legislador adotar, para fins de delimitação da não cumulatividade do imposto, um discrimen desconexo com aquele que foi adotado constitucionalmente para sua cobrança, sob pena de ofensa ao dever de coerência sistêmica decorrente do princípio da igualdade[2].
Não se pode exigir, para gerar direito ao crédito de ICMS, a utilização, em atividade industrial, da energia elétrica adquirida, considerando que a atividade econômica que é gravada pelo imposto é sobretudo o comércio, que não pressupõe processo de transformação do produto. Essa exigência, a bem da verdade, poderia até ser compatível com o IPI, que requer a industrialização, mas não com o ICMS.
A segunda inconstitucionalidade da LC 101/2000 se revela diante da ofensa à neutralidade tributária, um dos desdobramentos do princípio da livre concorrência (Art. 170, IV, da Constituição).
Por força da neutralidade tributária, o Estado, no exercício das competências tributárias, tem a obrigação de não causar desequilíbrio na concorrência, mantendo-se imparcial diante de agentes econômicos que competem em determinado mercado[3].
Essa neutralidade, no campo da tributação do consumo, deve ser compreendida como o tratamento igualitário que deve ser assegurado aos bens e serviços quanto à cobrança de tributos, independentemente da sua origem e do número de estágios que exista entre a produção e o consumo. Ela permite que o agente econômico escolha concentrar todas as atividades produtivas em uma única etapa da cadeia econômica ou se dedicar a apenas um dos estágios do processo de produção, sem que essa decisão seja um fator que influencie na tributação suportada[4].
A LC 102/2000, ao eleger o consumo da energia elétrica no processo de industrialização para permitir o aproveitamento de crédito do ICMS, instituiu um privilégio fiscal que favorece os agentes econômicos que têm capacidade de consolidar em uma só empresa atividades de indústria e comércio, pois eles podem se apropriar do crédito do ICMS relativo à aquisição de energia elétrica, enquanto os competidores que apenas comercializam a mesma mercadoria, não[5].
Promove-se, desta forma, uma tributação desigual para contribuintes que vendem o mesmo produto e praticam o mesmo fato gerador do imposto, sem que haja justificativa constitucional para essa diferenciação, gerando um ilegítimo desequilíbrio concorrencial.
Nesse contexto, não há liberdade de formatação da cadeia produtiva, tendo em vista que a quantidade de etapas existente entre a produção e o consumo passa a ser um fator relevante na tributação do ICMS, estimulando a integração vertical.
A terceira inconstitucionalidade, que decorre da segunda, é que, ao criar um distúrbio na concorrência, a legislação enfraquece o próprio mercado interno, que é patrimônio nacional e deve ser incentivado para viabilizar o desenvolvimento socioeconômico (Art. 219 da Constituição).
Desta forma, o STF, olhando, vendo e reparando a distorção promovida pelo legislador no sistema tributário, terá oportunidade de restabelecer o estado de constitucionalidade, dando à Lei 102/2000 interpretação conforme a Constituição, para reconhecer o direito ao crédito de ICMS àqueles que utilizam a energia elétrica no processo de comercialização e na prestação de serviços tributáveis pelo imposto.
[1] AI 766168 AgR, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 20/12/2019,; ARE 777449 AgR, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 21/09/2018; ARE 710026 ED, Relator(a): LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 07/04/2015.
[2] Sobre o dever coerência sistêmica, vide: SCHOUERI, Luís Eduardo. ISS sobre a importação de serviços do exterior. Revista Dialética de Direito Tributário, v. 100, 2004, p. 44. ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. 3ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 134 e 135.
[3] Cf. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Obrigação tributária acessória e limites de imposição: razoabilidade e neutralidade concorrencial do Estado. Teoria geral da obrigação tributária–estudos em homenagem ao Professor José Souto Maior Borges. São Paulo: Malheiros, p.731, 2005. Cf. ELALI, André. Algumas considerações sobre neutralidade e não-discriminação em matéria de tributação. Revista Tributária e de Finanças Públicas, v. 85, p. 26, 2009.
[4] Cf. MOREIRA, André Mendes. Neutralidade, valor acrescido e tributação. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 29.
[5] Cf. MIRANDA, Túlio Terceiro Neto Parente. Não cumulatividade e neutralidade fiscal: impossibilidade de restringir o direito ao crédito de ICMS na aquisição de energia elétrica. In: Schoueri, Luís Eduardo; Barreto, Paulo Ayres; Moreira, André Mendes. (Org.). Tributação do Consumo. Belo Horizonte: Arraes Editores, p. 780, 2021.