Fábio Santos Brunetto

O direito brasileiro atribui grande relevância ao combate à discriminação e à pobreza, como demonstram os objetivos fundamentais do Brasil dispostos no art. 3º, inc. III e IV, da Constituição. No entanto, discriminação e pobreza são questões pouco diretamente aproximadas pelo nosso ordenamento; enquanto a primeira tende a se vincular a proteção de identidades, a segunda costuma a se relacionar com direitos sociais. No atual cenário brasileiro em que, por um lado, <a href="https://www.cnnbrasil.com.br/business/quase-28-milhoes-de-pessoas-vivem-abaixo-da-linha-da-pobreza-no-brasil/">a pobreza se agrava a níveis alarmantes</a> e, por outro lado, <a href="https://valor.globo.com/carreira/noticia/2021/10/27/empresas-exigem-diversidade-na-apresentacao-de-candidatos-dizem-gestores-de-rh.ghtml">a não discriminação parece se incorporar às pautas sociais e até mesmo empresariais</a>, uma abordagem jurídica que aproxime essas questões pode ser de grande valia.
O direito da antidiscriminação, também denominado como direito antidiscriminatório, é tímido em reconhecer a pobreza como um critério proibido de discriminação/critério de proteção especial no Brasil. Essa rasa relação pode ser ilustrada através de uma breve observação à doutrina jurídica, à legislação federal e à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF).
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A literatura antidiscriminatória brasileira<a href="#_edn1" name="_ednref1">[1]</a> apresenta os critérios proibidos de discriminação principalmente a partir das categorias de “condição pessoal imutável e involuntária” e de “escolhas fundamentais”, originadas da jurisprudência dos Estados Unidos, berço histórico do direito da antidiscriminação. No entanto, essas categorias da jurisprudência estadunidense não parecem suficientes para considerar a pobreza como um critério proibido.
A pobreza, em seu sentido dominante em nossa sociedade, não é considerada uma condição pessoal imutável, seja pela correta noção de que a situação de pobreza pode (e deve) ser eliminada e combatida, seja pela anunciada possibilidade de os indivíduos superarem a pobreza através da meritocracia em um ambiente de liberdades negativas. E justamente por seu caráter negativo e prejudicial, a pobreza não é considerada como uma escolha fundamental de vida de alguém – salvo pontuais exceções de ordem religiosa e espiritual de adesão à “pobreza voluntária”.
Na legislação antidiscriminatória a nível federal<a href="#_edn2" name="_ednref2">[2]</a>, dos diversos critérios proibidos previstos, percebe-se que os únicos diretamente relacionados ao sentido dominante de pobreza (monetária, vinculada a auferimento de renda) são dispostos em normas específicas para proibição de discriminação em determinados contextos. É o caso da proibição de discriminação em razão de “recursos econômicos”, disposta apenas na Lei nº 10.216/2001 para assegurar os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, da proibição de discriminação em razão de “condição econômica”, disposta apenas no ECA para assegurar os direitos por si enunciados, e da proibição de discriminação em razão de “renda”, disposta apenas na Lei Maria da Penha para assegurar o gozo de direitos fundamentais a toda mulher.
Nos últimos anos, a jurisprudência do STF realizou importantes avanços na implementação de medidas antidiscriminatórias. Nesse sentido, ilustram alguns julgamentos que, além de proibir distinções explícitas com base em critérios proibidos, rechaçam normas aparentemente neutras resultantes em discriminação indireta e validam e incrementam ações afirmativas, inclusive em reconhecimento da intersecção de critérios protegidos e da dimensão institucional e estrutural dos fenômenos discriminatórios<a href="#_edn3" name="_ednref3">[3]</a>. Contudo, esses julgamentos vinculam-se especialmente a questões de raça, gênero, orientação sexual e deficiência. Notadamente, não se conhece qualquer julgamento na Corte sobre “discriminação em razão de pobreza”.
Esse não é um problema exclusivo do direito da antidiscriminação brasileiro. Pelo contrário, verifica-se no direito estadunidense e em outras jurisdições estrangeiras<a href="#_edn4" name="_ednref4">[4]</a>. Por outro lado, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem realizado recentes e significativos avanços ao afirmar a existência de discriminação em razão de pobreza em dois julgamentos envolvendo o próprio Estado brasileiro<a href="#_edn5" name="_ednref5">[5]</a>.
