Pandemia

Direito à privacidade em tempos pandêmicos e o caráter fundamental da informação

A urgência da compreensão do que é privacidade e o alcance de sua proteção

dados
Crédito: Pexels

Com as idas e vindas da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018), muito se tem discutido acerca da temática do Direito à Privacidade, da operabilidade dos modos de proteção de dados pessoais e dos limites à liberdade de acesso a informações dos cidadãos pelo Estado.

Ocorre que, assistindo recentemente o premiadíssimo curta metragem The Neighbors’ Window, de Marshall Curry, algumas ponderações acerca desse debate apareceram, ponderações essas que, acredito, seriam importantes à qualquer discussão sobre o assunto.

Afinal, ao que me parece, é cada vez mais evidente o fato de que pouco se entende o que é Privacidade e qual a abrangência de sua proteção. Seus conceitos e definições fundamentais são frequentemente esquecidos, ou mesmo ignorados, o que acaba por deixar sua aplicação fragilizada.

O filme citado, contudo, de forma extremamente simples, nos possibilita retornar aos primórdios da Privacidade, ao Direito de Estar Só, ao acesso “analógico” às informações privadas, fatores que incentivam e contribuem com a reflexão e melhor entendimento desse objeto de estudo. Afinal, em tempos pandêmicos a casa acabou por se tornar o cenário mais constante de convivência. Estamos vivendo nossa vida íntima e nossa vida “pública” (trabalho, meetings, calls) em casa. E, ao abrir a janela ou a tela do computador, nos deparamos com nossos vizinhos, colegas e familiares executando o mesmo movimento.

O filme retrata um casal que se depara com novos vizinhos pouco cuidadosos com a própria Privacidade, vivendo do modo mais livre e exposto, por opção. O casal protagonista passa a “assistir” à rotina dos vizinhos (em todos os seus detalhes), e a história toma seu rumo.

Fato é que, nesse cenário, já temos a apresentação de dois conceitos-chave à compreensão da Privacidade e ao alcance de sua proteção: os de invasão e de evasão da Privacidade. Cada vez mais, sobretudo com liquefação do dia a dia tão bem enaltecida por Bauman, para além da intensificação da invasão da Privacidade, a população passou a exercer um movimento de evasão da Privacidade, expondo, deliberadamente, suas informações privadas.

O autor é preciso ao dizer que “o medo da exposição foi abafado pela alegria de ser notado”[1]. Como já dissemos em outros trabalhos, a necessidade de estar constantemente conectado e o impulso irresistível de compartilhar fazem surgir na sociedade a demanda de novas ferramentas que permitam a realização do desejo de espalhar-se e, ao mesmo tempo, as novas tecnologias promovem e incentivam esse querer.

Assim, se com frequência temos nossa Privacidade invadida das mais diversas formas, seja por invasores privados ou públicos, com frequência ainda maior cedemos e abrimos nosso universo particular e permitimos a algumas pessoas o acesso a esse ambiente.

Esse limite de quem pode ou não ter acesso ao ambiente íntimo também é essencial à compreensão do Direito à Privacidade, limite esse que podemos chamar de integridade contextual.

Foi Helen Nissenbaum, Professora da UNY, que, desenvolveu o entendimento do Direito à Privacidade como Direito à Integridade Contextual[2] (the right to contextual integrity), conceito esse diretamente vinculado aos atores envolvidos, ao cenário apresentado e ao conteúdo transacionado.

Também já analisamos e concordamos com sua forma de enxergar a Privacidade em nossa pesquisa[3], explicando que o Direito à Privacidade é um direito que se relaciona com o manejo do fluxo de informações pessoais, variando de acordo com o contexto analisado. A moldura da integridade contextual não sedimenta a Privacidade em compartimentos, deixando-a à margem da vida social e política, sendo eventualmente lembrada com forma de contenção de atos excessivamente intrusivos.

A integridade contextual é uma rede que conecta todos os espaços. Atos que causam danos a esse complexo de conexões não podem ser vistos de maneira isolada, pois afetam o conjunto como um todo. O Direito à Privacidade é um direito de viver em um mundo no qual nossas expectativas sobre o fluxo de informações pessoais sejam, na medida do possível, satisfatórias; expectativas que não são moldadas apenas por imposições externas, mas pelo entendimento geral e mútuo de respeito aos fluxos informacionais, fundamental à organização da vida social.

A integridade contextual busca o equilíbrio harmonioso entre regras sociais e normas jurídicas que são formadas não só pela força do hábito e da convenção, mas pela confiança geral no apoio mútuo desses fluxos, de acordo com os princípios fundamentais de organização da vida social, inclusive morais e políticas.

