Renê Morais da Costa Braga

Thais de Bessa Gontijo de Oliveira

Para muitos, a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) foi acompanhada do sentimento de estar desprevenido. E não nos referimos à odisseia das inúmeras alterações do texto legal antes mesmo de sua entrada em vigor, ou aos imbróglios sobre a data de início da vigência, mas à inquietação sobre a matéria em si.
Uma boa hipótese sobre a razão para a sensação de ser pego desacautelado pela LGPD é a de que esse diploma normativo apontou para o elefante na sala. De repente, não é mais possível ignorar os impactos da Ciência da Computação e da Data Science no mundo jurídico nem o quanto a vida em sociedade é impactada pelo tratamento de dados. A LGPD anuncia em alto e bom som que esse é um assunto que diz respeito à toda coletividade e que o Direito não ficará alheio aos influxos da Ciência de Dados.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Aos poucos, a tecnologia da informação se impõe, e é seguro dizer que até mesmo funções centrais e tradicionais do Estado, como a produção normativa, sofrerão alterações. Ainda que tal cenário se mostre muito provável, deve-se evitar as já desgastadas utopias, distopias ou outros lugares comuns do exercício da futurologia jurídica.
Para evitar tais armadilhas, é sempre útil atentar-se para compromissos já assumidos pelo Estado Brasileiro perante organizações internacionais e políticas públicas já implementadas, uma vez que estes, se não preveem o futuro, pelo menos apontam para uma direção mais concreta.
Nesse sentido, chama atenção a Declaração sobre Inovação no Setor Público, instrumento da OCDE datado de 2019 e do qual o Brasil é signatário. O documento aponta que as nações que aderiram aos compromissos que compõe a declaração devem, entre outras ações, “chamar a atenção e apoiar a inovação que já está ocorrendo”, “apoiar a exploração, iteração e testes” e “cultivar novas parcerias e envolver vozes diferentes”.
<blockquote class="jota-article__eye">Destacou-se essas três ações por terem relação direta com as iniciativas de rule as code (“regras como código” em tradução literal da expressão inglesa ou codificação das regras – codage des règles – na expressão francesa), apontada pela OCDE como uma das principais tendências de inovação no setor público em 2019<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.</blockquote>
A iniciativa de rule as code pode ser entendida como um conjunto de propostas de melhoria normativa por meio da concepção de normas jurídicas legíveis por máquina. Para os juristas habituados à práxis jurídica tradicional o conceito pode parecer de difícil de compreensão, mas trata-se de prática exitosa em vários países (com destaque para Nova Zelândia, Austrália, França e Canadá).
A inovação que já está ocorrendo há décadas
Buscar, ler e interpretar textos legais, eis a metodologia tradicional de pesquisa do jurista. Evidentemente, como sabe todo advogado, esse processo é enriquecido pela busca de precedentes, o que pode ser realizado de forma manual ou utilizando-se de um computador, o que representa um ganho considerável em eficiência e eficácia. Assim, novas tecnologias computacionais mudaram a própria pesquisa jurídica e atividade judiciária.
O filme “Suprema”, dirigido por Mimi Leder, narra a história de Ruth Bader Ginsburg, segunda mulher a ocupar vaga na Suprema Corte norte-americana. O enredo aborda episódio que se passa no início da década de 1970 quando a então jovem advogada defende a superação do entendimento de que a discriminação com base no sexo seria constitucional.
No caso, os Procuradores do Estado que defendiam a posição contrária construíram o argumento de que a discriminação era prevalente na legislação e que a superação do precedente representaria uma mudança social radical. Para demonstrar o argumento, lançaram mão dos supercomputadores da IBM, máquinas que ocupavam salas inteiras e que eram capazes de “ler” as normas e indicar milhares de normas que previam tratamento desigual com base em sexo em um enorme dossiê.
Evidente que a dramatização serve para enaltecer o trabalho de Ginsburb e sua equipe que, analogicamente, contesta o enorme dossiê com papel e caneta. Não obstante, a passagem é interessante para nos fazer refletir sobre o que significa dizer que normas são “legíveis por máquina”.
Se já na década de 1970 os computadores da IBM já trabalhavam “lendo” normas e auxiliando o trabalho de advogados, qual seria, então, a grande inovação do movimento rule as code?
Apoiar a exploração, iteração e testes
A principal inovação da abordagem rule as code é a mesma que separa os conceitos de digitalização e transformação digital. Enquanto os computadores da IBM automatizavam uma operação já empregada de consulta (com inegáveis ganhos de eficiência), a transformação digital representa uma efetiva disrupção nos processos em função da aplicação de tecnologias digitais.
Em obra denominada “Cracking the code: rulemaking for humans and machines”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) resume a iniciativa de rule as code como a proposta de criar versões legíveis por máquina para determinados tipos de normas governamentais que devem coexistir com a versão em linguagem natural.
<blockquote class="jota-article__eye">Portanto, a iniciativa defende que, desde a concepção de normas ou políticas públicas, todo comando prescritivo seja transcrito também em linguagem de programação.</blockquote>