A Corte IDH reconheceu a pobreza como critério proibido de discriminação em decorrência da disposição do art. 1.1 da Convenção Americana, que proíbe a discriminação em razão de “posição econômica” e possui caráter não taxativo ao proibir discriminação “por qualquer outra condição social”. Os julgamentos da Corte IDH são obrigatoriamente observáveis ao Estado brasileiro, tanto por sua condição de parte processual nos casos, quanto devido à sua vinculação à interpretação firmada pela Corte em relação ao art. 1.1 da Convenção Americana. Portanto, o entendimento adotado pela Corte IDH de que a pobreza se enquadra como critério proibido de discriminação à luz do artigo 1.1 da CADH deve ser observado pelo direito brasileiro.
A partir desse reconhecimento da pobreza como critério proibido de discriminação, diversas contribuições são possíveis ao direito brasileiro e possuem especial relevância no contexto social atual.
A incorporação da pobreza pelo direito da antidiscriminação permite, por exemplo, a sua interação com as modalidades de discriminação. Daí, alcança-se fundamento jurídico para combater normas, medidas e práticas que prejudiquem o exercício de direitos por pessoas em situação de pobreza em pé de igualdade com as demais independentemente da intenção discriminatória. Consequentemente, pode-se discutir tanto de normas com o propósito de discriminar pessoas em situação de pobreza (discriminação direta), quanto de normas que, mesmo neutras e sem intenção, possuem impacto adverso desproporcional em relação a essas pessoas (discriminação indireta). Seguem algumas possíveis exemplificações, sem a pretensão de definitividade sobre invalidade jurídica das hipóteses à luz da proibição de discriminação.
A discriminação direta pode ser explícita, manifestada na proibição da entrada de pessoas cuja aparência remeta à situação de pobreza em estabelecimentos abertos ao público, ou na exigência de comprovação de renda ou emprego formal para acesso a serviços de modo desproporcional. Pode também ser escondida através de normas ou medidas aparentemente neutras mas intencionalmente discriminatórias em sua aplicação (o porte da mesma quantidade de entorpecente ser considerado uso próprio ou tráfico de acordo com a situação de pobreza ou não dos indivíduos; a abordagem policial ser mais ou menos repressiva em diferentes bairros) ou em sua elaboração (a oferta de serviços públicos em determinados locais para afastar os ‘pobres indesejáveis’; a criminalização de atividades de trabalho e lazer vinculadas a eles). Pode ocorrer inclusive na omissão, como a intencional manutenção de uma tributação regressiva e especialmente prejudicial aos mais pobres.
Já uma hipótese de discriminação indireta atual pode ser ilustrada nos parâmetros de preferência para vacinação contra a COVID-19. Pautados principalmente nos critérios neutros de idade e trabalho como profissional da saúde, não é possível afirmar que os parâmetros sejam intencionalmente discriminatórios contra pobres. No entanto, <a href="https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/05/28/falhas-em-resposta-a-covid-19-e-baixa-vacinacao-afetam-mais-os-pobres.ghtml.">sua utilização contribuiu para que os moradores dos bairros mais pobres demorassem mais a se imunizar</a> e, então, estivessem mais expostos ao contágio – considerando a necessidade dessas pessoas de exercer trabalho presencial e o privilégio de classe do home office. Este exemplo demonstra como diversas medidas, ainda que bem-intencionadas, podem resultar efeitos discriminatórios contra pobres, o que exige uma avaliação dos seus impactos às pessoas em situação de pobreza.
Também a aproximação da pobreza à dimensão coletiva da discriminação assume importância em nosso contexto brasileiro para discutir manifestações de discriminação direta e indireta naturalizadas e, portanto, menos vinculadas à especial atuação ou interesse de agentes discriminadores individualmente.
