Thamires Ferreira Mourão

A apropriação de bens culturais é objeto de constante denúncia por parte das comunidades e grupos envolvidos no processo de criação desses bens.
Os bens culturais de natureza imaterial são aqueles relacionados aos saberes e ao modo de fazer, as celebrações e as formas de expressão cênica, musical ou lúdica de um determinado grupo ou comunidade. A Constituição Federal de 1988 garante, em seus artigos 215 e 216, que os bens imateriais integram o patrimônio cultural, o qual deve ser preservado pelo Estado em conjunto com a sociedade. O que se vê, no entanto, é que os instrumentos legais consoantes ao texto constitucional para proteção desses bens imateriais não são suficientes para garantir que as obras artísticas, assim nomeadas pela Lei de Direitos Autorais, não se sustentem por meio da exploração indiscriminada das expressões culturais tradicionais.
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A <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9610.htm">Lei de Direitos Autorais</a> regulamenta as relações de propriedade intelectual e o comércio de obras artísticas, mas a própria concepção do que é artístico está alinhada à indústria comercial e à estética ditada pelo padrão de produção ocidental moderno, que não abrangem a diversidade cultural das obras artísticas de manifestações populares tradicionais e étnicas. Isso porque essas manifestações são majoritariamente inegociáveis e não podem se tornar produto de consumo, sobretudo por não possuírem relação de proximidade com o processo industrial e de produção artística comercial.
Nesse sentido, quando a lei garante o direito individual do autor, não observa que essa aparente autoria pode decorrer de um processo de apropriação cultural que não respeita fundamentos ancestrais, simbólicos e religiosos que estão envolvidos nas expressões tradicionais de uma coletividade.
O artigo 7º da Lei de Direitos Autorais prevê expressamente que os direitos de autor tutelam as “criações do espírito”, sendo suficiente, portanto, a análise objetiva da qualidade subjetiva de um autor para que o direito se materialize.
Deste modo, uma vez que os direitos autorais possuem caráter privado, já que é dado ao autor a exclusividade para exploração da sua obra, não há espaço para as manifestações culturais populares, que têm como principal característica a multiplicidade de colaboradores para a criação de uma obra.
Ademais, a Lei de Direitos Autorais ainda estabelece, em seu artigo 45, que as obras de autor desconhecido estão no domínio público, ou seja, não encontram limites ou obstáculos para serem apropriadas e deformadas por quem tiver interesse de com elas obter lucro patrimonial e vantagem moral, uma vez que além do benefício econômico, a lei também confere direitos morais ao autor, como o de ter o nome citado junto à obra, manter a obra fora de circulação ou até mesmo retirá-la de circulação se houver afronta à sua reputação e imagem.
Vale também dizer que o arcabouço legal atual não prevê o domínio público remunerado, e não há nada mais atrativo para a indústria cultural que se valer da apropriação do conhecimento tradicional, já que esse não requer qualquer tipo de contraprestação pecuniária.
Essa oposição entre o público e o privado tem fim no direito à privacidade, por um lado, e na contraprestação pecuniária pelo uso comercial, de outro, mas sem observar que existem direitos coletivos envolvidos e que acabam sendo apagados em benefício do direito individual que se confere a um presumido autor com vistas à manutenção da cadeia da indústria cultural.
A Constituição Federal de 1988 reconhece que os bens culturais de natureza imaterial devem ser promovidos e protegidos pelo poder público, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento, desapropriação e de outras formas de preservação, prevendo-se, ainda, punição aos danos e as ameaças desse patrimônio, na forma da lei.
O direito autoral é, inclusive, parte dos direitos culturais previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual prevê que “todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística da qual seja autor” (artigo XXVII, 2).
No entanto, o próprio caráter individual do direito autoral não permite a evocação de direitos coletivos com vistas à proteção dos bens culturais imateriais, limitando-se, portanto, à proteção de artistas, compositores, escritores e cientistas, que acabam sendo nomeados como os detentores das “criações do espírito”.
Em resumo, ganham aqueles que são nomeados autores e a indústria cultural, enquanto os grupos que tiveram as suas manifestações exploradas não ganham sequer o direito moral de serem identificados e terem os seus nomes citados às obras registradas.
E nessa linha, à medida que as expressões artísticas vão se tornando antigas e perdendo o valor comercial, passam a ser protegidas por diplomas legais que as enquadram como patrimônio público comum e abrem as portas para a exploração comercial e a reivindicação de autoria, o que assina o atestado de óbito da identidade dos verdadeiros sujeitos de direitos pertencentes a essas coletividades, os seus nomes, a sua localização geográfica, suas expressões, imagens e conhecimentos, além de incentivar as condições de desigualdade e invisibilidade social já vivenciadas por esses grupos.
Assim, o objetivo do direito autoral é proteger o autor da exploração da indústria, mas quem protege os sujeitos coletivos, envolvidos nas expressões culturais tradicionais, desse indivíduo que recebe o nome de autor?
A doutrina defende que a razão pela qual a Lei de Direitos Autorais não poderia abranger essa proteção é que seria improvável definir quais são os sujeitos de direito envolvidos nas expressões culturais. No entanto, há leis que definem quem são os povos e as comunidades tradicionais, tais como os decretos federais 6.040/2007 e 8.750/2016. Quaisquer que sejam as definições previstas nos dispositivos legais existentes, já não seria possível definir limites para que terceiros não pertencentes à essa coletividade deixem de ser identificados como detentores individuais de direitos de obras cuja "criação do espírito" não é exclusivamente sua?
E mesmo que não identificados os verdadeiros autores das expressões culturais, é possível pensar em controles ou até mesmo vedações à exploração econômica dessas expressões tradicionais, limitando o seu uso para pesquisas e fins não comerciais, ao revés de enquadrar essas expressões como de domínio público e endereçar o seu valor a terceiros socialmente privilegiados, incentivando essa cadeia histórica de exploração e dominação?
Beber na fonte das manifestações tradicionais e travestir as suas formas para vendê-las como um produto final de valor internacional é o que movimenta a indústria cultural. No entanto, o direito autoral, como parte dos direitos culturais previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, não pode continuar sendo exercido em detrimento de direitos coletivos de sujeitos coletivos envolvidos nesse processo, principalmente quando esses direitos coletivos representam a memória e a identidade de grupos e comunidades tradicionais e étnicas que já são vítimas de extrema desigualdade e invisibilidade social.
A aplicação coletiva dos direitos autorais é possível? O que deseja essa minoria coletiva? A complexidade dessas respostas parece ter uma única saída possível: voz e protagonismo a esses sujeitos de direito.
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JOTA

Lei não observa que autoria pode decorrer de um processo que não respeita fundamentos ancestrais, simbólicos e religiosos

O caráter privado do direito autoral na apropriação de bens culturais imateriais

Lei não observa que autoria pode decorrer de um processo que não respeita fundamentos ancestrais, simbólicos e religiosos