Ou seja, saber se as informações foram disponibilizadas voluntaria ou involuntariamente e, para quem tais informações foram disponibilizadas é fator determinante para entender o alcance do direito à Privacidade.

No atual contexto marcado pela disseminação pandêmica da Covid-19 e todas as mudanças comportamentais geradas por essa disseminação, perdeu-se um pouco a preocupação com esses fatores. Pouco importa se as informações estavam ou não disponíveis e para quem, o importante é coletá-las, a fim de reestruturar a sociedade.

Evidentemente que calamidades públicas podem servir como justificativa para a flexibilização de normas relacionadas à proteção do privado. Contudo, como bem lembra Stefano Rodotà[4], tal movimento deve ser pontual, absolutamente excepcional e o mais restrito possível, afinal, o exercício do Direito à Privacidade é também direcionado a combater a coleta de informações como forma de controle (seja ele público ou privado), e atinge a sociedade como um todo, servindo como forma de reação a políticas autoritárias e, não com pouca frequência, discriminatórias.

Pode-se, então, compreender que a proteção da Privacidade é, também, um fenômeno coletivo, deixando de, conforme Danilo Doneda, “dar vazão somente a um imperativo de ordem individualista, mas passa a ser a frente onde irão atuar vários interesses ligados à personalidade e às liberdades fundamentais da pessoa humana”[5].

Em The Right to Privacy, Warren e Brandeis (1890) já mencionavam limites à Privacidade, referenciando publicações legais ou informações utilizadas por órgãos públicos em geral. Ou seja, o interesse público como ferramenta restritiva ao Direito à Privacidade não é novidade. No entanto, como ressalta João Carlos Zanon, não se pode esquecer que regimes totalitários não poucas vezes lançaram mão de tal artifício para legitimar seus atos. Nesse sentido, a inviolabilidade da Privacidade de uma pessoa “não pode ser afastada inadvertidamente pela ideia de supremacia do interesse público sobre o privado”[6].

Já dissemos em tese dedicada ao tema que elasticidade, flexibilidade e fluidez são algumas das características que podemos utilizar para definir Privacidade e demonstramos no mesmo trabalho que da antiguidade ao momento atual, as definições de público e privado sofreram profundas alterações, expandindo suas possibilidades, atingindo novos espaços e adaptando-se ao comportamento humano, também marcado pela liquidez.

Tornando o tema ainda mais multifacetado, notamos que as mutações de percepção sobre o que é ou deixa de ser privado não eliminaram as versões anteriores, muito pelo contrário, somaram-se. O privado não deixou de ser familiar, mas passou a ser, também, isolamento, por exemplo. O público não deixou de ser político, mas passou a ser, também, comunal. Em cada época, conforme ditava a realidade, o foco foi direcionado a determinado ponto de maior importância à sociedade e, nesse caminho, mais ou menos valorizada, a Privacidade manteve-se presente.

A realidade retratada The Neighbors’ Window, com maior um menor intensidade, está fazendo parte da rotina de todos nós, estamos todos assistindo a todos. O padrão de rotina mudou, a ocupação dos espaços mudou e a importância do acesso ao privado (seja esse privado íntimo ou dado pessoal) está atingindo um nível até então não imaginado, sendo que o caráter fundamental da informação possivelmente nunca foi tão evidente.

Não são poucas as formas de manifestação do Direito à Privacidade e seguimos trilhando o longo caminho na busca pela tutela mais adequada a esse bem, sobretudo diante da digitalização do cotidiano que torna o alcance do conteúdo informacional mais amplo do que jamais se imaginou. Com a iminência do vigor (já adiado) da LGPD, e um Estado que demonstra predileção à brutalidade em suas atitudes, é urgente compreender adequadamente o que significa Privacidade e o que é o Direito à Privacidade, de forma técnica e eficaz, evitando a depredação dessa qualidade inerente à pessoa essencial para o desenvolvimento de sua personalidade e individualidade. Sem Privacidade não há democracia e, tampouco, liberdade.

 


[1] BAUMAN, Zygmunt. Vigilância líquida: diálogos com David Lyon. Tradução  de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2014.

[2] NISSENBAUM, Helen. Priavacy in context: technology, policy, and the integrity of social life. Stanford: Stanford University Press, 2010.

[3] CANCELIER, Mikhail. Infinito particular: privacidade no século XXI e a manutenção do direito de estar só. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

[4] RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Tradução de Sanilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

[5] DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção dos dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

[6] ZANON, João Carlos. Direito à proteção dos dados pessoais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.