A exigência da transcrição de normas em linguagem de programação desde sua concepção traria diversos ganhos ao processo de elaboração normativa. De início, a redação da norma em mais de uma linguagem aumenta o esforço descritivo necessário uma vez que o mesmo comando é descrito em duas linguagens, o que diminui a possibilidade de ambiguidades e/ou antinomias, além de aumentar as possibilidades de compreensão das regras pelos destinatários.
A codificação das regras também possibilitaria a implementação de soluções automatizadas ou guiadas por inteligência artificial, o que é particularmente útil em segmentos da sociedade em que a atuação reativa do Estado já não consegue acompanhar a velocidade das transações. Atualmente, nem todos os comportamentos que precisam ser regulados pelo Estado são humanos, o que atrai a necessidade de mecanismos de regulação também não humanos (basta lembrar da atuação de bots na Bolsa de Valores).
Outro benefício da codificação de regras estaria na facilitação de medidas de compliance, principalmente pela automatização de processos e, também, pelo aumento das possibilidades de compreensão das normas.
Por fim, mas não menos importante, a codificação de regras facilita a realização de testes e modelagem com maior qualidade, utilizando metodologias de simulação. Tal iniciativa demonstra, ainda, maior cuidado e dispêndio de energia no alinhamento entre intenção e resultados.
A possibilidade de realização de tais testes representa maior preocupação com a implementação das normas e, portanto, zelo adicional com todos os aspectos que demandam atenção para que uma norma seja eficaz
Ressalte-se, no entanto, que o movimento de rule as code não defende a substituição do processo legislativo normal pela atividade de programação. Os parlamentares continuam com a função de discutir e aprovar as normas em linguagem natural, que, aliás, continuam sendo a principal referência. Não obstante, a transcrição da norma em forma codificada e sua testagem antecipa o aparecimento de problemas e possibilita a melhoria da qualidade das normas.
Nesse contexto, entende-se por “testagem” a descrição de um cenário, dos comandos concebidos para tal cenário e dos resultados esperados. O objetivo é simular se os comandos funcionam para atingir o resultado esperado. Ao transcrever esses cenários em linguagem de programação, torna-se possível automatizar essa testagem ou mesmo facilitar ambientes de simulação.
Cultivar novas parcerias e envolver vozes diferentes
Retomando o último compromisso assumido pelo Brasil na já mencionada Declaração sobre Inovação no Setor Público, é imperioso que o setor público crie pontes com diferentes atores para aumentar a possibilidade de inovar.
Para tanto, é preciso que haja ambientes que possibilitem a exploração de novas abordagens ao processo de elaboração normativa, representando maior especialização do processo de produção normativa.
Um exemplo nesse sentido é o Projeto Legislab - Laboratório de Legislação e Políticas Públicas do Observatório para Qualidade da Lei,<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> que conta com espaço adequado para uma abordagem transdisciplinar do processo de elaboração legislativa e legislativa-regulatória, possibilitando a realização de testes e modelagem. A relevância de espaços como o Legislab é enorme na medida em que um dos principais desafios para a transformação digital das funções de Estado é a falta de apetite das lideranças do Setor Público para incentivar práticas disruptivas<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Por certo, a testagem e modelagem não representam uma panaceia que garantiria a concepção de regras perfeitas, mas uma prática que submete o pensar da produção normativa a uma nova abordagem, desafiando a práxis já consolidada e contribuindo para o zelo na importante tarefa de produzir normas de forma atenta aos resultados e impactos pretendidos.
Ademais, mesmo não se tratando de panaceia, é possível defender que a iniciativa de rule as code representa mudança de paradigma ao apontar para um contexto de maior participação dos destinatários das normas em sua concepção e aplicação, além de mostrar-se como cenário propício para incentivo da inovação aberta, estabelecendo pontes entre o setor público e atores privados.
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O episódio 49 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre o que o Supremo Tribunal Federal precisa dizer sobre a prisão de deputados. Ouça:
https://youtu.be/9Tv7gNDT4Rw
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> OCDE. Embracing Innovation in government. Disponível em https://trends.oecd-opsi.org/embracing-innovation-in-government-global-trends-2019.pdf.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> OCDE. Cracking the code. Disponível em: https://www.oecd.org/innovation/cracking-the-code-3afe6ba5-en.htm.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Para maiores informações: https://www.observalei.net.br/.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> OCDE. Innovation Skills and Leadership in Brazil's Public Sector: Towards a Senior Civil Service System. Disponível em https://www.oecd-ilibrary.org/sites/ef660e75-en/index.html?itemId=/content/publication/ef660e75-en

LGPD

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JOTA

Conceito representa propostas de melhoria normativa por meio da concepção de normas jurídicas legíveis por máquina

&#8216;Rule as code&#8217;: um avanço na elaboração de normas

'Rule as code': um avanço na elaboração de normas

Diálogos entre Direito e ciência de dados