O combate à discriminação institucional permite questionar operações rotineiras das instituições que reproduzem vieses dos seus grupos dominantes e normalizam medidas decorrentes de determinada ideologia/cultura institucional. Exemplificam a consulta a órgãos de proteção ao crédito para contratação de funcionários, a violenta repressão policial em periferias e até medidas econômicas, orçamentárias e fiscais de enfraquecimento de políticas públicas e direitos sociais – como inclusive <a href="https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2021/10/auxilio-brasil-e-um-retrocesso-que-corroi-rede-de-protecao-social.shtml">é apontado</a> em relação à substituição do Bolsa Família pelo Auxílio Brasil.
A visualização da discriminação estrutural possibilita discutir o domínio social naturalizado dos indivíduos em situação de pobreza em uma sociedade monetizada e de baixa mobilidade social. Pode-se pleitear, então, ações afirmativas para reversão de um contexto no qual os pobres não possuem chances reais de crescimento econômico e acadêmico, possuem dificuldades para representação política e são alvo de estereótipos negativos, divulgados em programas de humor de grande alcance nacional e sem grande problematização. A baixíssima mobilidade social brasileira, inclusive, permite reconhecer a discriminação intergeracional em razão de pobreza, o que resulta que <a href="https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/01/22/ranking-social-global-brasil-mobilidade-social.htm">os prejuízos decorrentes da pobreza sejam sofridos por diferentes gerações de um mesmo núcleo familiar</a>.
Por fim, o reconhecimento da interseccionalidade da pobreza com outros critérios (especialmente raça e sexo) pode fortalecer a luta conjunta antidiscriminatória e desenvolver a noção da própria pobreza como um fenômeno multidimensional - não limitado ao aspecto monetário. Não se postula de modo algum relativizar as demais discriminações diante da discriminação em razão de pobreza, como muito já se sustentou no Brasil, sob o mito da democracia racial, para restringir o racismo a uma discriminação social de renda.
Pelo contrário, acredita-se que afirmar a pobreza como mais um critério proibido deve estimular o combate às discriminações com base em outros critérios interseccionados e, ainda, evitar uma reificação identitária e uma diversidade formal, de modo a conciliar medidas de reconhecimento e de redistribuição.
Em síntese, verifica-se que o direito brasileiro pode passar a afirmar a pobreza como um critério proibido de discriminação através da observação à jurisprudência da Corte IDH. Com a antijuricidade da discriminação em razão de pobreza, diversas contribuições podem ser absorvidas do direito da antidiscriminação, como a interação com as modalidades e as dimensões do fenômeno discriminatório. Essas incipientes contribuições antidiscriminatórias devem ser desenvolvidas para que possam auxiliar no combate à pobreza de forma proporcional, coerente ao sistema jurídico e ainda assim impactante. De qualquer forma, já indica mais um caminho a se seguir para incrementar o necessário combate à pobreza.
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<a href="#_ednref1" name="_edn1">[1]</a> A doutrina jurídica antidiscriminatória brasileira é aqui ilustrada por Roger Raupp Rios, José Adilson Moreira e Jorge Cesar Ferreira da Silva. Conforme Rios, essas categorias referem-se, respectivamente, a “condições subjetivas imutáveis e involuntárias, às quais se associam identidades”, tradicionalmente exemplificadas pelo sexo e pela raça, e a “escolhas consideradas fundamentais”, que se associam ao indivíduo “de forma voluntária e mutável”, tradicionalmente exemplificadas pela religião (Direito da Antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 54 e 65). Moreira afirma que os critérios de proteção especial se referem a características que “têm sido classificadas como traços que são benignos; não são moralmente relevantes, não são indicativos de habilidades das pessoas” e que, recentemente, “também têm sido vistas como elementos que designam a possibilidade de as pessoas fazerem escolhas fundamentais nas suas vidas” (Tratado de Direito Antidiscriminatório. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020, p. 258). Silva também aponta que a doutrina antidiscriminatória adota com algum consenso as citadas categorias de classificação de “características imutáveis e involuntárias, como a raça, o sexo, o fato de portar deficiência, o local de nascimento, a língua materna, a idade, origem social etc.” e de “decisões individuais essenciais que acabam por cunhar a identidade pessoal do indivíduo e que correspondem ao exercício de liberdades de consciência, como a religião, a crença, a orientação política ou ideológica”. (Antidiscriminação e contrato: a integração entre proteção e autonomia. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 91).
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[2]</a> Na legislação antidiscriminatória brasileira, há diversas normas com diferentes níveis de proteção discriminatória, como exemplifica a abrangência de critérios protegidos referenciados no âmbito nacional e federal. Estatutos centralizam a proteção de determinados grupos e amplamente proíbem a discriminação em razão de raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica (Estatuto da Igualdade Racial), deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) e idade (Estatuto do Idoso e Estatuto da Criança e do Adolescente), enquanto a discriminação em razão de sexo é igualmente enfrentada de modo amplo pela Lei Maria da Penha. Também o âmbito penal atenta a características protegidas (Lei nº 7.716/1989; Lei nº 7.437/1985; e Código Penal, arts. 140, § 3o e 149, § 2º, inc. II). Há ainda diversas normas que, para fins específicos, além de eventualmente reforçar a proibição de discriminação pelos já citados critérios, rechaçam também determinadas discriminações motivadas pelos seguintes outros critérios[ii]: nacionalidade e condição migratória, pertinência a grupo social e opinião política, estado civil, situação familiar e reabilitação profissional, recursos econômicos e grau de gravidade ou tempo de evolução de transtorno mental, nascimento, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia, renda, cultura e nível educacional (Lei de Imigração, arts. 4º, inc. VIII, X e XI, e 45, parágrafo único; CLT, arts. 461, e 510-B; Lei nº 10.216/2001, art. 1º; Lei nº 9.029/1995, art. 1º; ECA, art. 3º, parágrafo único; e Lei Maria da Penha, art. 2º).
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[3]</a> Ilustram alguns julgamentos da Corte que rechaçam normas aparentemente neutras resultantes de discriminação indireta contra homossexuais (ADI 5.543 – 2020; ADPF 291 – 2015), deficientes (ADI 5.583 - 2021) e mulheres (ADI 1.946 - 2003); prestigiam ações afirmativas a favor de negros (RE 597.285 e ADPF 186 – 2012; ADC 41 – 2017; ADPF 738 - 2020), mulheres (ADI 5.17 – 2018) e deficientes (RMS 32.732 AgR – 2014; ADI 5.873 – 2019).
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[4]</a> Nos Estados Unidos, entende-se majoritariamente que a Corte Suprema concluiu que a pobreza não seria um critério suspeito de discriminação já em julgamento de 1973, estabelecendo posteriormente uma jurisprudência que rejeita aplicar aos pobres a proteção constitucional de igualdade e não discriminação e que é tímida para intervir em resultados de escolhas políticas em relação a direitos sociais e questões econômicas, analisando apenas a racionalidade das medidas (DYSON, Maurice R. Rethinking Rodriguez After Citizens United: The Poor as a Suspect Classification in High-Poverty Schools. Georgetown Journal on Poverty Law and Policy. Vol. XXIV, n. 1, 2016, p. 2-58; ROSE, Henry. The Poor as a Suspect Class Under the Equal Protection Clause: An Open Constitutional Question. Nova Law Review. v. 34, n. 2, 2015, p. 407-421; NICE, Julie. No Scrutiny Whatsoever: Deconstitutionalization of Poverty Law, Dual Rules of Law, &amp; Dialogic Default. Fordham Urban Law Journal. Vol. 35, n. 3. 2008, p. 629-671). Além dos Estados Unidos, o Reino Unido, o Canadá, a África do Sul e a Índia também não reconhecem a pobreza como um critério proibido de discriminação em sua legislação ou jurisprudência constitucional (ATREY, Shreya. The Intersectional Case of Poverty in Discrimination Law. Human Rights Law Review, v. 18, n. 3, p. 411-440, set. 2018; FREDMAN, Sandra. The Potential and the Limits of an Equal Rights Paradigm in Addressing Poverty. Stellenbosch Law Review. v. 22, n. 3, 2011, p. 566-590).
<a href="#_ednref5" name="_edn5">[5]</a> Trata-se dos julgamentos do Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde Vs. Brasil em 2016 e do Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus Familiares Vs. Brasil em 2020.

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JOTA

Possíveis contribuições para o seu desenvolvimento no direito brasileiro

Discriminação em razão de pobreza

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